quinta-feira, janeiro 26, 2012

Os Descendentes


 

The Descendants
Alexander Payne
EUA, 2011
115 min.

O diretor americano Alexander Payne costuma desdobrar o drama de seus personagens com um humor peculiar entre o riso e o desconforto. Em seus filmes, muitas vezes não sabemos ao certo se devemos rir ou permanecer sérios. Isso porque Payne desconstrói o drama pesado com o ridículo a que todos estamos sujeitos. Percebemos, então, que ser ridículo é uma condição inata ao ser humano, mesmo diante dos dramas mais pesados da vida.


Foi assim em Sideways – Entre Umas e Outras e As Confissões de Schmidt, trabalhos nos quais o diretor vinha apurando seu estilo e sua abordagem do drama. Agora, em Os Descendentes, ele atinge o ponto de maior refinamento de seu cinema. E, assim como havia feito com Paul Giamatti e Jack Nicholson antes, arranca de George Clooney uma atuação impressionante, arrebatadora e comovente.

Clooney é Matt King, um advogado nascido e criado no Havaí. Sua esposa, uma praticante de esportes radicais, está em coma devido a um acidente de lancha. Como o próprio Matt admite, ele nunca foi um pai dos mais exemplares e por isso tem dificuldades em lidar sozinho com suas duas filhas, de 10 e 17 anos. Além disso, ele está envolvido com uma delicada questão de herança familiar.

Matt é o depositário de uma grande quantidade de terras no litoral do Havaí, que herdou, junto com uma dezena de primos, de ancestrais da nobreza havaiana. Agora, ele e os primos precisam chegar a um acordo sobre como vendê-las para um grande empreendimento turístico, decisão extremamente impopular na região e acompanhada pelos jornais.

É em meio a essa tormenta de preocupações que Matt vai descobrir que sua esposa o estava traindo, o que vai terminar de virar sua vida de cabeça para baixo.

Em Os Descendentes, os olhos marejados e o sorriso nos lábios podem conviver perfeitamente. Nenhum dos dois virá em avalanche, mas podem vir ao mesmo tempo. Há na construção do drama um equilíbrio perfeito, cheio de uma delicadeza espontânea, que nos coloca sob a força do sentimento pungente de perda e a realidade de sua absorção, que não exclui o cômico e o inusitado.

Para dar conta deste equilíbrio, George Clooney se supera como o sujeito que não tem controle sobre nada. Toda sua vida parece estar sendo arrastada lentamente por um torvelinho de acontecimentos além de seu controle. Mesmo nas coisas sob seu comando, a sensação é de que não conduz. Esta sensação de desnorteio se torna cômica em seu postura, algo como uma mal disfarçada inabilidade em lidar com os problemas e o esforço discreto em não deixar isso transparecer.

É esta característica absolutamente humana que faz do personagem de Clooney uma figura que nos comove profundamente, ainda que o ridículo perpasse todo o tempo seus gestos e postura. E é justamente desse quase ridículo que vem sua humanidade, aquilo que nos conecta e faz sentir por ele tanta compaixão.

Payne conduz sua história, baseada no romance homônimo da escritora havaiana Kaui Hart Hemmings, com grande habilidade. Tudo funciona. O filme tem ritmo e intensidade sem sobressaltos. É cinema simples, que da simplicidade extrai a grandeza da vida, com suas emoções e gestos humanos. Ao tatear os limites entre o drama e o cômico, despertando o patético no ser humano, mostra uma competência absoluta em explorar tais limites e nos lança para dentro de uma trama primorosamente construída.

Os Descendentes concorre ao Oscar de melhor filme. Vencer ou não uma premiação que pouco ou nada tem de artística é o que menos importa. O que deve ficar é a riqueza de sua construção, a beleza das atuações de um elenco afinado e a graça contida nas lágrimas de seu drama comovente e sincero.
--

quarta-feira, janeiro 25, 2012

Precisamos Falar Sobre o Kevin



We Need Talk About Kevin
Lynne Ramsay
Reino Unido/EUA, 2011
112 min.

Em sua primeira metade, Precisamos Falar Sobre Kevin é uma obra desconcertante. O filme nos joga para dentro de um sentimento de desconforto, nos atinge com uma angústia poderosa, nascida de algo intangível. Impressiona o modo como sua atmosfera avoluma-se, como o invisível – um malefício que não vemos claramente – permeia as imagens desde os primeiros planos.

