terça-feira, outubro 19, 2010

Irreversível

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Irréversible
Gaspar Noe
França, 2002
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É difícil enxergar os limites entre o aceitável e o inaceitável dentro de uma proposta artística de ruptura ou de choque. Os limites do bom gosto, os limites da tolerância, os limites da liberdade de se fazer o que se quer, do jeito que se quer. Tudo se torna cinzento á partir de certo ponto. Quem, entre crítica, realizadores, estetas ou público em geral pode se arvorar a dizer e definir o que pode e o que não pode?

Apresentado no Festival de Cannes de 2002, Irreversível, filme do diretor franco-argentino Gaspar Noe, causou reações violentas na platéia. Mais da metade da sala saiu no meio da projeção. As pessoas, ao se retirarem e passarem pelo diretor, faziam questão de chamá-lo de doente, ou coisas piores. Gaspar Noe apenas sorria.

Irreversível é uma história de vingança e violência contada de trás para frente. Começa com a execução do ato vingativo e vai regredindo. Mostra, inversamente, como as coisas foram dar num fim tão violento. Caminha-se para trás como meio, paradoxal, de acentuar a irreversibilidade do tempo. E para que o efeito seja melhor percebido usa-se o recurso do plano-sequência.

Impossível não se incomodar com o realismo e o absurdo que o diretor quis impingir ao filme. Desde o desconforto da câmera balançando nas primeiras tomadas, até o esmagamento de um rosto numa boate gay, passando pelo mais que polêmico estupro em tempo real protagonizado por Monica Belucci, tudo na primeira metade do filme causa mal estar.

A pergunta que se faz – e essa tem uma relevância fundamental como pergunta – é se aquelas cenas, da maneira como foram mostradas, seriam mesmo necessárias. Seriam, de fato, indispensáveis para a proposta do diretor? Outros, mais azedos com o filme, vão mais além e perguntam, já com a resposta pré-fabricada em suas mentes: existe alguma proposta no filme?

O Tempo destrói tudo. A chave para entender Irreversível é dada antes mesmo da violência começar, mas só fará sentido quando se chega no fim, ou ao começo, da história. O próprio conceito de “chegar ao começo” já é um indicativo de que o caminho do tempo é o atuador final da tragédia e que uma vez consumada no início da narrativa, só nos resta investigar o caminho do tempo até onde tudo começou. A dimensão do sentido do adágio “o tempo destrói tudo” só pode ser alcançado depois de se retroceder no tempo, aquele que é, inevitavelmente, irreversível.

Talvez seja impossível justificar plenamente uma cena de estupro filmada sem cortes e com a angustiante e torturante duração de mais de 9 minutos. O ato, as palavras ditas, o espancamento final, o ódio gratuito, o doentio da cena, tudo é elevado a um nível quase insuportável. Ali se testou os limites do tolerável. A maior parte do público e da crítica não tolerou.

Passada a violência da primeira metade, o filme segue sua regressão no tempo e o que vemos é a definição, através de diálogos, das relações entre os personagens. De uma neurótica conversa no metro, até um despertar repleto de uma delicada beleza de promessa do dia. Uma última cena rica em sensualidade, em luminosidade, onde tudo parece ser a garantia de que o dia, a noite e a vida serão bons.

O que se ganha com o retrocesso temporal da narrativa é uma perspectiva inversa, através da qual se pode ter a noção da felicidade casual, cotidiana e sua real importância de momento, uma vez que já se sabe como terminará. A força das imagens que ilustram o fim daquele dia - e talvez o fim daquelas vidas, ao menos como eram no início do dia – servem para contrapor tudo, para explicitar a forma como o tempo destrói tudo. Se a voltagem das imagens excedeu o parâmetro do bom gosto, eu pergunto qual é o parâmetro. Acho que ninguém sabe. Gaspar Noe arriscou, conquistou inimigos, mas fez o filme que queria fazer.

Não é fácil gostar de Irreversível, menos ainda defendê-lo. Em sua construção, no modo como foi realizado, cabem discussões diversas, investigações de limites, fronteiras, abismos. É polêmico propositalmente, mas não encontro razão para classificá-lo como ruim. Tem uma proposta e se os meios para expô-la ultrapassaram alguma linha invisível do aceitável, não serei eu a dizer onde estava a linha.

Sim, deixou-me incomodado, intranquilo, atordoado. Mas no final se mostrou um filme ousado, arriscado, singular. Divide opiniões de forma acirrada, visceral. É filme para se gostar ou não, em definitivo, de forma irreversível.
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1 comentários:

oráculo disse...

Eu gosto e defendo... e acho fácil fazê-lo.

 

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