quinta-feira, fevereiro 21, 2013

Indomável Sonhadora


 Ao contrário da frase que se atribui a Che Guevara, em Indomável Sonhadora não há muito espaço para ternura no processo de endurecimento infringido à pequena Hashpuppy (Quvenzhané Wallis), uma garota de apenas seis anos.

Porém, se por um lado as pessoas que a cercam persistem no embrutecimento como forma afetuosa de prepará-la para a vida, por outro a menina consegue preservar seu olhar fantasioso para essa tal vida que tanto a desafia. É um olhar terno este que ela lança para o mundo ao redor. Mas é também um olhar duro.

Com apenas nove anos de idade, Quvenzhané Wallis concorre ao Oscar de melhor atriz pelo papel. É a mais jovem atriz a ser indicada nesta categoria, que este ano traz também, por coincidência, a atriz mais velha a concorrer: Emmanuelle Riva, que exatamente no dia da cerimônia completará 86 anos. Ela concorre pelo filme Amor, de Michael Haneke.

A indicação de Wallis é mais que merecida. Na pele de Hashpuppy, ela carrega sobre os ombros um filme duro e desalentado. Seu único escape é a fantasia, mas uma fantasia que na mesma medida serve como fuga do medo, torna-se muitas vezes a própria representação desse medo. Hashpuppy vive com seu pai, Wink (Dwight Henry), em uma comunidade pobre da Louisiana, num cenário de pobreza e devastação, próximo a uma barragem.

De sua mãe conhece apenas as histórias que seu pai conta, sempre em tom mítico. Não é certo se ela morreu ou apenas os abandou. Quando uma tempestade se aproxima, muitos moradores partem para abrigos, mas a menina, seu pai, e outro grupo de insensatos resistentes ficam para testemunhar a grande inundação que se segue à tempestade.

Neste cenário de desolação, Hashpuppy vai tomando consciência que seu pai esconde dela uma misteriosa doença que o está consumindo. A relação entre eles é de permanente tensão, pois são ambos (e também todos que o cercam), sobreviventes da pobreza e da ignorância. Para eles a vida é a luta diária da resistência, além de certo tipo de companheirismo entre amigos.

No mundo de Hashpuppy não há espaço para a fraqueza. É preciso uma força selvagem para resistir e é essa força que todos tentam impor. Assim, Indomável Sonhadora retrata quase que um rito de passagem precoce da jovem menina, no qual a brutalidade das relações não representam desprezo ou ódio, mas uma forma terna, distorcidamente terna, de fortalecê-la para a vida.

É nesse contexto que a atuação de uma atriz infantil surpreende pela força com que alterna essa brutalidade absorvida com uma sonhadora percepção da realidade. Mas aqui não se tem a sonhadora tradicional, que constrói na fantasia um mundo perfeito. Em suas fantasias há a mesma animalidade com que a vida a cerca, uma bestialidade de força e selvageria, que é contra a qual ela terá de aprender a lutar.

No seu imaginário de realismo fantástico, esta força da natureza é personificada em monstros selvagens que se aproximam para devastar. Eles são a representação de seus medos acumulados e é com esses medos que ela terá de se confrontar em algum momento.

Estreia na direção de longa metragem do jovem Benh Zeitlin, Indomável Sonhadora também concorre ao Oscar de melhor filme (além de direção e roteiro adaptado). Com uma beleza extraída da desolação e da aridez das relações, filtrada sempre pelo olhar inocente e ao mesmo tempo duro de Hashpuppy, o filme é contido como apelo dramático, o que evita um descarrilamento para o drama choroso. Suas emoções não são extraídas das lágrimas fáceis, mas da força crescente que se revela em sua protagonista.
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Beasts of the Southern Wild
Benh Zeitlin
EUA, 2012
93 min.

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quarta-feira, fevereiro 20, 2013

Os Incômodos desse Som ao Redor


Poucas vezes um filme teve um título tão adequado e profético. O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, não apenas justifica seu título nos ruídos da vizinhança que sua narrativa retrata – ruídos esses que fazem parte da construção de uma atmosfera sutilmente opressiva e reveladora – como também vem ressonando para além de suas projeções nas salas de cinema.

Não bastasse a surpreendente repercussão internacional ao ser apontado pelo jornal The New York Times e pela conceituada revista de cinema britânica Sight and Sound como um dos melhores filmes de 2012, o filme vem ganhando um sonoro boca a boca, além de sonoros aplausos por onde passa. Mas essa sonoridade parece estar incomodando alguns opositores desse tipo de cinema, mais preocupado em estimular o pensamento reflexivo do que o riso estéril.