Do mistério por trás de cortinas esvoaçantes para uma festa popular na Espanha, uma guerra de tomates que reúne milhares de pessoas. É o salto que abre a narrativa. Em meio a uma multidão avermelhada, a figura de Tilda Swinton desliza em câmera lenta, ergue-se na multidão, regozija-se numa espécie de prazer, entre o transe e o orgasmo. Depois a depressão, a maternidade e a gênese do mal. Nem sempre nesta ordem.

É a fragmentação desnorteante do início de Precisamos Falar Sobre o Kevin, somada a uma interpretação extraordinária de Swinton, o que nos angustia plenamente. Ela interpreta Eva Khatchadourian, mãe de Kevin. Uma mulher que diante de uma tragédia provocada pelo filho de 16 anos se alterna entre a culpa e a investigação da memória em busca de respostas.

Na sua segunda metade, o filme se distende. A fragmentação diminui e temos uma maior linearidade nos acontecimentos. Mas isso não é capaz de dissolver os sentimentos provocados pelo seu início. É quando adentramos na intimidade de uma relação entre mãe e filho, do nascimento até o horror. Numa nova atmosfera de prenúncio do terror, assistimos à crescente agonia de uma mãe que não sabe se ama seu filho.

Em Kevin, desde a tenra idade, paira o avesso, uma esfera de absoluta maldade, raramente disfarçada. É entre o crescimento desta maldade – uma anomalia humana impenetrável – e a absorção dos acontecimentos fatídicos de um ápice de horror, de maldade indizível e fria, que oscila Eva. É dela que brotou o mal e seu nome bíblico não é um mero acaso. Na condição de mãe de Kevin, talvez seja sua maior vítima, talvez tenha sido desde sempre o principal alvo do filho monstruoso, nascido de suas entranhas.

Adaptado do romance homônimo de Lionel Shriver e dirigido pela britânica Lynne Ramsay (diretora do premiado Ratcatcher, de 1999), Precisamos Falar Sobre o Kevin é um ensaio sobre uma maldade inata e a esfera de relações desta natureza inescrutável. Eva, em sua jornada pelo inferno, busca explicações na sua condição de mãe, mas desconcerta-se por não encontrá-las. Seu inferno pessoal, as agressões de que é vítima, sua culpa impregnada fazem dela um poço de sentimentos fragmentados.

Com uma narrativa poderosa, a diretora Ramsay nos infiltra na investigação desses sentimentos. Sua direção, a atuação devastadora de Tilda Swinton, a montagem desnorteante da narrativa, tudo resulta em uma intensidade esmagadora. Precisamos Falar Sobre o Kevin é uma obra-prima, capaz de nos envolver intensamente de forma desconcertante e arrasadora.
--

terça-feira, janeiro 24, 2012

J. Edgar


 

J. Edgar
Clint Eastwood
EUA, 2011
137 min.

J. Edgar, novo trabalho de Clint Eastwood na direção, é um filme amargo. Não há pompas e grandiloquências no retrato que Clint traça do homem que praticamente fundou o FBI (Federal Bureau of Investigation) e o administrou por 48 anos. Mas há força. A força de um homem implacável, determinado, e ao mesmo tempo frágil. Mas de uma fragilidade oblíqua, jamais a incapacitá-lo de fazer o que achava que devia fazer.

O FBI é a mais organizada e exemplar polícia do mundo. Subordinada ao Departamento de Justiça americano, foi criada em 1935, quando J. Edgar Hoover dirigia o braço do departamento responsável pela investigação de crimes federais. Eram os anos do crime nos EUA, a década da depressão, da lei seca e de criminosos que exerciam grande fascínio na população, desalentada com as instituições oficiais.

Um tempo em que nomes como John Dillinger, Pretty Boy Floyd, Kate "Ma" Barker, Alvin "Creepy" Karpis, George "Machine Gun" Kelly e Baby Face Nelson tinham seus feitos noticiados, e não raramente aumentados, pelos jornais. Todos eles foram presos ou mortos pelo FBI sob o comando de Hoover.

No filme, sua história é construída em flashback. Leonardo Di Caprio, sob uma convincente maquiagem de envelhecimento, interpreta J. Edgar. Ele começa a ditar sua autobiografia para agentes escolhidos a dedo para a tarefa de registrarem seu legado. Quer contar a história do FBI e sua própria história. Entre relatos e lembranças (nem todas ditadas), regressa até o ano de 1919, quando era um jovem agente do Departamento de Justiça designado para investigar atentados comunistas contra membros do departamento.

