sexta-feira, dezembro 23, 2011

A Fera



Beastly
Daniel Barnz
EUA, 2011
86 min.

A Fera surge na esteira de uma nova onda: a das adaptações modernas de contos de fadas atualizadas para adolescentes. Esse parece ser um efeito colateral do sucesso da Saga Crepúsculo, que adolesceu (e também idiotizou) o universo dos vampiros, dando-lhe uma roupagem romântica e anacrônica. É nessa chave romântica e adolescente que uma história clássica como Chapeuzinho Vermelho se transforma em A Garota da Capa Vermelha; ou que Branca de Neve e os Sete Anões se torna Mirror, Mirror, com Julia Roberts no papel da Rainha Má.

Nessa linha, vem este A Fera. Emulando o conto A Bela e a Fera para os dias atuais, o filme parte de um argumento fraco para construir sua narrativa. Kyle (Alex Pettyfer) é um jovem narcisista e egocêntrico. Filho de um milionário, estuda num dos melhores colégios da cidade e está em campanha pela liderança estudantil. Seu discurso de campanha prega a beleza estética acima de qualquer coisa. Em suas atitudes, Kyle despreza as pessoas feias, estranhas, que não se enquadram no padrão de beleza vigente.

Ao humilhar uma das alunas, que se veste e age de forma estranha, será amaldiçoado por ela, que se revela uma bruxa. A maldição o transforma numa criatura desfigurada. Para não ficar deformado pelo resto da vida, tem o prazo de um ano para encontrar alguém que se apaixone por ele, mesmo com aquela aparência. Obrigado a se afastar da escola e até de seu pai (que já não lhe dava muita atenção), ele se isola num apartamento da periferia. É onde encontrará Lindy (Vanessa Hudgens), por quem se apaixonará e tentará de tudo para fazê-la se apaixonar por ele.

Nos desdobramentos da trama os personagens que aparecem, as situações que se sucedem e a estrutura narrativa pouco se sustentam. A inconsistência do roteiro, as atuações pífias, tudo colabora para que o filme se desmonte numa completa falta de força ou drama. Mas há lago de intangível e onírico na estética noturna e sombria de seu miolo. É um vislumbre de algo positivo, de bem realizado, de atmosférico. Poderia, não fossem as incontáveis fraquezas de sua estrutura fílmica, salvar a obra da irrelevância e da superficialidade indesculpável.

Dentro dessa nova onda de filmes românticos adolescentes de contos de fadas, A Fera pode agradar aos jovens menos exigentes e mais românticos. Em um filme que tem na concessão ao menos feio (a aparência “deformada” de Kyle não chega a ser tão feia assim) sua principal proposta estética, não há muito de “fera” na figura de seu protagonista. Afinal, é preciso que as moçoilas da sala de cinema sejam capaz de suspirar pelo mocinho regenerado, mesmo quando sua aparência é de fera.

Sendo mais do mesmo, requentado e com pouco sal, A Fera tem ao menos o mérito de ensaiar alguma substância atmosférica em sua metade. Passa longe de cumprir a promessa, mas é válida que ela tenha existido. Fica ao menos o consolo de, entre uma enxurrada de filmes ruins, ser menos ruim do que se podia esperar.
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domingo, dezembro 18, 2011

O Espião Que Sabia Demais


 

Tinker Tailor Soldier Spy
Tomas Alfredson
França/Reino Unido/Alemanha, 2010
Duração: 137 min.

Um bom romance do escritor John le Carré, autor notabilizado por suas tramas de espionagem passadas durante a Guerra Fria; um bom diretor como Tomas Alfredson, responsável por um dos melhores filmes de vampiro dos últimos anos – a versão original sueca de Deixa Ela Entrar. É a soma desses dois fatores que resulta no filme O Espião Que Sabia Demais, baseado em livro homônimo de 1974.

Mas a pergunta que surge diante de seu argumento é o quanto uma trama de Guerra Fria pode ou não estar datada, 21 anos após a queda do muro de Berlin? Claro que por essa lógica qualquer filme histórico seria datado, e tal pensamento é simplesmente ridículo. Mas no caso específico da Guerra Fria, em contraste com o mundo atual, parece haver um indissociável anacronismo. Especialmente no caso da espionagem.

Reside aí parte do enfraquecimento do que está na superfície de sua trama: espionagem, contraespionagem, traição. O que a sustenta, no entanto, é aquilo que brota das entranhas do sistema: relações de poder, paranoia, vingança e, novamente, traição; num sentido mais pessoal e doloroso.