Kleber Mendonça Filho: duelos e ressonâncias
O mais recente fato desse desconforto que o filme parece causar a uma classe desacostumada ao reflexo e à provocação veio do diretor-executivo da Globo Filmes, Cadu Rodrigues. Aparentemente, o executivo não gostou de uma declaração de Kleber Mendonça Filho, publicada no jornal Folha de S.Paulo no último domingo (17), edição que trouxe uma série de matérias a respeito do filme, ressonando ainda mais sua importância para o cinema nacional e para o momento histórico do país.

A declaração em questão é essa: “Minha tese é a seguinte: se meu vizinho lançar o vídeo do churrasco dele no esquema da Globo Filmes, ele fará 200 mil espectadores no primeiro final de semana".

A resposta veio em forma duelística, por meio de um e-mail público de Cadu Rodrigues: “Desafio o cineasta Kleber Mendonça Filho a produzir e dirigir um filme e fazer 200 mil espectadores com todo apoio da Globo Filmes! Se fizer, nada do nosso trabalho será cobrado do filme dele. Se não fizer os 200 mil, assume publicamente que como diretor ele é talvez um bom critico[sic]. Vamos ao desafio, caro diretor”.

O convite à peleja circulou pelas redes sociais nesta quarta-feira (20). Muitos defensores tomaram à frente a qualquer resposta de Mendonça Filho e responderam publicamente a Cadu Rodrigues, oferecendo diferentes contradesafios em resposta, nos quais propunham ações à Globo Filmes para que fizesse pelo cinema nacional algo mais do que o puramente comercial.

Para encerrar a rinha, iniciada sem propósito de lógica ou razão pelo executivo melindrado, a resposta oficial do diretor desafiado veio à noite:

“Olá Cadu

Locação de uma das cenas mais emblemáticas do filme
Estava em trânsito o dia inteiro, cheguei em Istambul onde O Som ao Redor será exibido nos próximos dias. O Facebook e a imprensa fervilham com nosso embate.

Preciso lhe agradecer pelo desafio, mas sua proposta associa a não obtenção de uma meta comercial (200 mil espectadores) como prova irrefutável de que eu não seria um cineasta. Isso não me parece correto, pois o valor de um filme, ou de um artista, não deveria residir única e exclusivamente nos número$.

Sobre ser crítico ou cineasta, atuei como ambos e meu discurso permanece o mesmo, e sempre foi colocado publicamente, e não apenas em mesas de bar: o sistema Globo Filmes faz mal à ideia de cultura no Brasil, atrofia o conceito de diversidade no cinema brasileiro e adestra um público cada vez mais dopado para reagir a um cinema institucional e morto.

Devolvo eu um outro desafio: Que a Globo Filmes, com todo o seu alcance e poder de comunicação, com a competência dos que a fazem, invista em pelo menos três projetos por ano que tenham a pretensão de ir além, projetos que não sumam do radar da cultura depois de três ou quatro meses cumprindo a meta de atrair alguns milhões de espectadores que não sabem nem exatamente o porquê de terem ido ver aquilo.

Esse desafio visa a descoberta de novos nomes que estão disponíveis, nomes jovens e não tão jovens que fariam belos filmes brasileiros que pudessem ser bem visto$, se o interesse de descoberta existisse de membro tão forte da cadeia midiática nesse país, e cujos produtos comerciais também trabalham com incentivos públicos que realizadores autorais utilizam.

Não precisa me incluir nessas novas descobertas, gosto do meu estilo de fazer cinema. Ainda estou no meio de um grande desafio com O Som ao Redor, 9 cópias 35mm, mais algumas salas em digital, chegando aos 80 mil espectadores em 8 semanas, e com distribuição comercial em sete outros países. A maior publicidade de O Som ao Redor é o próprio filme. Para finalizar, esses embates são importantes, fazemos cinemas diferentes, em geografias diferentes. Obrigado, tudo de bom. Kleber”.