Já em suas falas iniciais, na voz off que abre o filme, demarca seu terreno ideológico; patriotismo inflexível e uma irremovível aversão à desordem, ao comunismo e a qualquer ideal liberal que, no seu julgamento, ameace a integridade e o caráter dos Estados Unidos da América. Esta será a coerência de sua vida, pela qual fará o que for preciso para manter seu país seguro. Metódico e minucioso, deve-se a Hoover o uso da ciência na investigação criminal, usada hoje por polícias do mundo todo.

É nesses termos que Clint desenha Hoover, mas constrói esse mito dentro de uma amarga permanência no poder. Essa amargura não surge como consequência desse poder ou de suas ações, nem de uma solidão inerente à função, mas de uma característica própria do homem cujo histórico guarda um amplo leque de chantagens e perseguições. O poderoso diretor do FBI que se sustentou no poder “atravessando” oito presidentes. Sua amargura vem dessa permanência, sustentada por chantagens e intimidações, por suas disfunções afetivas na dependência materna, figura que é a base de sua sustentação, mas também a repreensora velada de sua natureza íntima: a homossexualidade.

A abertura sem vírgulas dessa sua característica pode ser a grande polêmica do filme, rechaçada por seus defensores, vista como uma desonra. Clint intensifica esse aspecto de seu personagem e o filme não faz concessões a qualquer dúvida quanto a isso. Mas em momento algum faz disso matéria de julgamento moral. No entanto, apesar da posição que ocupava e dos anos em que viveu, sua sexualidade não é fator determinante para a construção de seu caráter, de seus resentimentos e de sua postura ideológica.

Com o talento e a sensibilidade de sempre, Clint trabalha isso na esfera da complexidade humana, no modo como J. Edgar se deixa ou não afetar. Mas não passa em branco seu relacionamento de uma vida inteira com Clyde Tolson (Armie Hammer), que foi seu braço direito no FBI por todo o tempo que permaneceu à frente do bureau.

Sem qualquer demérito pelo que construiu, a figura de J. Edgar não é enaltecida pelo filme, que não ameniza em nada sua crueldade, seus preconceitos e sua luta contra o que considerava ameaças a si e ao país. De Caprio incorpora com competência esta personalidade que nunca foi ambígua na determinação de passar por sobre qualquer coisa que estivesse em seu caminho. Suas convicções sempre foram claras e sua postura muito bem definida.

Sem enfeites, J. Edgar é um filme honesto, desburocratizado e eficiente. Não busca um retrato histórico acrítico, mas um retrato em perspectiva de uma figura cujo valor como homem e cidadão pode ter mais de uma faceta. Vai da vilania à determinação pelo dever, mas não assa pela coragem. Para além do bem e do mal, Hoover é construído por Clint como um homem que teve na amargura das convicções o tempero de toda sua vida. Foi grande e pequeno ao mesmo tempo. E deixou, sim, um legado. Mas um legado manchado por ações covardes e indefensáveis.
--

segunda-feira, janeiro 23, 2012

A Alegria



Felipe Bragança e Marina Meliande
Brasil, 2010
106 min.

Não espere ver em A Alegria um cinema fácil, de sabor conhecido e digestão rápida. Este é um filme que pode demorar muito a ser digerido, ou talvez nunca o seja. É cinema de invenção, expressão que já colou em algumas produções nacionais recentes, obras de uma geração novíssima que se coloca atrás da câmera para revelar um olhar complexo, às vezes pedante, às vezes hermético, mas nunca apático ou conformista. Entre citações mil e narrativas desconstruídas, arriscam. Se acertam ou não, o tempo - talvez a maturidade - dirá.
 
É nesse cinema que se insere A Alegria de Felipe Bragança e Marina Meliande. Uma alegria fabular, de juventude exposta a estímulos desconcertantes, que reverbera esses estímulos em uma fantasia distópica. A obra se propões geracional, caminha á margem de uma narrativa convencional, explora o que seria extra-óbvio em um olhar adolescente do mundo.

Este mundo filtrado é um Rio de Janeiro sem adereços, filtrado de sua beleza natural, observado - e absorvido - na sua crueza intrínseca. Mas poderia ser qualquer outro lugar em que reine o descompasso da violência, do medo, da opressão experimentada no cotidiano. Qualquer lugar em que o bizarro conviva com a normalidade farsesca da vida comum.