Mas mesmo este estofo consistente, capaz de fisgar o espectador com sua articulada trama de vigilância, investigação e suspense, perde-se pela má utilização daquilo que deveria ser a melhor qualidade do filme: o intrincado da trama.

Antes de “ser aposentado”, George Smiley (Gary Oldman, correto no papel) fez parte da cúpula de uma divisão especial dentro do serviço secreto britânico, chamada de Circo. Instalados em Londres, em um endereço desconhecido até pelo ministro a quem se reportam, essa cúpula comanda operações e mantém relatórios de máximo segredo de Estado. Quando surge a suspeita de que dentro do Circo há um agente duplo infiltrado, uma série de desdobramentos levarão Smiley a sair de sua aposentadoria e chefiar uma investigação para encontrar o traidor.

A simplicidade da trama é ilusória. Seu funcionamento como suspense, jogo de astúcia e thriller dependem de intrincadas relações entre muitos personagens, o histórico de cada um, suas ações e as consequências delas. Pois é justamente na construção dessa trama que o filme se atrapalha, especialmente no que diz respeito à forma como foi montado.

Na possível intenção de estabelecer suspense ou reter informações para criar reviravoltas na história, o filme se monta de forma confusa, dificultando a associação entre personagens, fatos e implicações. Em sua estrutura, parece perdido entre uma excessiva busca de fidelidade ao livro e o desejo de não ser literário enquanto cinema. Para sair desse impasse, opta por certo malabarismo na fragmentação de parte da trama, montando algumas sequências com uma não-linearidade sem grande resultado.

Essa fragmentação até colabora para segurar o suspense e trazer certas revelações no tempo certo, mas prejudica demais a conexão inicial com a narrativa. No balanço final, mais atrapalha que ajuda. Pois ao dificultar o rápido estabelecimento de conexão do público com as intrigas da história, desperdiça parte da riqueza de seu drama.

Sofrendo dessa grave falha, que chega a por em risco todo o filme, O Espião Que Sabia Demais só se sustenta porque tem uma boa história de espionagem. É rico em sua complexidade e na construção de um passado ressentido, de tempos implacáveis, de homens implacáveis. Pode-se notar em seus desdobramentos uma força dramática intensa, mas lamentavelmente subaproveitada por equívocos no modo como a história é contada.
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sábado, dezembro 17, 2011

Tudo Pelo Poder


 

The Ides of March
George Clooney
EUA, 2011
101 min.

Com um elenco de primeiro time - e não um primeiro time de celebridades, mas de talento - George Clooney volta à direção em um filme contundente sobre o caráter da lealdade e a dissolução da integridade. Conhecido por seu engajamento político, Clooney mergulha nos bastidores de uma campanha eleitoral e nos apresenta um retrato pessimista das entranhas da política e dos desvios a que o feroz jogo pelo poder é capaz de levar.

Dentro do partido Democrata, durante a campanha pelas eleições primárias (nas quais se define quem do partido será nomeado candidato a presidente), a disputa está polarizada entre dois nomes. Um deles é o governador Morris (George Clooney), político exemplar e íntegro, conhecido por sua determinação em seguir seus princípios. É ele quem lidera as pesquisas, ainda que com uma vantagem pequena.

O chefe da campanha de Morris é Paul Zara (Philip Seymour Hoffman), um experiente estrategista que preza, acima de tudo, pela lealdade. Seu braço direito é o brilhante assessor de imprensa Stephen Meyers (Ryan Gosling), um jovem talento que acredita com veemência na sinceridade de Morris e em sua competência para governar e mudar o país.

Na coordenação da campanha adversária está o manipulador Tom Duffy (Paul Giamatti). É ele quem tentará desfalcar o time adversário atraindo para seu lado o jovem Meyers. Para isso, usará de lisonjas e de informações sigilosas que podem mudar o rumo dos acontecimentos. Será o encontro furtivo entre Duffy e Meyers que desencadeará uma série de acontecimentos que revelarão o tamanho da perfídia do jogo político e a inevitável deterioração da integridade e do caráter.

Baseado na peça Farragut North, de Beau Willimon, Tudo Pelo Poder consegue se despir do cinismo que frequentemente contamina filmes sobre os bastidores da política. É uma obra franca e alcança essa franqueza por seu ritmo afinado, construído na fluência de uma montagem eficiente. Sua fluidez de thriller não diminui sua aderência de reflexão sobre a condição humana. Em especial quando movida pela vingança, pela vaidade e pelo poder.

