sábado, outubro 23, 2010

O Sussurro dos Deuses

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Gerumaniumu no Yoru
Tatsushi Ômori
Japão, 2006
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Rou é um jovem que vaga pelo mundo e que carrega sobre os ombros o peso do hediondo. Sua marcha errante é causa e conseqüência de um crime cometido com a crueldade desumana do vazio existencial. Rou tem em si o ódio, o não-pertencimento, o sarcasmo contra a fé, contra Deus e contra si mesmo. E ele torna-se, nos descaminhos da vida, a diluição de sua própria bestialidade, vítima de si e do crime que carrega.

Rou é síntese. Ele sintetiza a insolvência do ódio, da ira e do desamparo diante da fé corrompida; a fé que não resiste à sordidez intrínseca dos homens que a difundem e defendem. E no absoluto pragmatismo da insolvência de sua existência, o que resta são os meios de extravasar todo esse acúmulo existencial, todo o mal religioso dentro do si. E sua válvula é a perversão, a violência e a sordidez. Uma sordidez que somente certos tipos de inocência são capazes de criar. Porque entre o maltrato a um dócil animal, o estupro e a subjugação do semelhante, Rou trás no rosto, e até nos gestos, uma inocência inviolável.

Assim, o diretor Tatsushi Ômori conduz seu arquétipo de ronin às avessas, entre um choque e outro, diante da devassidão de seu meio.

Rou é um regressado à escola de padres católicos onde estudou. Foragido do crime que cometeu, encontra lá trabalho e abrigo. Logo no início temos o cenário vil em que se dá a trama. Vemos o ato grotesco de abuso sexual no qual um padre é masturbado por uma criança enquanto lê trechos da Bíblia em latim.

A sordidez desse mundo esmaga Rou. É o estopim de sua indissolúvel ira, de seu indissolúvel ódio e da vazão que essa indissolubilidade necessita. O convívio entre o sacro e o santo, os limites vagos entre o divino e o avesso, o cinismo covarde, opressor. Tudo é a razão de ser do ódio de Rou, que o transforma também em sordidez, também em vilania.

Como quando Rou se confessa e admite um estupro. Diz que desse estupro nascerá uma criança e que ela se chamará Emanuel. Recebe como penitência três orações. Mais tarde, enquanto coloca seu confessor –um velho paraplégico - na cama, afirma que o pecado que confessou e do qual já foi perdoado é um pecado futuro, ainda não cometido. Argumenta que uma vez que o pecado foi confessado e perdoado antes de ser cometido, ele agora tem a anuência divina para cometê-lo, caso contrário se quebraria a lógica do sagrado sacramento da confissão e do perdão. Agora não é mais um pecado, é uma profecia. Por isso a criança que vier desse estupro deverá se chamar Emanuel.

É em meio a essa lógica absurda que Ômori nos envereda por seus caminhos silenciosos. Seu filme vai além da religião e se fixa, talvez, no âmago da consciência do homem, naquilo que pode ou não ser chamado de sua natureza e sua envergadura humana. A perversão não é um fim em si mesma, ela é uma intrínseca amargura que afeta doentiamente seus personagens, fazendo-os conviver e vagar entre a culpa esquecida, o ato repulsivo e a irrelevância do após. Consolam-se a si mesmos, vingam-se a si mesmos. E preservam em sua violência degradante a inocência das criaturas de Deus.
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