Aqui os diretores constroem esta fábula por caminhos de risco. Admitem o filme estranho que colocaram de pé, sabem da resistência que ele terá nas plateias, acostumadas à narrativas menos fechadas.

A proposta, o risco, são sempre válidos. Mas a ausência de ganchos condutores de uma comunicação entre espectador e obra, o fechamento em si mesmo provocado por citações em excesso, a tentativa de autolegitimação de um grupo específico de cineastas em obras de autoreferência prejudicam demais o filme.

Se você sair da sessão sem entender nada, não se ressinta de si. É o normal após uma sessão de A Alegria. Pode-se amá-lo e odiá-lo. Às vezes ao mesmo tempo. É, talvez, a consequência do curioso modo como o filme se encerra. Depois de um arrastado discurso pontuado por referências de um cinema particular, ainda pouco visto, explorado e compreendido, vem o mais belo, o mais sublime, a simplicidade da beleza.

No final, sabemos do filme de super herói que quis fazer seus diretores. É no fim, na cena mais linda, mais fácil de ser amada, que a catarse se realiza, talvez pela primeira vez em todo o filme. E isso poderia, em sua beleza e simplicidade, nortear toda a narrativa anterior. Pena que não é assim.
--

História Mundana



Mundane History
Anocha Suwichakornpong
Tailândia, 2009
82 min.

Nem atmosfera, nem narrativa. O que se impõe como marca desse sedutor e tocante filma tailandês é a ausência, os espaço vazios a serem preenchidos de vida ou de sofrimento. O tempo, numa dimensão cósmica, e o ciclo de todas as coisas; humanas e estelares.

Pun é contratado como enfermeiro para cuidar de Ake, um jovem que acaba de ficar paraplégico depois de um acidente. Órfão de mãe, Ake vê seu pai se distanciar, corroído por uma oculta aflição de ver o filho naquele estado.

A narrativa se monta sobre tempos mortos onde o silêncio ocupa o espaço como um peso, algo palpável; como a presença da tragédia ainda recente em cada lugar não ocupado pela palavra ou pelo gesto. Mas também é uma narrativa descontinuada. Pequenos avanços e recuos explicam cenas soltas, que se colocam como estranheza de sentimento, como imperfeição da relação.

A relação é a de um enfermeiro com seu primeiro paciente. Não uma relação de insegurança, apesar do claro desconforto inicial, mas um aprendizado de tato, de passos e contrapassos. Não há o que entender, somente o que sentir. Mas no universo de Pun e Ake, nenhum sentimento é de fácil de tradução.

Mundane History trata de como se estabelece essa relação, mas mostra também uma percepção particular de Ake, impossibilitado de viver como antes. Sua percepção de si e de sua condição é aos poucos traduzida por metáforas de composição cósmica. É quando o filme cresce e se encaminha para uma beleza difícil de traduzir, mas fácil de encantar.

Em sua cena final, a imagem, uma sequência de abrupta violência fecha e ao mesmo tempo abre o ciclo em compasso com a vida de uma estrela. É beleza distorcida, com dissonâncias no modo como se revela. Mas está ali, implícita, grandiosa e cotidiana. Um filme de encher os olhos. Cheio de brilho, nascimento, morte e vida.
--

Enquanto a Noite Não Chega


 

Beto Souza
Brasil, 2010
70 min.

As ruínas de um vilarejo no interior do Rio Grande do Sul, o vento que leva a poeira da memória soprando entre paredes e cômodos abandonados. Com estas imagens, Enquanto a Noite Não Chega vai introduzindo sua história de tempo abandonado.

Baseado em um conto de Josué Guimarães, o filme busca um ponto perdido entre tempos distintos. Passado e presente guardam dores e memórias. Na construção de uma solidão opressora, dissolução do tempo e das coisas, o insólito é a tônica maior de sua narrativa.

Neste vilarejo, desde antes da ruína total, vivem Eleutério e Conceição. Eles são um casal idoso, um dos últimos a permanecerem no lugar que já fora vivo e agitado noutros tempos. Tempos antes das guerras e das perdas irreparáveis na vida desse casal. Além deles, apenas Teodoro permanece. Cabe a ele cumprir seu dever e sua promessa como coveiro da cidade: enterrar os últimos habitantes do lugar, antes de partir.