O que se tira disso tudo? Em princípio, o abismo que separa quem está interessado em cinema e quem está interessado em bilheteria. Pode não parecer, mas são coisas completamente distintas, ainda que muitas vezes perniciosamente ligadas. Mas o fato que fica é um conselho: apure seus ouvidos. Esse som ao redor ainda vai fazer muito barulho.
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P.S.: Este é um texto opinativo claramente favorável ao diretor desafiado. Não deixe de procurar outras fontes e opiniões.
P.P.S.: Clique aqui para ler a matéria de Fernanda Mena publicada na Folha de S.Paulo

terça-feira, fevereiro 19, 2013

O Dobro ou Nada


Mesmo sendo uma comédia morna de roteiro frágil, O Dobro ou Nada tem na manga algumas cartas que evitam o completo desastre do jogo. Essas cartas são alguns nomes de seu elenco, cujo carisma torna suportável uma trama quase sem conflitos e tensões. Bruce Willis, Catherine Zeta-Jones e o quase sempre impagável Vince Vaughn são os nomes que orbitam em torno da protagonista vivida por Rebecca Hall.

Dirigido por Stephen Frears – que tem no currículo produções marcantes como Ligações Perigosas (1988), Alta Fidelidade (2000) e A Rainha (2006) – o filme é uma adaptação do livro autobiográfico Lay the Favorite, de Beth Raymer. Conta a história de uma garota ingênua que vai a Las Vegas a procura de trabalho e acaba se envolvendo com um bookmaker boa praça.

Trabalhando como stripper a domicilio, Beth (Hall) decide sair dessa vida depois de um episódio um tanto assustador. Vai então para Las Vegas atrás de algum trabalho bem remunerado. Lá conhece Dink (Willis), que tem um escritório de apostas para todo tipo de competição, de corrida de cavalos a concurso de miss, passando por qualquer liga esportiva conhecida nos EUA.

Demonstrando talento para lidar com números e apostas, Beth é contratada por Dink, mas terá de lidar com a oposição de Tulip (Zeta-Jones), a ciumenta e dominadora esposa-perua de seu novo patrão.

Entre superficialidades de sentimentos e uma relação mal explicada entre Dink e a esposa, o filme se desdobra com a fraqueza de situações sem apelo dramático ou cômico. Rebecca Hall segue o roteiro garota sexy e ingênua que de repente começa a se dar bem no mundo das apostas, ao mesmo tempo que se apaixona pelo patrão. A atriz não apenas está fraca em seu papel como parece deslocada no meio do elenco.

O Dobro ou Nada busca revelar um pouco os bastidores do mundo das apostas e como cotações podem ser manipuladas pelos jogadores de peso que atuam derrubando ou elevando essas cotações. Mas depois de desenhar esse cenário, o filme se encaminha para mais uma lição de moral a respeito de responsabilidade e até de amizade.

Seu grande vazio, contudo, está no modo como o roteiro se desdobra. Se em geral as comédias românticas pecam pelo exagero de suas tramas rocambolescas, aqui há um excesso de fragilidade em como a trama se desenrola. Os conflitos apresentados nunca parecem sérios e a solução deles se dá sempre de maneira simplista. Mesmo para uma comédia, alguma tensão dramática é sempre necessária, mas neste caso parece ter sido inteiramente deixada de lado.

Já a graça e o fazer rir enquanto comédia fica no mais raso do riso, salvo apenas pelas poucas participações de Vincent Vaugh, que faz um bookmaker fanfarrão. Vaugh pode ser visto como uma versão hollywoodiana de nosso Paulo Silvino: ainda que traga sempre os mesmos trejeitos e entonação na fala, sua graça espontânea é quase sempre irresistível.

O que surpreende mesmo em O Dobro ou Nada é seu resultado tão fraco vindo de um diretor como Stephen Frears. Ainda que este nunca tenha alcançado status de gênio e tenha uma carreira de alternância entre filmes autorais e de mercado, esta comédia ingênua passa longe do que se poderia esperar do nome por trás da câmera.
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Lay the Favorite
Stephen Frears
EUA/Reino Unido, 2012
94 min.

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segunda-feira, fevereiro 18, 2013

Amorosa Soledad


A privada entupida marca o início de uma mudança na vida de Soledad (Inés Efron). A separação do namorado, que quer um tempo para repensar as coisas, deixa-a solitária em seu apartamento. Como para esconder de si mesma sua fragilidade, Soledad decide que vai ficar um tempo só, porque as pessoas solitárias lhe parecem mais felizes.

Amorosa Soledad é uma produção argentina de 2008 que só agora chega ao Brasil. O filme é a estreia em longa metragem de sua dupla de diretores, Martín Carranza (que tem larga experiência como assistente de direção, tendo trabalhado com Pablo Trapero no ótimo Abutres, de 2010) e Victoria Galardi, que também assina o roteiro.

Por roteiro, entenda-se uma tênue história que não escapa, em alguns momentos, de ser esquemática. O que vemos é a rotina dessa jovem em sua solidão. Uma solidão marcada por sintomas que revelam sua dificuldade em lidar com o estar só. Dessa forma, o filme quer alcançar uma poética que se perde na monotonia de seu andamento.