A articulação clara de seu roteiro reserva surpresas, mas não manipulações do público. Se não chega a ser cru na ilustração da queda, tampouco é condescendente com a natureza medonha da corrupção do caráter. Trata do completo esfacelamento dos princípios, do tipo de queda de quem ascende erguido pela coerção, mas também pela decepção atroz diante da constatação do meio, sua realidade mais cristalina e a mancha que não se pode mais limpar.
 
Através da política, Clooney filma o homem. Suas articulações de bastidores eleitorais não são diferentes do cotidiano mundano. O reflexo é cristalino. A diferença é que ali está emoldurado pela ilusão de ser político; a ilusão de algo inerente e exclusivo das entranhas desse jogo. Mas não é. Se olharmos bem, também estamos refletidos nela.
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Românticos Anônimos



Les Émotifs Anonymes
Jean-Pierre Améris
França/Bélgica, 2010
80 min.

A delicada simplicidade, a boa química entre os atores e até mesmo alguns clichês de gênero são os elementos que dão sabor a esta comédia romântica francesa. Um dos gêneros mais pobres de Hollywood, mas que quando realizado com boa sintonia e franca despretensão pode resultar em algo pelo menos simpático.

Em uma entrevista de emprego, a tímida Angélique (Isabelle Carré) explica que o segredo de um bom chocolate está em seu tanto de amargor, não em sua doçura. Uma explicação que não deixa de ser metáfora para a vida. Ela está diante de seu futuro chefe, o austero Jean-René (Benoît Poelvoorde), dono de uma fábrica de chocolates que já foi uma das melhores, mas que tem experimentado a decadência.

Ouvindo a apaixonada explicação de Angélique sobre chocolates, Jean-René a contrata de imediato como representante comercial. Acontece, porém, que ela achava que a vaga era para chocolateira, não vendedora. No entanto, ela aceita, porque simplesmente é incapaz de dizer não.

Angélique sofre de transtorno de personalidade esquiva, que no filme é chamado de “transtorno emotivo”. Trata-se de uma timidez aguda que a faz evitar a todo custo ser o centro das atenções e que a impede de se relacionar socialmente com naturalidade. O que ela não sabe é que seu novo chefe sofre do mesmo mal, especialmente em relação às mulheres.

Naturalmente, como manda a cartilha do gênero, eles irão se apaixonar. Será então a problemática de seus transtornos o complicador dessa relação. Suas barreiras psicológicas, as tentativas de contornar ou superar essas barreiras, é o que garante o riso durante a trama. É de onde também brota o que o filme tem de terno e simpático.

Ambos buscam um alívio para seus transtornos. Jean-René faz sessões de psicanálise. Angélique frequenta um grupo de apoio, os emotivos anônimos (que é o título original do filme em francês). São infelizes em suas condições emotivas, ressentem-se da solidão de suas vidas.

A aproximação entre eles, a proximidade efetiva, será como a receita de chocolate. A doçura da atração, do carinho e do afeto estará sempre permeada pelo amargo da dificuldade que sentem em estabelecer contato sem sofrerem as reações de seus transtornos. Nasce disso um companheirismo improvável, repelente e atrativo ao mesmo tempo. Uma graça doce e amara, um humor de cadência melancólica.

São essas pequenas sutilizas que contribuem para diminuir o incômodo do roteiro esquemático, fadado à repetição previsível do gênero. É da singularidade dos protagonistas, do carisma contagioso dos dois atores e de sua afinada sintonia que vem o sabor diferente de um formato quase sempre igual. Assim é Românticos Anônimos.

A boa diversão dosada de afetividade, princípio desvirtuado do gênero inicial, tornado gênero caça-níquel do cinema americano, é o bom diferencial deste filme. Um respiro agradável, sem pretensões e com alguma graça. Raridade cada vez maior em filmes de comédia romântica.
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quinta-feira, dezembro 15, 2011

Melhores de 2011



Não há muito o que argumentar. Fugir das listas de final de ano é ficar de fora da discussão. Sim, são clichês e repetitivas, mas todo mundo gosta. O Eu, Cinema lista abaixo a relação dos 15 melhores filmes vistos em 2011. Não estão em ordem de preferência, são apenas os melhores – dentre os que foram vistos - e ponto. Fique a vontade para discordar, debater e também montar a sua e publicar nos comentários.