É nesta chave do insólito que o filme se constrói. Sua abordagem de tempo dissolvido é terna, guardando sentimento e resignação de tempos difíceis na figura do casal. Mas na tentativa de sentimentalizar o passado e a memória, cai em excessos. Excessos que vêm na figura do filho que Eleutério e Conceição perderam, no abandono do lugar, lembranças de um passado melhor.

Na intenção de cristalizar a memória e o sentimento, o filme insiste numa trilha sonora que se repete em excesso e em imagens que retornam com repetições exageradas. Vê-se logo que a história não suporta os 70 minutos de duração e é preciso preencher esse vazio com repetidas cenas, trilha insistente e passagens que não caminham para frente, não conduzem a narrativa.

Só segura o filme a interação dos dois bons atores. Fossem limados os enxertos para estender a narrativa, Enquanto a Noite Não Chega seria um filme de tristeza acolhedora, um drama insólito sobre a vida perto do fim. Tocante e sensível. Mas com suas repetições apenas patina, cansa e desperdiça uma boa história.
--

quinta-feira, janeiro 19, 2012

2 Coelhos


 


Afonso Poyart
Brasil, 2012
108 min.

Munido de um batcinto de utilidades de referências do cinema moderno, Afonso Poyart não hesita em aplicar todas elas em sua estreia na direção. O resultado é bom, mas carece de depuração, de uma mão menos pesada na estética e no empilhamento de referências, que passam por Guy Ritchie, Tarantino, Michael Mann, Zack Snider e videogames.

Em 2 Coelhos, cada personagem é um fio condutor. Entre cruzamentos e embaraços da narrativa, todos esses personagens se ligarão como parte de um plano de vingança, justiça e redenção. O coordenador desse grande plano é Edgar (Fernando Alves Pinto), um jovem classe média que voltou recentemente dos EUA. Ele foi para o exterior depois de se envolver num grave acidente de trânsito com vítimas fatais. Absolvido pela justiça por meio dos recursos da corrupção, uma temporada em Miami pareceu a melhor alternativa naquele momento.

Foi lá que teve tempo e ociosidade para tramar sua grande jogada, com a qual pretende matar dois coelhos em um único lance. Seu plano envolve um deputado corrupto, um poderoso traficante e membros também corruptos do Ministério Público. Sua motivação seria o justiçamento, um ato contra o sistema. Mas esta justiça é apenas cortina de fumaça para um plano muito maior. Um plano que só será revelado nos segundos finais do filme.

Poyart monta sua história com uma narrativa não-linear. Feito um cubo mágico, estabelece relações entre os personagens, e num momento seguinte conecta outro elemento, reconfigurando a trama. Essa montagem é eficaz, dá mobilidade à história, reestrutura perspectivas e prende a atenção. No leque de citações, apresenta cenas de ação, perseguição e tiroteios abusando das referências. São câmeras-lentas, travellings, imagens cristalinas de uma ação estetizada, influências claras de um cinema de ação cheio de estilo e personalidade.

No entanto, esse acúmulo de efeitos de estilo mais parece um empilhamento do que um arranjo. O excesso despersonaliza. O resultado muitas vezes cai num poluído aglomerado de efeitos especiais, que ora funcionam bem, ora extrapolam o necessário. São os efeitos, inclusive, que chamam a atenção no filme. Nesse aspecto, a produção tem uma qualidade muito boa dentro das limitações orçamentárias do cinema nacional.

Mas o filme não escapa de falhas. Em uma trama tão elaborada, com elementos de quebra-cabeça, o roteiro precisa ser forte. Neste caso, não é. São furos e conexões frágeis que estão ali para amarrar a história, muitas vezes sem muita consistência. Parte dessas falhas são encobertas pela edição rápida, pela estrutura fragmentadas, que funcionam como elementos dispersivos da atenção. Com um pouco mais de simplicidade a consistência da trama seria outra, muito melhor.

Porém, nada irrita mais que o didatismo de certas tomadas. São planos que se repetem em meio ao andamento de idas e vindas no tempo, como se fosse preciso explicar duas ou três vezes ao expectador – duvidando de sua inteligência ou capacidade de concentração – o que está acontecendo ou como algo aconteceu. Como o replay em transmissões esportivas, o filme repete cenas e momentos que estavam perfeitamente claros desde a primeira vez, ao menos para quem não saiu da sala para recarregar o saco de pipocas ou não estava teclando no smartphone. É a concessão à distração ou a dúvida na capacidade do espectador em entender o que está acontecendo.