Não é apenas o esquemático, mas as metáforas óbvias do desconforto dessa solidão. A privada entupida que ela abandona o uso, chegando a fazer dela espaço decorativo; sua atitude hipocondríaca e a masturbação discreta no jato de água do bidê, tudo, de forma muito elementar, refletem os sintomas da solidão ingenuamente autoimposta.

O perfil da personagem, com sua vida semi-cosmopolita, de trabalho cheio de informalidade em uma loja de artigos de decoração, mais uma fotografia que não disfarça seu tom de cinema publicitário, dão ao filme uma aparência de propaganda do extinto banco Real.

Toda essa estética artificial, perdida entre o poético, somada a um roteiro frágil, fazem do filme um arrastado debute de direção sem personalidade. Apoiado nas pistas óbvias das mentiras que a personagem cria para si mesma sobre seu desejo de ficar só. O clichê, então, não demora a surgir, na forma de um possível romance, desenvolvido sem qualquer empatia. O resultado é fraco e superficial.
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Amorosa Soledad
Martín Carranza e Victoria Galardi
Argentina, 2008
82 min.

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sexta-feira, fevereiro 15, 2013

As Sessões


Em tom leve, As Sessões relata a perda da virgindade de um homem de quase 40 anos paralisado do pescoço para baixo. O filme é inspirado na história real de Mark O’Brien, interpretado aqui por John Hawkes. Paralisado desde os seis anos após contrair poliomielite, O’Brien depende de um iron lung (pulmão de ferro, numa tradução livre), um respirador artificial em forma de cápsula do qual pode ficar fora apenas poucas horas por dia.

Estas limitações não impediram O’Brien de se graduar pela Universidade de Berkeley (Califórnia). Nem de exercer suas atividades de jornalista e poeta. Mas a questão do sexo sempre foi deixada de lado. Até que em 1988, aos 38 anos, enquanto preparava uma reportagem sobre a sexualidade de deficientes físicos, ele sentiu a necessidade de perder sua virgindade.

É nesse esforço que entra a atuação desprendida de Helen Hunt no papel de Cheryl, uma terapeuta sexual encarregada de oferecer a seus pacientes não apenas a orientação teórica, mas também a prática. Ela é uma sex surrogate (substituta sexual, em tradução livre), prática terapêutica reconhecida desde 1970 nos EUA.

Hunt, que concorre ao Oscar de atriz coadjuvante pelo papel, revela uma surpreendente segurança em francas cenas de nudez. Mas não é apenas seu desprendimento corporal ilumina o filme. Sua atuação equilibrada faz de As Sessões uma história cujo sentimento não ultrapassa os limites do crível e jamais se entrega ao banal.

Durante as sessões dela com Mark desenvolvem-se os típicos sintomas de transferência emocional entre paciente e terapeuta. É com isso que Cheryl, que tem um casamento como outro qualquer, terá de lidar. Mas sem o desprendimento necessário a seu trabalho, pois ela também passa a desenvolver um tipo de transferência emocional.

É na sutileza da construção desse envolvimento que As Sessões tem sua melhor qualidade. Por trás da obvia e natural carência de Mark se esconde a delicada e muito sutil carência de Cheryl, vítima da típica rotina estagnada de um casamento normal. Sem cair numa trama de relações mastigadas, vemos na tela esse processo de reciprocidade emocional, cujo sentimento sincero comove sem apelações.

Pontuado por muito bom humor, em especial na relação que Mark tem com o padre Brendan (William H. Macy), já que ele é muito católico, o filme evita o caminho fácil do drama lacrimoso ao abrir mão de apelativos emocionais baratos. Prefere investir numa relação de afeto sincera e natural, sem grandes gestos.

Tanto esforço por não ser dramático em excesso e por manter as coisas na ordem da vida real faz com que em alguns momentos o filme penda para certa apatia. Não esbarra na frieza, mas seu esforço em ser ameno faz dele uma experiência que por alguns momentos se torna também amena, deixando tudo um pouco apagado.

Porém, mesmo com certa amenidade (resultado de esforços um pouco exagerados em se manter comedidos nos sentimentos) o filme nos toca pela natural comoção de um relacionamento desenvolvido a partir de laços sinceros e que revelam as fragilidades emocionais de qualquer pessoa.