Melancolia: Atravessar Melancolia não é uma experiência pela qual seja simples passar. Lars von Trier nos leva a uma realidade onírica de imagens belíssimas. Imagens que muitas vezes nos provocam uma angústia e um desconforto sutil, mas intenso. Algo que nos incomoda na alma, para além do consciente.


A Pele que Habito:Na soma das influências, Almodóvar compõe uma história em que o bizarro toma proporções assustadoras, mas com sua inconfundível assinatura. Além das obsessões recorrentes, essa assinatura está no modo como são trançados os fios narrativos da trama, sempre com uma cadência afinada, suave, sem sobressaltos.


 A Árvore da Vida: “A Árvore da Vida divaga pelo espírito humano, pela busca do divino, pelas perguntas sem respostas; como uma filosofia que vai da afetação macrocósmica ao minimalismo da existência humana. Não se revela nunca de forma clara. Pode até não querer dizer nada, mas o faz com uma rara beleza metafísica e desconcertante.”


Balada do Amor e do Ódio: “A tragédia inevitável resulta na morte de qualquer possibilidade. É a perda irreparável de algo sublime pelo qual se lutou no início e que foi esquecido em meio a tanto ódio e desejo de vingança. Do amor, que era sincero em ambas as partes, ainda que diferente na forma e no trato, criou-se o ódio e a violência sem sentido. Quando tudo termina, resta o sangue na cruz imensa e onipresente do catolicismo, tão determinante nos rumos da nação. É o mesmo sangue que manchou e desfigurou essa nação. Aos perpetradores desse sangue só resta o choro convulso e a culpa inalienável.


Biutiful:Ao sair da sessão não se pode, imediatamente, deixar o filme para trás. Ele te acompanha, está em seus poros, em seus olhos, em sua alma. Essa capacidade de permanecer por tanto tempo conosco depois do fim é uma coisa rara, uma capacidade cinematográfica única que só os grandes filmes possuem. Biutiful é um deles.


Gainsbourg - O Homem queAmava as Mulheres:Com uma bela fotografia, recheado pelas ótimas canções de Gainsbourg, o filme tem uma cadência elíptica e vibrante, capaz de nos remeter à efervescência dos anos 60 e 70. Um trabalho de montagem competente que contribui para a aura fantasiosa que o filme, desde o início, apresenta. Pois para um ícone tão a frente de seu tempo, nada mais apropriado que uma generosa dose de fantasia.


Homens e Deuses: Homens e Deuses é um filme que diz muitas coisas, nem sempre com palavras, nem sempre fáceis de entender. A mim trouxe, entre outras coisas, a mensagem de que a crença, a fé, seja ela no que for, transforma e fortalece o homem. E o mundo precisa muito de homens transformados e fortalecidos.


Incêndios:Incêndios”é mais que um retrato da guerra, do horror e das vidas tiradas ou transformadas pelas atrocidades político-religiosas de sociedades pautadas pelo ódio e pelo sentimento de vingança. É acima de tudo um exemplo, um poema negro pelo rompimento desse ciclo, pela aceitação da vida e pela pacificação do espírito através do perdão e do desvelo de toda verdade.


Isto Não é UmFilme:O título deste filme não é uma figura de linguagem, é uma verdade. Isto Não é um Filme não é um filme porque seu idealizador, o premiado diretor iraniano Jafar Panahi, está condenado em seu país, proibido de fazer filmes. É com o desejo de resistir que o diretor de obras como O Círculo e O Balão Branco usa de um artifício para dar voz a seu dilema. Ele está proibido de filmar, mas não de ser filmado; ele está proibido de escrever novos roteiros, mas não de ler roteiros já escritos.”



Meia-Noite em Paris:A fantasia que Wood Allen constrói a partir das improváveis peripécias de seu protagonista por uma Paris mítica, revela não apenas uma deferência aos grandes artistas que coabitaram a cidade no início do século. Mas evidencia também a idealização do passado que afeta tantos de nós, credores de um saudosismo daquilo que sequer vivenciamos e que por isso mesmo cremos ser melhor que o presente. Nesse sentido, vivemos a permanente insatisfação do tempo, achando sempre que o antes era melhor que hoje.