2 Coelhos é diversão. Funciona como tal. Assume na sua premissa o desejo punidor da população contra bandidos, armados de pistolas ou armados de gravatas. Vai além no desenrolar de seu roteiro e cria uma trama secundária que logo passa à frente. Faz bem essa inversão, mas peca nos excessos. Faltou equilíbrio e apuro, faltou não impregnar-se tanto de uma linguagem sustentada pela estética publicitária/videoclip revestida de cinema cult contemporâneo. Como primeiro longa, não está mal. Poyart surge como promessa. Com apuro, pode vir a ser muito melhor.
--

quarta-feira, janeiro 11, 2012

As Aventuras de Tintim


 


The Adventures of Tintin
Steven Spielberg
EUA/Nova Zelândia, 2011
107 min.

Steven Spielberg não é mais o mesmo. Certo? Errado. Ele continua fazendo seus filmes da mesma maneira, com o mesmo apuro técnico. Afinal, ele é bom no que faz. O problema é que, bom ou não, ele continua fazendo seus filmes da mesma maneira.

Ao se repetir, Spielberg torna banal aquilo que fez dele um dos grandes nomes do cinema americano: sua capacidade de contar histórias através da grande aventura. Em As Aventuras de Tintim, não apenas se nota a banalização desta tal grande aventura, como se percebe também a ausência de uma grande história. E, no caso específico do repórter Tintim, o desperdício de um grande personagem.

Tintim surgiu nas histórias em quadrinhos em 1929, criado pelo artista belga Hergé, pseudônimo de George Remis (1907-1983). Trata-se de um jovem repórter aventureiro que, acompanhado sempre por seu cãozinho Milú, se envolve em diversas aventuras. As histórias de Tintim se tornaram muito populares na França e no mundo ao longo das décadas seguintes à sua criação. No imaginário europeu, principalmente, Tintim e suas aventuras ocupam lugar de destaque.

A adaptação de Spielberg é uma animação com atores de verdade. O diretor optou pela técnica do motion capture, tecnologia que permite captar com precisão os movimentos e as expressões faciais de atores reais e depois transpô-las para um personagem digital. É a mesma técnica que foi usada para criar o personagem Gollun de O Senhor dos Anéis e, mais recentemente, o macaco Caesar, de Planeta dos Macacos: A Origem. Não por acaso, ambos interpretados por Andy Serkys, ator que vem se especializando em criar personagens a partir desta técnica e que também está no filme, no papel do Capitão Haddock.

A trama da fita é baseada no álbum O Segredo do Licorne, publicado originalmente em 1943. Nela, Tintim se envolve por acaso no mistério de um navio desaparecido há muitos anos e enfrenta bandidos que tentam encontrá-lo a qualquer preço. Durante a investigação do mistério, alguns personagens clássicos do universo criado por Hergé vão surgindo, para alegria dos fãs. O destaque, naturalmente, fica com o Capitão Haddock, com quem o jovem repórter divide a aventura.

Não há muito mais o que dizer da trama. Em pouco tempo Tintim estará completamente absorvido pela ação quase incessante do filme. São sequências intermináveis, de um cinema hiperativo, com pouco espaço para respiros. É essa ação destemperada que prejudica o filme e banaliza o personagem. É onde se tem a repetição, em estilo e cadência, de outros filmes do diretor, como a série Indiana Jones, referência natural.

No universo do personagem dos quadrinhos é notável sua mobilidade intensa. Não raro, para quem já leu suas histórias, a imagem mais recorrente que se tem é dele correndo, em constante movimento. Mas Spielberg transformou isso em um suprafôlego que mata qualquer charme e encanto que o personagem traga. Mesmo a qualidade da ação, embora bem coordenada e pensada, não acrescenta nada de novo, não vai além de uma sucessão de artifícios, malabarismos e peripécias comuns do cinema de aventura.

A ausência de um espaço para o desenvolvimento da história, de um intervalo razoável para o assentamento do personagem e suas características, além de uma continuidade estendida além do razoável das cenas de ação, mais desconectam do que ligam. Não é difícil se desinteressar por essa ação durante seu andamento, querendo que ela termine para que a história siga adiante.