O inusitado de um personagem como Mark, que na vida real relatou sua experiência em um artigo intitulado On Seeing A Sex Surrogate (clique aqui para ler, em inglês), não altera o valor prosaico dos sentimentos que o filme oferece. Isso faz de As Sessões um filme cuja graça está não no incomum de seus protagonistas, mas no que há de comum e verdadeiro em seus sentimentos.
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The Sessions
Ben Lewin
EUA, 2012
95 min.

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sábado, fevereiro 09, 2013

Nota de Rodapé

Nota de Rodapé é um filme que transita da comédia para o drama. Mas essa transição nunca abandona sua graça, preserva seu tom cômico, ao mesmo tempo em que vai temperando a narrativa com certa gravidade. Esse misto de graça e gravidade pode ser notado já nas cenas iniciais. Vê-se que na casmurrice do professor Eliezer Shkolnik (muito bem interpretado por Shlomo Bar-Aba) uma dose de humor rabugento, mas em seu olhar nota-se algo mais do que simples irritação. Há ali uma mal disfarçada melancolia.

Eliezer é professor da Universidade de Israel e há mais de 30 anos estuda o Talmude, o livro sagrado das leis judaicas que é permanente objeto de estudos acadêmicos. Seu filho, Uriel Shkolnik, também seguiu carreira acadêmica como estudioso do Talmude. Mas adotou linhas de pesquisas diferentes da do pai.

Com diversos livros publicados e reconhecimento intelectual, Uriel alcançou mais prestígio acadêmico que o pai, cujo grande orgulho na vida é ter sido citado em uma nota de rodapé de um grande pesquisador.

Mais do que o desconforto com seu ostracismo em comparação com o prestígio do filho, há um acontecimento do passado que afeta profundamente Eliezer. Quando estava prestes a publicar o resultado da pesquisa de toda sua vida – uma teoria que sacudiria o mundo acadêmico – ele viu seu trabalho desperdiçado quando outro pesquisador, totalmente por acaso, descobriu antigos manuscritos que confirmavam sua tese. O outro pesquisador publicou antes e ficou com os louros da descoberta. O que contribui para Eliezer ser posto de lado no mundo acadêmico.

Nota de Rodapé trabalha, inicialmente, esse ressentimento de um homem frustrado com a vida. Mas à medida que se desenvolve, revela um caso de complicada relação entre pai e filho. Isso porque Eliezer considera os temas estudados pelo filho tolos e superficiais se comparados com suas próprias pesquisas.

Ao se aproximar dessa tensa relação entre pai e filho, o filme fará sua transição ao mudar seu enfoque para Uriel, quando este terá de resolver uma grave confusão criada por um comitê acadêmico envolvendo ele e o pai. A partir daí a trama colocará sobre o filho o peso de uma decisão cujas consequências poderão afetar sua carreira e a já complicada relação com o pai.

A excelência do roteiro de Nota de Rodapé está em tramar uma série de complicações que, além de intensificarem a relação familiar, revelarão os brios muitas vezes infantis presentes nas vaidades e intrigas acadêmicas. Na decupagem desse roteiro, a direção de Joseph Cedar mostra competência em uma refinada passagem da quase de comédia para um desfecho intenso e, sob alguns aspectos, até pessimista.

Com bastante habilidade, o filme atravessa alguns dilemas éticos. Seus personagens são sempre um misto de vítima e causa da situação embaraçosa que se veem. Assim, Nota de Rodapé se mostra como um conto de humor de implicações sérias, que de tão bem amarradas e passíveis de serem reais revelam a comicidade daquilo que se leva muito a sério.

Por baixo desse verniz cômico, há uma história de relação entre pai e filho. Nesse aspecto, vê-se o espelho natural que surge dessa relação. Um jogo de reflexo em que cada lado se vê no outro e sente nesse jogo certo fascínio de vaidade, mas também um indisfarçável desconforto.
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Hearat Shulayim
Joseph Cedar
Israel, 2011
103 min.

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sexta-feira, fevereiro 08, 2013

Só Se Sabe o Que Se Vê



Qual é a cara do cinema brasileiro produzido em 2012? Se sairmos às ruas e perguntarmos para as pessoas, as respostas podem variar. Mas a julgar pelos dez filmes nacionais de maior bilheteria nos cinemas ano passado, a resposta tenderia a ser parecida. Por outro lado, se a mesma pergunta for feita por quem trabalha com cinema – seja diretamente, seja jornalisticamente –, a resposta talvez seja bastante diferente.

Como se sabe, nosso recorte da realidade é sempre – e apenas – aquilo que vemos. E como não podemos estar em todos os lugares ao mesmo tempo e saber de tudo que acontece, nossa percepção da realidade está sempre fadada a ser imperfeita e parcial.