Namorados para Sempre:Ao contrapor o romance inicial com a dureza da realidade de um casamento que se desgasta, o filme se mostra disposto a nos colocar no chão, a nos tirar do conforto lírico do romance idealizado. Revela, com isso, que a vida segue em frente. Isso me lembra uma frase de um filme que deve estrear ainda este mês, The Romantics, quando alguém diz que qualquer um é capaz de um grande gesto romântico, o problema é o que vem depois.


Não Me Abandone Jamais: Não há, na tragédia que os assombra, um sofrimento intenso, de esmagar. Está tudo nos detalhes, nos gestos e na solidão. É a sutileza da direção, a fotografia de atmosfera melancólica, a passividade da aceitação de seus destinos. Evitando sufocar a história com uma pesada constatação da dor de cada um, opta-se pelo frescor da juventude e pela tristeza intrínseca no sentimento de cada um deles.”


O Garoto da Bicicleta:O Garoto da Bicicleta não é cinema direto, é vida direta. Como na vida, o amargor está presente. Como na vida, o doce da experiência é raro e pontual. Mas neste filme dos Dardenne, o reparo dos males cometidos, a educação pelo amor, a possibilidade do novo e do bom na vida amarga de um jovem abandonado pode ser a vida em sua esfera menos comum, mas tão possível quanto toda ela.”


O Homem do Lado: "O Homem ao Lado se revela uma crítica contundente e pessimista a uma elite despreparada para a convivência social por estar permanentemente encerrada num anacronismo pedante e vazio; sempre cercada dos mesmos acólitos destituídos de qualquer pensamento crítico e que servem apenas como legitimadores dissimulados de uma inexistente relevância social ou artística. Não fazem parte do mundo real, apenas de seus pequenos mundos.


Saturno em Oposição: "Saturno em Oposição é um filme sobre a vida, o tempo e a amizade. Sobre sentimentos impossíveis de serem expressos, apesar de estarem à flor da pele. É uma obra que desliza diante de nossos olhos, levando em sua passagem os sentimentos duros e suaves que a vida nos impõe ou proporciona. Uma história na qual a beleza não está no que se vê de imediato, mas no que se viu – sem se perceber – enquanto o tempo passava.
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segunda-feira, dezembro 12, 2011

Adeus, Primeiro Amor



 

Un amour de jeunesse
Mia Hansen-Løve
França, 2010
110 min.

A diretora francesa Mia Hansen-Løve não nega a forte influência que a Nouvelle Vague (movimento renovador do cinema francês, surgido nos anos 60) tem em sua obra. Nem poderia. Os traços dessa influência são claros em seus filmes. Adeus, Primeiro Amor, o mais recente, confirma isso. Mas não com uma submissão mecânica, e sim com uma fluência delicada muito própria, atual e sensível.

O filme se passa em Paris. Camille (Lola Créton) tem 15 anos e namora Sullivan (Sebastian Urzendowsky), de 19. Ela experimenta dessa relação o amor incontido, cheio de um arrebate incondicional. Como é natural, aos 15 se crê que todo sentimento é eterno e que sem o objeto desse amor não se pode viver. Sullivan também ama Camille, mas ao contrário dela acredita que precisa amadurecer, conhecer o mundo, vivenciar experiências. Para isso ele pretende viajar por dez meses pela América do Sul, junto com dois amigos.

Sem compreender ou aceitar, Camille resiste e se afunda em uma melancolia que ela mesma assume como parte de sua personalidade. Antes dele partir, se despedem longamente em tardes de amor e finais de semana na casa de campo da família dela. Com o ressentido da perda iminente, Camille oscila entre o drama da recusa e o amor imenso. Depois que Sullivan parte, só resta a ela as cartas, enviadas sempre de lugares diferentes. Aos poucos, as cartas vão rareando, até cessarem totalmente.

Os anos passam e Camille sobrevive à depressão e à tristeza ao se dedicar ao estudo da arquitetura. Ela considera a beleza desse trabalho o estímulo que a fez encontrar algo de alegre em sua vida. Não a felicidade - sempre distante de seu rosto melancólico sem sorriso -, mas a poesia de um sentimento que pode ser traduzido nas formas e disposições de objetos. No caso de Camille, reflexo de sua introspecção, que afasta e rejeita o passado, como ficará sempre marcado em seus projetos.

Surge então Lorenz (Magne Håvard Brekke), professor de arquitetura. De origem norueguesa, ele se apresenta para a primeira aula com uma provocação sobre o “lume” como elemento de arranjo interior. Instiga a sala a definir seu significado e função. Coloca-o não apenas como uma fonte para iluminar um ambiente, mas também para moldá-lo a partir da escuridão; em favor de um sentimento, em favor de uma memória. Será esse o primeiro encantamento de Camille com o professor, com quem adiante passará a viver. Até que Sullinvan reaparece.