As Aventuras de Tintim pode agradar ao público infantil, ávido por movimento, embora talvez até mesmo esse possa se cansar do exagero. Mas é um filme falho em criar encanto e aproximação, como o diretor já fez com melhor mão em outras ocasiões. É certo que o cinema mudou muito desde E.T. O Extraterrestre (1982), mas uma boa história sempre pode ser contada através do cinema, não importa a época. Basta que para isso exista equilíbrio e bom senso para distinguir o que é história e o que é apenas distração.
--

terça-feira, janeiro 10, 2012

Tomboy



Tomboy
Céline Sciamma
França, 2011
84 min

O florescer da sexualidade na juventude é a temática que se repete em mais um filme da jovem diretora francesa Céline Sciamma.

Seu primeiro longa, Lírios d’água, de 2007, tratava do desejo, nascido sorrateiro e desconfiado, entre três garotas adolescentes.

Esse brotar da sexualidade está de volta em Tomboy, seu terceiro filme. Assim como Lírios d’água, a trama se sustenta na delicadeza e ingenuidade das descobertas juvenis.

Laure (Zoé Héran) acaba de se mudar com seus pais para um condomínio nos arredores de Paris. Com 10 anos de idade, cabelos curtos, feições duras e corpo franzino ela mais parece um garoto.

Logo conhece Lisa (Jeanne Disson), menina da mesma idade que também mora no condomínio. Mas ao perceber que foi confundida com um garoto, Laure não desmente e se apresenta como Michaël.

É dessa forma que Lisa a apresenta aos garotos da vizinhança, com quem Laure passa a conviver e brincar se passando por menino.

Na convivência diária, Lisa passa a se sentir atraída por Michaël, sem suspeitar que ele, na verdade, é ela.

O sentimento é correspondido, desdobrando-se entre o desejo e a inocência, construído com a delicadeza própria do fim da infância e começo da vida adolescente.

Ao conduzir a trama, a diretora acerta em não se perder na tentativa de explicar ou entender o que move Laure. Está ali uma natureza, uma sexualidade despertada. Que pode ser definitiva ou não.

Dentro do esforço de Laure em manter seu segredo guardado de seus pais e de seus novos amigos, está grande parte da inocência de seu gesto. É frágil sua farsa, uma vez que quando as aulas começarem todos irão para a mesma escola e a verdade emergirá.

É justamente essa doce ingenuidade, essa frágil mentira (que pode, claro, ser de fato o princípio de uma íntima verdade), o que faz de Tomboy uma suave, mas também vívida experiência.

Ao explorar com delicadeza essa ingenuidade, suas descobertas e incertezas, aponta o despertar da sexualidade com seus espinhos e suas delícias. O medo e a vergonha fazem parte do processo. Mas não podem barra-lo.

Em um filme agridoce, Céline Sciamma demonstra sua mão delicada na condução de histórias de afloramento. Capta a essência de um momento, submerge a dúvida, transparece desejo. Faz tudo de um etéreo sentimento, que flutua na superfície de todas as descobertas.
--

sexta-feira, janeiro 06, 2012

Sherlock Holmes: O Jogo de Sombras



Sherlock Holmes: A Game of Shadows
Guy Ritchie
EUA, 2011
129 min.

Depois de uma morna estreia, a franquia Sherlock Holmes, que promete se estender por mais alguns filmes, chega a sua segunda fita um pouco melhor. Dentro do que se propunha o filme de 2009, dirigido por Guy Ritchie (o mesmo do ótimo Snatch – Porcos e Diamanetes, de 2000), se esperava mais. Esse mais esperado vem com Sherlock Holmes: O Jogo de Sombras.

Se a “adequação” do personagem dos livros de Sir Arthur Conan Doyle para o cinema comercial – cheio de ação e malabarismos – é saudável ou não para a mitologia do herói literário, isso é discussão para outra seara. Até mesmo porque, pelo que pude apurar, os fãs mais aguerridos do personagem original parecem ter gostado do modo como ele foi tratado pelo “cinemão”.

É levando em consideração a proposta desse “cinemão” que o tratamento dado neste filme ao herói de mente brilhante se sai melhor que no primeiro. Antes de tudo, porque não ofende a inteligência do espectador com uma trama frouxa demais, embora insista muito em cacoetes positivos do primeiro filme, mas que agora se tornam não apenas excessivos, mas desgastados.

Na nova aventura, Holmes (Robert Downey Jr.) e Watson (Jude Law) vão enfrentar o professor Moriarty (Jared Harris), que tenta através da manipulação de diversos acontecimentos geopolíticos do final do século 19, provocar o início de uma guerra mundial.