Com o cinema nacional não é diferente. Dia desses, ao sair de uma sessão de O Som ao Redor, uma amiga comentou que, a julgar por aquele filme, o cinema nacional devia estar melhorando muito. Mas de qual cinema ela estaria falando? Do que ela entende como cinema nacional? Do que eu entendo como cinema nacional? Ou do que de fato é, hoje, o cinema nacional?

Segundo dados da Ancine (Agência Nacional do Cinema), em 2012 foram lançados 83 títulos nacionais. A imagem abaixo, divulgada no site do Kinoforun (clique aqui), ilustra as dez maiores bilheterias do cinema nacional ano passado. Na página é possível conferir dados como bilheteria, renda e número de cópias no lançamento de cada filme.

Diante desse quadro, a pergunta é: será essa a cara do cinema nacional recente? Não para muita gente. Para fazer uma comparação entre a cara do cinema nacional que eu vejo e a cara do cinema nacional que o grande público vê (a julgar pelos dados de bilheteria), segue abaixo uma lista, sem juízo de valor, dos principais filmes nacionais que assisti em 2012:


Como se pode ver, a diferença é bem grande, com apenas dois filmes em comum entre as duas percepções. Acredito que esse exemplo ilustre algo importante. É preciso ver mais filmes nacionais e não apenas os grandes lançamentos. A importância disso é ressaltar como o cinema nacional é muito maior (e muitas vezes melhor) do que aquilo que apontam as bilheterias. Julgá-lo apenas por esses números é certeza de deixar de fora o melhor da nossa produção.
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O Amante da Rainha

Pelo título e pelo que pode ser visto em qualquer material de divulgação do filme, O Amante da Rainha entrega exatamente aquilo que promete. Isso significa uma qualidade apropriada em todos os elementos que fazem a graça desse gênero de filme, o de drama de época com intrigas palacianas e amores proibidos.

Concorrendo ao Oscar de filme estrangeiro, O Amante da Rainha se passa no século 18 e começa com a ida da princesa Caroline Mathilde (Alicia Vikander) da Inglaterra para a Dinamarca. Ela foi dada em casamento ao rei dinamarquês Christian VII (Mikkel Boe Følsgaard) e verá o marido pela primeira vez. Chegando à Dinamarca, em pouco tempo ela percebe o que todos suspeitam e comentam: que o rei sofre de desequilíbrio mental.

Conformada com sua vida palaciana em um país estrangeiro e com um marido ausente da vida conjugal, ela terá seu coração tomado de assaltado com a chegada na corte do médico alemão Johann Struensee (Mads Mikkelsen). Ele se tornará rapidamente o melhor amigo e a maior influência sobre o rei.

Médico e rainha se afinam por serem, secretamente, adeptos das ideias iluministas. Um ideário humanista e científico que já se espalhava pela Europa, mas ainda encontrava resistência na corte dinamarquesa. Tornando-se amantes, usarão a influência de Johann sobre o rei para colocar em prática esse ideário.

Dessa forma, o filme tem alguns dos principais ingredientes que facilitam a simpatia do espectador. Ideais nobres, paixões intensas e uma doce protagonista que sofre as agruras de sua vida. Mesmo que caia em alguns clichês de gênero, O Amante da Rainha tem o grande mérito de uma qualidade respeitável. Se não se mostra brilhante em nenhum momento, tampouco se entrega a algum tipo de mediocridade extrema.

De trama bem amarrada e com bom andamento da história, o único ruído dessa boa costura está no personagem da madrasta do rei, cuja presença e ação é muito mal articulada dentro da trama. Mas é um ruído que não afeta o resultado final.

Isso porque a direção competente do dinamarquês Nikolaj Arcel não deixa que o drama caia na monotonia. Da mesma forma, atuações equilibradas, com destaque para Følsgaard por seu rei desequilibrado e inseguro, dão ao filme a força que ele precisa. Na parte técnica, em especial figurino e direção de arte – fundamentais nesse tipo de filme –, tudo é realizado com grande competência e apuro.

Com cara de filme de Oscar, O Amante da Rainha não escorrega ou vacila naquilo que se propões como filme de época dramático. Ainda que não seja uma obra brilhante, tem no seu conjunto uma agradável textura de vigor. Um vigor que nem sempre se alcança em obras desse gênero, dadas muitas vezes a patinar demais no drama e tornarem-se cansativas.