Composta de largos silêncios, a narrativa de Adeus, Primeiro Amor desliza com uma textura sóbria e consistente. Seus silêncios, no entanto, não significam contemplação ou estagnação. São antes o reflexo da passagem do tempo em amplitudes diversas.

Modulam essa amplitude - com uma intensidade suave, mas precisa - canções como Volver aos 17 e Gracias a La Vida, na voz da cantora chilena Violeta Parra. Elas fazem parte da trilha sonora, que em sua eclética mistura – inclui Frank Sinatra e Johnny Flynn – traduz sentimentos de forma envolvente.

Em sua passagem pela vida, pelo amor, pela perda; com a partida e o regresso, o renascimento e o desapego, Adeus, Primeiro Amor toca em um sentido particular do sentimento. É represa em alguns momentos e água livre noutros. Simples, linear. Preenche lacunas com quietude e esta quietude pode até cansar em alguns momentos. Contudo, carrega na sua narrativa um frescor, uma energia muito própria.

É melancólico, não melodramático; triste, não pesaroso. Faz em sua construção uma prece de graças á vida; tem na sua luminosidade quieta um regresso aos 17; entrega em seu final a plenitude delicada de quem compreende que a metáfora da vida é um rio. Entre as margens do rio, tudo é possível, mas nada permanece.
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sábado, dezembro 10, 2011

Forças Especiais



Forces Spéciales
Stéphane Rybojad
França, 2011
109 min.

Forças Especiais começa como um filme de Tony Scott, vira um filme de Michael Bay e termina como algum filme recente de Peter Weir. Após o fim, um letreiro explica que a película é uma homenagem aos soldados mortos no Afeganistão e aos jornalistas que se arriscam em zonas de guerra para informarem ao mundo. A nobre intenção, contudo, não salva o filme de sua falta de roteiro e absoluta inconsistência.

Helicópteros, homens paramentados, cortes rápidos, trilha crescente, câmera nervosa. A combinação “Tony Scott” de cinema nos joga para o meio da ação. Um grupo de soldados franceses das forças espaciais realiza uma ação precisa. Missão cumprida. O mesmo ritmo alucinado segue para o Afeganistão onde a jornalista Elsa (Diane Kruger) investiga as atrocidades de um líder Taliban. Descoberta, é capturada pelo grupo e mantida como prisioneira.

Desacelera. Festa de aniversário de Kovax (Djimon Hounsou), membro do grupo de operações especiais. Todos os outros membros estão lá. Mal a festa começa, são chamados para mais uma missão: resgatar a jornalista francesa. As decisões políticas e militares que levam à operação são mostradas com uma superficialidade embaraçosa, tamanho festival de frases clichês mal conectadas entre si.

Durante a operação - entre chegada, resgate e fuga – entra o cinema de Michael Bay. Câmeras contornam os soldados mostrando a ação com o melhor da estética “poser”. Cada tiro, deslocamento, avanço e recuo ganha um ar grandioso, heroico, viril. Sucedem-se atitudes de bravura, heroísmo sem sentido, apenas porque a cena resulta em mais uma pose para a câmera.

Entre uma pose e outra do esquadrão, o vilão Zaief, encarnado por Raz Degan, distribui malvadezas e ordens tirânicas. Quer cabeças. Difícil levá-lo a sério. Sua caracterização, seus olhos esbugalhados e cenho fechado lembram demais o boneco Achmed - O Terrorista Morto, personagem do ventríloquo comediante Jeff Dunham.

Depois das poses, o sofrimento. O plano de fuga inicial dá errado e todos eles têm de atravessar o deserto escaldante e as montanhas geladas na esperança de sobreviverem, enquanto são perseguidos por infatigáveis homens de Zaief. Entra então um pouco de Peter Weir. A vasta paisagem, os planos abertos da natureza bela e hostil. Os viajantes que seguem a pé lutando contra as intempéries, a trilha épica da grande jornada.

Forças Especiais é todo costurado com remendos preguiçosos, uma colcha de retalhos que resulta num filme desinteressante, inconsistente e sem sentido. É como se na ânsia de fazer cenas de ação e tiroteio com plasticidade e “estilo”, todo o resto tenha sido deixado de lado: personagens, argumento, roteiro e trama.
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sexta-feira, dezembro 09, 2011

Para Poucos



 Happy Few
Antony Cordier
França, 2010
103 min.