Com cenas de ação melhor coordenadas e um ritmo mais frenético, embora não asfixiante, o filme ainda consegue manter a trama tensa. Isso não aconteceu no primeiro exemplar da franquia, que cai em certa monotonia pouco depois da primeira metade. Downey Jr. continua bem no papel, evocando um misto de cinismo e fragilidade, algo como uma certeza dúbia que não parecia afetar o personagem da literatura. Essa personificação mais caricata, quase histriônica às vezes, confere charme e humor à figura do detetive genial.

O diretor Guy Ritchie mantém seu estilo, algumas vezes marcado demais por uma estética repetida, previsível, que vêm desde Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, de 1998. Assim, estão lá os planos em câmera lenta que aceleram subitamente, os socos cuidadosamente sonorizados para um efeito mais devastador e, claro, muitos tiros.

Mesmo se repetindo, o diretor acerta a mão no conjunto do filme, que dentro do formato meio altista de Hollywood, atinge fagulhas de boas sacadas. Uma delas está no embate final. De natureza quase anticlimática, a cena é construída mais pelo suspense da boa montagem do que pela ação circense que se poderia esperar.

Com espaço para uma homenagem ao ator Heath Ledger e seu antológico Coringa em Batman – O Cavaleiro das Trevas, este segundo episódio de uma franquia com bastante fôlego é divertido sem precisar de muita apelação e sem ofender nenhuma inteligência.
--

quarta-feira, janeiro 04, 2012

A Guerra está Declarada



La Guerre est Déclarée
Valérie Donzelli
 França, 2011
100 min.

Dirigido pela atriz Valérie Donzelli, que se arrisca na direção pela segunda vez (seu primeiro filme, La Reine des Pommes, de 2009, não foi lançado no Brasil), A Guerra Está Declarada é um antimelodrama. De tom quase ensaístico, faz da sobreposição de camadas e de adereços narrativos uma distopia do drama. Caminha à margem do musical, da opereta pop, do teatral, mas é, em sua semente, um drama tenso.

De Romeo e Julieta nasceu Adão, filho da tenacidade. É o que se pode dizer da família cujo drama é o estopo do filme. Afrancesando, temos Roméo (Jérémie Elkaïm) e Juliette (a diretora Valérie Donzelli), jovem casal cujo filho Adam – com pouco mais de um ano – é diagnosticado com um tumor no cérebro. O resto é a tenacidade do casal para enfrentar o problema; maratona de exames, tratamentos, cirurgia. É a guerra de dois pais em busca de cura para seu filho.

Uma história assim praticamente clama pelo melodrama. Mas é disso que o filme foge. Nessa fuga, faz da narrativa uma pequena salada: inventiva, original e caricata; mas também desconfortável e, por vezes, disfuncional. Donzelli acena para o musical quando a trilha parece conduzir os personagens. Em determinado momento, desmonta o drama de uma situação grave como uma canção inusitada.

Muitas vezes em A Guerra está Declarada é como se os personagens vivessem uma letargia acelerada, ou como se uma fina película onírica se sobrepusesse à realidade. Esse desvio narrativo demora a ser absorvido pelo espectador desavisado. Uma vez compreendida a chave da estrutura se monta, fica mais fácil apreciar sua dinâmica, essa fluência específica.

Mas estas opções não evitam que o filme oscile, se mostrando irregular. Alterna boa encenação com a monotonia de tempos mortos. Torna-se em alguns momentos dispersivo, contribuindo para a desatenção do público pela cansativa irresolução da cena, da sequência e mesmo da trama principal. Em sua estrutura quase ensaística, frente ao desmantelamento do drama por elementos destoantes da gravidade do momento, arrisca-se e se perde muitas vezes ao longo de sua duração.

Não se pode, contudo, deixar de reconhecer o tom atrevido da obra em arriscar uma descompressão do melodrama através de uma prosaica opereta pop. Sua trilha sonora chega a ter mais consistência que a própria narrativa e funciona, de quando em quando, como pontuação e enlace. Há também o carisma da diretora/atriz, que pesa bastante a favor do filme. Mas não o bastante para evitar que durante seu desdobramento o desejo de que a hora passe logo nos ataque de vez em quando.
--
 

Eu, Cinema Copyright © 2011 -- Powered by Blogger