Aqui essa armadilha é evitada com uma montagem eficaz, que dá o ritmo certo e bem azeitado nos desdobramentos da história. É o que torna prazerosa a experiência de assisti-lo.
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En Kongelig Affære
Nikolaj Arcel
Dinamarca/Suécia/República Tcheca, 2012
137 min.

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quarta-feira, fevereiro 06, 2013

O Voo

O dilema moral que O Voo promete desenvolver na sua meia hora inicial é bastante estimulante. Isso porque, logo no seu início, desenham-se alguns elementos que funcionam como desestabilizadores de certezas maniqueístas. Vilania, heroísmo ou apenas um ser humano falho com seus problemas? Entre essas opções, camadas podem ser desdobradas ao se acompanhar os feitos e as atitudes do personagem de Denzel Washington, o piloto comercial Whip Whitaker. Uma proposta inicial que parece querer falar de responsabilidade e responsabilização.

Para dar gravidade ao suposto dilema, uma bem realizada sequência de acidente aéreo. Não sendo o diretor Robert Zemeckis um iniciante, segue com competência a cartilha do filme desastre. Mas a partir daí, o filme toma rumos diversos para desembocar em um melodrama bastante superficial.

Acontece que Whip é alcoólatra e usuário frequente de drogas. Está separado da esposa e raramente vê o filho adolescente com quem pouco se dá. É com estado toxicológico alterado que ele assume o comando de um voo para Atlanta, ao lado de um copiloto bem menos experiente. Quando algo dá errado e o avião simplesmente começa a cair, Whip demonstra frieza e controle. Lançando mão de uma manobra espetacular, consegue estabilizar a aeronave e aterrissá-la num campo espaçoso. Os estragos são grandes, mas apenas seis pessoas morrem entre as mais de 100 que estavam a bordo.

O melodrama surge quando o piloto herói é confrontado com exames de sangue que revelam alto nível de álcool e cocaína. Começa aí uma mudança no filme, cujas promessas de dilema moral vão gradativamente sendo abandonadas e novos personagens entram na trama.

Com uma narrativa sem foco, O Voo vai cada vez mais se parecendo a um telefilme ruim. No hospital, Whip conhece Nicole (Kelly Reilly) uma viciada em heroína. Enxergando nela o drama que não consegue admitir em si mesmo, busca ajudá-la. Enquanto isso, seguem as investigações sobre o acidente e a apuração de sua responsabilidade nele.

De roteiro esquemático, a narrativa se arrasta até o final, sempre mergulhada no drama sobre o vício, mas sem um foco sobre seu viciado principal. Nem drama familiar, nem drama de reabilitação, nem drama investigativo, nem drama de tribunal. Embora todas essas possibilidades se apresentem em algum momento, o filme não leva nenhuma adiante. No máximo, salta de uma para outra sem definição.

Nem mesmo o protagonista dessa história sem rumo parece ter alguma profundidade. Isso apesar do talento de Denzel Washington, que aqui não faz grande esforço, mas ainda atua com firmeza. Exceto por algumas pinceladas no passado e na relação com o pai, também piloto, nada parece dar estofo ao personagem.

Mais grave é o caso de Nicole, cuja presença no filme é de uma falta de profundidade desanimadora. Completa esse quadro de personagens micro dimensionais duas aparições de John Goodman como um fornecedor de drogas que anda por aí com a desenvoltura de quem vende doce para crianças.

No seu desenrolar frágil, O Voo caminha para um desfecho inteiramente conservador. Quer dar a seu personagem uma redenção tão de última hora que soa sem sentido, além de artificial. Um paradoxo dentro da intenção moralista do filme, que quer redimir seu personagem para fazer dele uma lição de moral. Mas executa tão mal esse propósito que a lição acaba perdendo seu sentido. Assim, todo dilema moral desenhado no início resulta em um moralismo fajuto, que não bastando seu discurso empoeirado, ainda sofre de um vazio incoerente.
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Flight
Robert Zemeckis
EUA, 2012
138 min.

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terça-feira, fevereiro 05, 2013

A Hora Mais Escura


Nas mais de duas horas e meia de A Hora Mais Escura, sua protagonista Maya (Jessica Chastain), uma agente da CIA à caça de Osama Bin Laden, nunca fala em capturar o terrorista. Seu objetivo é somente um: matar o líder da Al-Qaeda. Está aí uma obsessão de morte que pode ser vista como espelho, no qual Maya se torna o reflexo daquilo que caça. Em seu terninho preto, dispondo de amplo aparato logístico e usando técnicas de tortura, ela personifica uma versão ocidentalizada do jihad islâmico. Não quer ser apenas o escudo que defende, mas principalmente a espada flamejante que vinga os mortos da nação.

