quinta-feira, maio 05, 2011

Incêndios



Incendies
Denis Villeneuve
Canadá, 2010
130 min.

Há um choque, logo no início de “Incêndios”, que coloca o primeiro tijolo de gravidade e dor no muro que será construído e depois derrubado ao longo do filme. Quando em seu testamento, Nawal Marwan instrui os filhos sobre como deseja ser sepultada (sem caixão, nua, sem orações, o rosto virado para o solo, de costas para o mundo e sem lápide), seu gesto de contrição, por uma promessa não cumprida, assombra.

O testamento de Marwan não deixa dúvidas de que seu passado oculta coisas cuja gravidade não se pode imaginar. Ao revelar que não pôde cumprir uma promessa, delega-a aos filhos. A promessa de romper o fio do ódio. Eles não sabem o que significa e para descobrir terão de realizar uma jornada em busca do passado da mãe.

Não há, de início, concórdia entre os gêmeos Simon e Jeanne. Simon se ressente pelo que considera uma mãe que sempre foi distante. Ele quer apenas a normalidade de um funeral comum e esquecer tudo. Jeanne, ao contrário, se comove com o testamento e parte em busca das respostas. Viaja do Canadá até a Líbia em busca de respostas, em busca da verdade.

“Incêndios” é um filme sobre a descoberta do terror que o passado pode esconder, mas também uma jornada que revelará não apenas a dor, mas acima de tudo o ódio. Esse ódio, e seu absurdo, foi o que transtornou a vida Marwan ainda muito cedo e a levou a cometer atos de desespero, de violência e de dor profunda. Mas foi também o ódio que a levou a conhecer o amor e o perdão. Contudo, o fez por caminhos tão tortos e tão dolorosos, que seria impossível passar por eles sem que transformassem sua vida de forma contundente e irreparável.

O filme tem um roteiro que nos absorve intensamente pelo intricado caminho que desenha para que se descubra a verdade. Em contraponto ao intrincado, a narrativa é conduzida de forma clara, mantendo um paralelo entre passado e presente, revelando o caminho da investigação de Jeanne com o caminho de sofrimento e desventura vivido por sua mãe.

A direção de Denis Villeneuve é extremamente competente e une-se com perfeição às atuações de Lubna Azabal e de Mélissa Désormeaux-Poulin, como mãe e filha em tempos distintos. Villeneuve desembaraça a sinuosa e flagelada trama da vida de Marwan em uma compungida história repleta de mistério, dor e emoção. Ao longo de sua duração, “Incêndios” nos transporta para o centro de uma realidade hostil, histórica, atávica e permanente.

Fazem parte de uma irretocável ambientação histórica eventos como a Guerra Civil Libanesa nos anos 70, a atuação das milícias cristãs em massacres de palestinos refugiados no sul do Líbano, o ódio transmitido como herança. Entre a ação política pacifista e o engajamento em ações extremistas, Marwan conhecerá esse ódio e sua desgraça, assim como a maternidade. Em uma trajetória de dor, redenção e aceitação, provará o pior dos mundos. Na busca empreendida por toda sua vida, terá no encontro sua mais dolorosa experiência.

Por conta de uma clara inspiração na tragédia grega e pelos encontros improváveis ao longo da história, pode-se questionar a verossimilhança de algumas situações do filme. Nada disso, porém, é capaz de diminuir o impacto da revelação final, quando tudo se completa e uma promessa finalmente é cumprida.

Para seus filhos, em busca da verdade que ela nunca revelou em vida, a experiência dessa busca será o alicerce para o baque da descoberta. Em suas cartas de despedida, entregues apenas depois de cumprida a jornada, Marwan demonstra uma capacidade sobre-humana de perdoar e de amar. De toda sua vida, repleta de violência, desamor e ódio, conseguiu extirpar de âmago o rancor. Rejeita - e ensina a seus filhos a rejeitarem - o ódio com o qual foi forjada sua existência.

“Incêndios” é mais que um retrato da guerra, do horror e das vidas tiradas ou transformadas pelas atrocidades político-religiosas de sociedades pautadas pelo ódio e pelo sentimento de vingança. É acima de tudo um exemplo, um poema negro pelo rompimento desse ciclo, pela aceitação da vida e pela pacificação do espírito através do perdão e do desvelo de toda verdade.

Em seu propósito, emociona profundamente ao desconstruir o ressentimento e o rancor, desobrigando-nos também de odiar seus perpetradores e entregar-lhes o perdão e a misericórdia. Um filme não apenas para se ver, mas uma experiência para ser vivenciada.
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1 comentários:

Carla Silva disse...

Esse filme é incrivelmente impactante. Deixa-nos mesmo que involuntariamente com uma agonia interior, um atordoar da alma, vire e mexe eu pego pensando no caos mental que a personagem viveu. Impressionante.

 

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