A frase que abre o filme Para Poucos é o tipo de verdade elementar que costumamos esquecer: “Mesmo quando estamos felizes, procuramos algo mais. Algo que nos arrebate.” Apesar de soar como falácia de autoajuda - ou autoconhecimento -, este adágio é a explicação simplificada de algo muito mais complexo. Algo que envolve desejos e tabus, duas vertentes inatas ao ser humano, e que serão explorados sem alarde e com grande beleza pelo filme.

A síntese perfeita de sua história também se encontra num breve diálogo. Rachel (Mariana Foïs) e Vincent (Nicolas Duvauchelle) estão deitados, nus, quando ela pergunta a ele se não acha que estão se vendo com muita frequência. “Nós dois?”, ele pergunta; “Nós quatro”, responde ela. Rachel e Vincent são casados e seus respectivos cônjuges estão, naquele mesmo momento, dividindo uma cama noutro lugar. Tudo com o amplo consentimento de todos.

Rachel é casada com Franck (Roschdy Zem). Eles têm uma filha pré-adolescente, trabalham com o que gostam e sentem-se felizes no casamento. Vincent é casado com Teri (Élodie Bouchez), eles têm dois filhos e não diferem em nada quanto às realizações e satisfações da vida em relação ao outro casal. Quando se conhecem, despertam-se mutuamente pela atração ao par alheio. Com poucos rodeios, explicações ou regras, sentem-se à vontade para explorarem essa atração, trocando de casais.

Nada os impede. Não há culpa. Apenas prazer. Com isso, passam a levar adiante esta fantasia, aumentando a frequência dos encontros trocados. Das poucas regras, uma é estarem sempre separados, em locais diferentes. Outra regra é nunca comentarem o que fazem e como fazem com o outro parceiro. E quando um dos quatro sentir-se desconfortável, todos param. Mas ninguém quer parar o que está bom para todos.

A temática da quebra de padrões socialmente aceitos e as implicações afetivas disso não é novidade para o diretor Antony Cordier. Seu filme anterior, À Flor da Pele, mostrava um triângulo amoroso entre três adolescentes na passagem para a vida adulta. Agora, os personagens são pessoas maduras, bem estabelecidas e seguras de si. É por essa segurança que a relação inusitada se sustenta.

Cordier trabalha seu filme no campo da entrega pura. O suposto desvio de comportamento, o pecado de sua luxúria é suplantado pela pureza de suas intenções, libido e consentimento. Símbolo dessa pureza é a cena em que os quatro fazem amor na dispensa da casa de campo, atirados ao chão, cobertos por farinha de trigo. Depois, banham-se no lago. A pureza do branco que adere a sua nudez, a paisagem bucólica, solar, mais a beleza de seus corpos nus, reconstrói a pureza do éden. Um éden sem a solidão e a monotonia de um único casal.

Mas nas relações humanas nada é simples como jardins bíblicos.

Não é o ciúme, este agente inevitável, o fator de complicação. Ele está, sim, presente em fios muito finos, que se embaraçam aqui e ali, mas sem grandes consequências. O que, no entanto, perturba esta relação é a complexidade do sentimento. Uma complexidade que nunca está exposta, transita oculta nos labirintos da mente, do coração e do desejo.

É na construção desse sentimento subcutâneo, sutil, que Para Poucos parece falhar. A certa altura o filme se pretende um laboratório do amor múltiplo e suas consequências. As consequências ficam claras, mas as motivações se perdem em nuances pouco trabalhadas, às vezes até esquemáticas.

Dessa forma, a crise que se instala parece feita de algo muito mais profundo e diverso do que o filme percebe. Ao invés de transparecer sentimentos íntimos, de explorar com mais vagar as falhas de compreensão do sentimento dividido, o filme se esvazia pela lacuna que cria. Um vácuo que faltou ser preenchido.

Uma coisa, no entanto, fica clara. Para Poucos é a historia de dois casais que se apaixonam um pelo outro. Não individualmente, mas de forma inteira. É a pretensão de um amor amplificado para além de dois. Um amor inacessível para a maioria das pessoas. Mas que traz em sua coragem e experimentação o sacio de desejos universais, estrangulados nocivamente por velhos tabus.
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quinta-feira, dezembro 08, 2011

Margin Call – O Dia Antes do Fim



 Margin Call
J. C. Chandor
EUA, 2011
107 min.

