sábado, janeiro 15, 2011

Munique


Munich
Steven Spielberg
EUA, Canadá, França, 2005

Ao final de “Munique” o que mais me chamou a atenção foi algo que vou chamar aqui de a “travessia do herói”. Lanço mão, em termos de comparação, do arquétipo do herói clássico. Mas aqui ele ganha outros contornos. No filme de Spielberg, esse herói atravessa seu destino julgando transformar o mundo, movido por seus valores e seus ideais de pátria, nacionalidade e justiça. Mas a verdade, quando chega à sua consciência, desmonta suas crenças parciais, revelando que o único que se transformou durante a jornada foi ele mesmo, enquanto todo o resto permaneceu igual.

Essa é a essência de “Munique” e da figura de seu “herói”: uma alegoria que problematiza o sentido de “verdade”, justiça e dever patriótico à partir de acontecimentos reais, revelando o que muitas vezes há por trás de políticas de contra-terrorismo, espionagem e segurança nacional.

Baseado em acontecimentos reais, o filme fala da reação do governo israelense após o trágico ato terrorista ocorrido nas Olimpíadas de Munique, em 1972: o seqüestro e assassinato de 11 integrantes da equipe olímpica de Israel pelo grupo terrorista Setembro Negro. Uma reação que não poderia ser mais bíblica, no sentido do Velho Testamento: 11 pessoas (olho por olho) ligadas direta ou indiretamente ao grupo Setembro Negro deveriam ser assassinadas como revide aos 11 israelenses mortos no atentado.

No filme, para executar a tarefa, o Mossad (Serviço Secreto de Israel) recruta Avner (Eric Bana) e mais três membros com “especialidades” diversas. Todos os membros são oficialmente "desligados" do Mossad, para que o governo possa negar qualquer envolvimento, no caso de serem pegos. Todos encaram suas tarefas com orgulho e determinação, sabendo que o fazem por um motivo nobre: a vingança contra o inimigo.

Avner, em especial, encarna esse orgulho e sacrifício com uma fé cega. Abre mão de sua família e encara sua missão como um dever maior. Filho de um reconhecido herói nacional, ele se vê diante da oportunidade única de realizar um ato patriótico, embora secreto e que nunca poderá ser revelado a ninguém. Avner acredita estar contribuindo de alguma forma para mudar (melhorar? limpar?) o mundo. Acredita, solenemente, em seu dever como israelense.

Com 164 minutos, o filme segue um tanto lento no seu primeiro terço de duração. A trama só engata quando entra na história a figura de Louis (Mathieu Amalric), um informante, membro de uma organização apolítica e sem ligação com qualquer grupo, Estado, ideologia ou crença. É esta organização que vende informações sobre os nomes da lista de Avner, os nomes dos que devem morrer. Melhora ainda mais quando Avner conhece pessoalmente a figura de Papa (Michael Lonsdale), pai de Louis e chefe da organização. Um homem que por ter informação valiosa como moeda de troca detém um grande poder.

A entrada desse personagem na trama acrescenta novas variáveis para o conflito no qual Avner está envolvido. E isso não diz respeito somente à questão do Oriente Médio. É à partir daí que Avner começa a enxergar melhor o mundo, livre das amarras ideológicas de seu governo (ou de qualquer outro governo) e passa a entender do que realmente ele faz parte: um grande negócio, um grande comércio, uma grande e lucrativa troca de mercadorias. Informações por vidas, vidas por informações, e muito dinheiro entre uma coisa e outra.

Avner percebe, através de Loius e de Papa, que o jogo em que está envolvido é menos o jogo patriótico, da ideologia ou da fé, e mais o jogo comercial, de compra e venda, de business, de lucro. Tem pouco haver com pátria, nação, identidade, vingança ou justiça. É tudo, simplesmente, negócio. E ele é só mais uma peça, no sentido literal, que serve para atender a interesses que em nada se ligam a seus ideais e àquilo pelo que ele luta, ou acredita lutar.

Apesar de tudo, Avner preserva seu sentido de dever e segue com sua demanda. Mas logo percebe, que sendo ele parte do jogo, também pode estar sendo comercializado, já que os que compram e os que vendem nesse mercado, trocam de lado facilmente, dependendo apenas de quem pagar mais.

É quando ele se conscientiza de que não tem nada de herói. Percebe que tudo que fez até então de nada serviu para seus antigos ideais e que as pessoas que morreram, de qualquer um dos lados, morreram por nada. Ou melhor, morreram porque no mercado valiam um tanto mais ou um tanto menos. Percebe, por fim, que ele mesmo pode ser uma mercadoria, pois no momento em que passou a fazer parte desse mercado, se tornou também uma moeda de troca, mais um nome a ser vendido.

Numa subversão do herói clássico, Avner se transforma dentro do processo em que se julgava transformador. Como numa fábula negra, passa a enxergar o mundo e a si mesmo como realmente são: sem grandes significados nobres e com muitos interesses sórdidos. Sabe que para cada um que matou outro assumiu seu lugar e que aquilo não teria fim. "Afinal, porque se cortam as unhas, se elas voltam a crescer?", pergunta-lhe certo personagem da trama.

No fim, Avner se torna um herói caído, desacreditado de si mesmo e daquilo pelo qual lutou. Teme por si e por sua família. Vê tudo cair por terra diante de seus olhos, que finalmente enxergam depois de estarem cegos por toda uma vida. Como todo herói nascido da guerra ou do ódio, um herói trágico, um herói patético.
--

* * *

0 comentários:

 

Eu, Cinema Copyright © 2011 -- Powered by Blogger