sábado, janeiro 22, 2011

Uma Discreta Trilogia



Crédito: quem primeiro vi fazer uma ligação entre os três filmes abaixo, foi o crítico Luiz Carlos Merten, do jornal O Estado de São Paulo. Achei interessante e revi os filmes. Desenvolvi o texto que se segue à partir de minhas próprias observações.
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O cinema possui uma vasta possibilidade de subtexto, de linguagem e associação de elementos. Essa ampla variedade pode, em alguns momentos, atingir patamares insuspeitados.

Qualquer investigação atenta a alguns filmes pode revelar intenções escamoteadas em simples enquadramentos, ângulos, sequências, figurinos, cenários, jogos de cena e outros tantos elementos. Claro que se pode sempre cair nalgum equívoco de julgamento e enxergar subtexto onde não há nada além do que está na tela. Mas certas coincidências, certas conjunções de fatores, parecem se encaixar de forma tão azeitada, que fica difícil negar que há ali um significado que vai além do óbvio.

Passei a admirar muito mais Steven Spielberg, depois que me foi revelada a ligação por trás de três filmes seus. Três filmes que parecem não ter nada em comum, mas que se revelam interligados, formando uma trilogia. Uma série que investiga e revela um trauma recente na vida de uma nação e na história da civilização contemporânea: os atentados de 11 de setembro de 2001.

Falo dos filmes “O Terminal”, “Guerra dos Mundos” e “Munique”. Filmes que vistos como um conjunto formam a trilogia “spilberguiana” sobre a América pós-11 de setembro.

Para entender como isso é possível, vamos a uma análise mais detalhada de cada um.

O Terminal (2004)

O primeiro filme dessa suposta trilogia trata de um imigrante que ao chegar aos EUA se vê proibido de entrar no país. Sem possibilidades financeiras e burocráticas de retornar a seu país e sem permissão para pisar em solo americano, é obrigado a permanecer indefinidamente no terminal do aeroporto. Vivencia ali uma espécie de limbo entre a “terra das oportunidades” e seu próprio mundo.

Esse terminal vai aos poucos se revelando um microcosmo, uma representação da sociedade e do governo norte-americano. Uma metáfora de como se enxerga e se trata o imigrante. Há o poder constituído, que primeiro barra e depois fecha os olhos ao problema. Há o preconceito xenófobo. Há a dificuldade de integração e interação. Há o esforço do imigrante em sobreviver em um ambiente hostil. E há também as barreiras culturais de idioma e de costumes.

Com tudo isso, o que fica evidente é o endurecimento, a forte mudança no trato ao imigrante. Um efeito direto do trauma pós-11 de setembro, quando se passa a olhar com profunda desconfiança a qualquer estrangeiro que tenta entrar no país. É através desse drama, algumas vezes cômico, outras vezes triste, que Spielberg expõe a reação paranóica contra estrangeiros que tomou conta dos EUA após os atentados.

Guerra dos Mudos (2005)

Ao mesmo tempo uma adaptação de um livro do século 19 e uma refilmagem de um clássico dos anos 50. Mais uma peça emblemática como parte da trilogia. É também neste episódio que mais se encontram referências ao 11 de setembro. Elas estão nas cinzas das pessoas desintegradas, que remetem às cinzas que tomaram o ar de Nova Yorque após a queda das torres. Estão no fato de que as naves estavam há muito tempo escondidas, infiltradas, sob o solo do planeta sem que ninguém suspeitasse. Ou ainda em diálogos nos quais se diz que não se pode ocupar um país (ou um planeta, ou uma civilização), pois a história já mostrou mil vezes que isso não funciona. Também estão no personagem de Tim Robbins, que encarna o pensamento belicista típico da extrema direita.

Impera em “Guerra dos Mundos” o horror de uma invasão por um inimigo desconhecido e mais poderoso. Horror que trás dois lados, duas perspectivas diferentes, mas pertencentes a uma mesma unidade factual: o terror estupefato do impensável acontecendo diante dos olhos. O mesmo terror que se sentiu, em todo o mundo, diante da queda das torres gêmeas. O terror da fragilidade ante um poderio bélico incomparável e insuperável. O mesmo terror que devem ter sentido as populações do Afeganistão e do Iraque quando invadidas.

“Guerra dos Mundos” é a catarse do horror terrorista. É também um reflexo da opressão bélica a nações de poderio militar inferior. Se no cinema a ficção científica sempre refletiu as angústias do subconsciente coletivo de sua época e se o cinema-catástrofe sempre ressurge em tempos de desestabilização das instituições ou da sociedade, não é por acaso que “Guerra dos Mundos” – enquanto duplo gênero – tenha surgido num tempo de tanta insegurança e medo.

Munique (2005)

O último filme da trilogia supera os demais em complexidade e seriedade. Parte de um fato real e faz um relato crítico do que ficou conhecido como “Operação Ira de Deus”: uma ação ultra-secreta do Mossad, o serviço secreto israelense, autorizada pela então primeira-ministra de Israel, Golda Meir. A operação consistiu em caçar e assassinar, à partir de uma lista de nomes, pessoas supostamente ligadas ao grupo terrorista Setembro Negro, que nas Olimpíadas de Munique de 1972 sequestrou e executou nove atletas israelenses.

A questão levantada no filme é o papel do Estado como instrumento de vingança e a política belicista do revide a qualquer preço. Essa distorção nas atribuições do Estado, bem como o descarte de qualquer mediação diplomática, remete à política Bush pós-11 de setembro e sua sanha em retalhar os atentados sofridos pelos EUA.

O filme, mais do que reconstituir ficcionalmente os fatos, realiza uma desconstrução da figura do herói vingador clássico. Trabalha nas camadas de consciência do protagonista, que ao se afundar cada vez mais numa vingança que julga ser justa e necessária, vai percebendo como aquilo tende a se voltar contra ele, inexoravelmente.

Com esse ótimo filme, Spielberg dá o golpe final em sua análise crítica dos efeitos nocivos surgidos à partir dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001. Questiona a função do Estado como agente vingador, atribuição mais do que canhestra para um agente que deveria ser diplomático e racional. Deixa claro que ações de retalhe servem muito mais como perpetuação do medo do que como solução para o embate. Mostra como o terror tende a permanecer e a adoecer nas consciências ambíguas daqueles que o aplicaram como espada.

Trilogia

Portanto, três filmes de gêneros distintos: uma comédia humana, um filme catástrofe e uma tragédia grega moderna. Diferentes em tudo, mas sutilmente alinhados pelas consequências de um mal maior, que gera outro mal maior. Uma revelação sutil dos mecanismos perpetrados pelo mal dentro do humano e pelo humano dentro de todo mal. Spielberg realiza assim sua crônica e sua visão crítica de um tempo no qual medos e fobias permeiam o subconsciente de uma nação assustada.
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1 comentários:

TJ do loucosporvirtude disse...

Muito bom, Rogério [!]

Tú aumentou meu vocabulário pacas com sua linguagem rebuscada.

Ainda não assisti ao "Munique" [pretendo] e não curto ficção-científica, mas as conexões ficaram muito claras em seu texto. Nem foi preciso conhecer "Guerra dos Mundos".

O crédito ao começo é mais do que louvável [!]

Pensando em "Munique" dá até para traçar um paralelo com "Pearl Harbor", que passou esses dias na TV, por inúmeros motivos.

Parabéns por tudo [!]

Keep blogging.
Mais sucesso.
TJ do loucosporvirtude | @loucos_virtude

 

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