A personagem Maya, que Jessica Chastain interpreta com devotado equilíbrio, é o elemento do filme sobre o qual recai o peso de refletir a América em guerra contra o terror. Logo no início, vemos seu desconforto diante de uma sessão de tortura. Mas esse desconforto não impede que mais adiante ela mesma se mostre dura com o sofrimento do prisioneiro, por saber que ele tem a informação que ela precisa. Uma atitude determinada que passa por cima do desconforto e revela o abismo moral de sua conduta.

Depois de levar seis Oscars em 2010 com seu Guerra ao Terror (incluindo melhor filme e melhor direção) a diretora Kathryn Bigelow abandona o olhar aproximado do filme anterior, no qual dissecava a rotina e o drama de soldados de um esquadrão antibombas no Iraque. Desta vez, Bigelow adota um olhar distanciado. Recorre a uma neutralidade que flerta com o documental e recompõe os fatos que envolveram a caçada e morte de Osama Bin Laden.

Esta opção por uma narrativa fria, em tom documental, se mostra conveniente e ao mesmo tempo problemática. Na polêmica causada pelas cenas de tortura, o distanciamento permite à diretora e ao filme eximirem-se da emissão de qualquer juízo de valor, o que é bastante conveniente. Por outro lado, a frieza da narrativa acentua uma certa prolixidade no desenrolar da trama, tornando o filme longo, muitas vezes cansativo.

Na sua prolixidade, o filme tentar dar conta de um minucioso relato sobre a operação. Enquanto documento, funciona como um registro que mapeia não apenas a caçada, mas a estrutura por trás dessa caçada. Hierarquias, incertezas, políticas internas e pistas que não deram em nada. Tudo isso está perfeitamente mapeado pelo filme. Contudo, nota-se que há um cabo de força mal resolvido entre seu lado documental e seu lado narrativo-ficcional.

Este cabo de força se mostra mais ressonante na montagem, que tem momentos burocratizados ou pela fidelidade aos acontecimentos ou pela necessidade de dar ao filme uma fluidez de narrativa ficcional. Nesse aspecto, A Hora Mais Escura mostra alguma dificuldade em situar o espectador nas constantes mudanças de locais em que se passa a ação. O mesmo acontece na questão temporal, ainda que o filme não recorra a flashbacks. Ao englobar em sua narrativa dez anos de investigações, muitas vezes a percepção desse tempo é dificultada pela montagem que precisa se apressar.

Um exemplo dessa deficiente amarração temporal está numa sequência em que agentes tentam localizar um suspeito através do seu sinal de celular. É elementar, pelos diálogos entre os agentes, que toda a operação levou meses para ser concluída. No entanto, a montagem realizada passa ao espectador uma sensação de poucos dias, o que causa certa discrepância entre o que se vê (a sensação de temporalidade que a imagem deve passar) e o que se sabe através dos diálogos.

Há também um número razoável de cenas que não contribuem para o andamento do filme. Servem, algumas vezes, para tentar criar empatia com algum personagem. Há nisso um clara discrepância, um contraste com o tom frio adotado pelo filme. Parecem mais uma vacilo da direção em se manter tão impessoal quanto a seus personagens.


Mesmo com uma estrutura falha e se eximindo de assumir posição ante a tortura praticada pelo governo, A Hora Mais Escura é um importante registro de um momento histórico. Expõe detalhes da caçada ao mentor dos ataques de 11 de setembro e revela também o espírito americano por trás dessa caçada. Nesse último aspecto, a atuação de Chastain como a agente Maya tem uma sobriedade aguda, uma contenção emocional que nos livra de qualquer exagero desnecessário. Há nela uma força obstinada, destituída de heroísmos sentimentais, apenas implacável no seu objetivo de encontrar e matar um homem.

A cena final, que pode dar a impressão de humanizar esta protagonista para além de sua obsessão em matar Osama Bin Laden, é um ótimo reflexo daquilo que Maya simboliza, ainda que muito sutilmente. Há algo de humano em sua reação, o natural reflexo de um peso que se dissipa. Mas também há algo de esvaziamento, de jornada que termina sem significado. O que parece ser alívio pode ser também o surgimento de um vácuo. Um vazio a ser preenchido. Como preenchê-lo talvez seja a grande questão que o filme apresenta para a nação que finalmente vingou seus mortos.
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Zero Dark Thirty
Kathryn Bigelow
EUA, 2012
157 min.

Trailer

 

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