A ambiguidade em uma das falas finais do personagem de Kevin Space em Margin Call – O Dia Antes do Fim serve como retrato de um tempo de colapsos e incertezas. Quando ele diz que fará o que lhe foi pedido apenas porque precisa do dinheiro, não há como saber se o sentido de “precisar” se refere a uma necessidade de subsistência ou uma necessidade por apego. Essa ambiguidade de valores se alterna nos diversos personagens do filme, que no espaço de 24 horas precisarão lidar com uma crise que pode abalar o sistema de capitais nos EUA. É a véspera da crise de 2008.

Kevin Space é Sam Rogers, executivo de um grande banco de capital especulativo nos EUA. Ele lidera uma grande divisão que gerencia investimentos, comprando e vendendo ações. Sob seu comendo, também está o departamento que gere os investimentos de alto risco. Seu subordinado direto é Will Emerson (Paul Bettany, excelente no papel), um executivo que enxerga seu trabalho com grande cinismo moral, que nasce de uma indiferença ácida de quem aceita as coisas como são, embora não goste do modo como são. 

O departamento de Rogers e Emerson está passando por uma demissão em massa. Mais da metade do pessoal será cortado. Entre eles, Eric Dale (Stanley Tucci) gerente direto da análise de risco. Ele está trabalhando em um novo modelo de avaliação de risco e antes de sair da empresa entrega o pen drive com o arquivo para um de seus subordinados, o jovem Peter Sullivan (Zachary Quinto). Intrigado com o conteúdo do arquivo e o tom grave de seu ex-chefe, Sullivan se debruça sobre as equações e fórmulas do modelo e descobre algo que pode significar não apenas a quebra do banco em que trabalha, mas o início de um colapso total no sistema financeiro do país.

Atordoado pela descoberta, Sullivan liga para o amigo e colega de trabalho Seth (Penn Badgley), pedindo que ele volte para a empresa. A partir disso, em um efeito cascata inverso rumo ao topo da hierarquia da empresa, mais pessoas vão sendo chamadas em plena madrugada para decidirem o que fazer. Assim, juntam-se a eles Jared Cohen (Simon Baker), Sarah Robertson (Demi Moore) e, finalmente, o todo-poderoso presidente John Tuld (Jeremy Irons, em uma participação inspirada).

Durante toda sua duração, Margin Call mantém tensa sua narrativa, que segue num crescendo até o ponto do anticlímax. Não que o filme desperdice toda tensão criada, mérito de uma montagem eficiente e enxuta. Acontece que o filme se pretende mais que um thriller sobre colapsos e mundo corporativo. Quer ir além e ser um filme sobre homens, sobre diferentes tipos de caráter, mas evitando maniqueísmos simples.

E também quer ser uma crítica ao sistema. Nesse sentido, evita o óbvio e o clichê. Constrói com precisão figuras cujo discurso é pautado por justificativas frágeis para apoiar suas decisões e consequências. Tornam-se vítimas de si mesmas, prisioneiros do sistema, afetadas por ele e dependentes dele. Mas no fim das contas, entre ganhos e perdas, mantêm-se no topo, por cima dos mortais que nada sabem do que acontece no olimpo da ganância, da esperteza e da trapaça. Todos assentados em engrenagens distorcidas de uma realidade abstrata de números, fórmulas e previsões inexatas.

Nesses personagens há ambição, cinismo e indiferença em níveis distintos. O cansaço com um sistema que sugou sua vida feito buraco negro (Rogers); a ácida morbidez de Emerson; a enérgica determinação do chefão Tuld, e até mesmo a inocência que quase resvala no patético de Sullivan.

A grande qualidade do filme nasce de sua maior falha: a incapacidade de explicar de forma clara para o expectador o que de fato está errado. Entre evasivas, pistas e alguma explicação quase técnica, o que faz o filme criar e reter o suspense, nos mantendo atentos à tela, é a ação dos atores, a edição afinada, os diálogos cheios de alfinetes.

Margin Call pode vir a fazer parte de um novo gênero de filmes. Outros devem vir na esteira das sucessivas crises econômicas, que têm posto em cheque o sistema capitalista sob o qual vivemos. Se o bom cinema é um reflexo da sociedade e do seu tempo, se coloca-se como reflexo da História pelas temáticas que escolhe e pela forma como as molda, então este filme pode ser o primeiro de muitos.
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