sexta-feira, dezembro 10, 2010

Abutres



Carancho
Pablo Trapero 
Argentina, 2010

Abutres, de Pablo Trapero, é um filme intenso. À parte o clichê adjetivante que acabo de usar, sua intensidade está na capacidade de jogar o expectador tão dentro da cena que é como se o “impacto” a que são submetidos os personagens ressoassem dentro da sala de cinema e atingisse também o público. Não à toa me senti “moído” ao sair da sessão, como se parte das “pancadas” do filme tivessem também me acertado.

A competência para esse efeito está na forma como Trapero conduz sua câmera. Ela se mantém invariavelmente próxima aos personagens, dentro da ação. Não se parece com uma câmera subjetivada, recurso desgastado no dito cinema de arte, mas ganha contornos de um olhar objetivado como testemunha cruel de cada cena, num sentido de observar bem de perto e ter, também ela, de sofrer os efeitos das dores físicas dos personagens que acompanha.

Sosa (Ricardo Darín) é um advogado que perdeu sua licença. Trabalha para uma fundação que cujo lucro provém da exploração de vítimas e familiares de vítimas de acidentes de trânsito. Um mercado milionário de indenizações, das quais a fundação fica com a maior parte e enganando as famílias, que ficam com uma fração mínima do dinheiro. 

Daí o título Abutres. 

Sosa e seus colegas de trabalho rondam hospitais e necrotérios à caça de suas vítimas: pessoas simples, com pouco entendimento da lei, fragilizadas pela perda ou pelo trauma, que em algum momento lhes passará uma procuração de plenos poderes para interceder por elas junto às seguradoras. Todo esse esquema sobrevive com a anuência ou ativa participação de polícias, médicos e agentes de trânsito.

No caminho de Sosa cruza Luján (Martina Gusman). Ela é uma médica residente que trabalha no resgate às vítimas. Tem uma vida solitária e costuma emendar plantões que lhe privam do sono. Convive diariamente com a tragédia e o absurdo, vivendo sob permanente pressão.

Sosa e Luján são solitários que sobrevivem, cada um com seu grau distinto de caráter e honestidade, num mundo sujo. Nota-se a penumbra em que estão imersos nas cores em tons cinzas que permeiam a luz do filme. Nunca há uma luminosidade clara, exceto em raros momentos de entrega ou quando se ensaia uma sobra de feliz tranqüilidade; algo não só raro, como, aparentemente, inviável para ambos. Porque em suas vidas tudo parece sufocante, angustioso.

A privação de sono a que Luján está submetida, no exercício de seu trabalho, transparece pela tela não apenas pelo cansaço de seu rosto, mas pelas cores e luzes dos lugares onde está quando a trabalho. É um onírico de sonâmbulo, só que cru, sem os surrealismos do sonho, mas com a acentuada realidade absurda da vida no inferno de um plantão médico.

O recurso de uma câmera participante, tão dentro de toda ação, é evidenciado nos planos que nos apresentam a personagem Luján. Os takes em superclose de seu rosto, o ângulo investigativo que destaca seu olho por trás dos óculos. Tudo é de uma proximidade tão intensa, que já prenuncia a quão próximo se viverá a narrativa, ao mesmo tempo em que nos insere, de imediato, próximos, quase que promiscuamente, aos personagens.

Sosa, por sua vez, tem sua vida afundada na lama de seu trabalho. A ausência de consicência, a mentira, a usurpação do bem alheio, o aproveitamento da tragédia, o lucro tirado da desgraça do outro. Sosa chafurda num mundo onde a moral é nula e a salvação impossível. Seu rosto carrega as marcas ainda frescas das pauladas que toma na vida, quase sempre sem metáfora. Não por acaso sua primeira aparição é debaixo de socos e pontapés. E assim será durante o filme.

Mas sosa, embora nefasto no exercício da exploração alheira, é um forte. Não sucumbe aos golpes e ao conhecer Luján sente-se impelido a buscar sua redenção. Mas mesmo isso não se dá de forma romântica ou idílica. Luján se torna sua única chance de arrependimento (ou busca de um perdão humano que diminua sua culpa) depois que um plano mal sucedido resulta em morte. É só então que Sosa parece perceber que o mergulho de sua vida numa sujeira tão grande, cada vez mais, o distancia de um dia poder se sentir limpo.

Se Sosa tem seus pecados em número e gravidade impurificáveis, Luján também não está limpa de todo. Também ela trás no corpo marcas de um desvio, marcas do vício e da dependência, revelando não uma fraqueza, mas um refúgio.

E apesar de uma feliz competência na condução dessa história, Trapero também se excede. E justamente naquilo que é a melhor qualidade do filme. Se sua câmera, através da proximidade e do efeito de real que busca nas tomadas instáveis e nos planos-sequências, resulta numa experiência quase que de transferência. Também não deixa de roubar a si mesma pelo exagero. Um exagero que se verifica no uso do recurso do plano-sequência.

Se de um lado esse mesmo recurso garante um efeito devastador e forte, por outro rouba da montagem sua capacidade de não cansar. Em nenhum momento Abutres cai no tédio ou cansaço, mas a insistência em manter, cena após cena, o plano-sequência como efeito de real, acaba por, dentro do excesso, roubar justamente parte desse efeito de real. Suas repetições e malabarismos são tão evidentes que distraem-nos da narrativa para o virtuosismo técnico. É, em alguns momentos do filme, um tiro que sai ela culatra.

No entanto, isso não compromete o efeito devastador do filme.

Abutres se encerra com o grau mais alto de sua intensidade e sua câmera está lá, tão presente quanto cada elemento dessa história de sordidez e arrependimento tardio. Mas para seus personagens, para os abutres, a vida não reserva grandes redenções. Se foi da tragédia que tiraram seu sustento, será na tragédia que definharão suas esperanças. E Trapero consegue dar cabo disso com uma força e uma transposição para o lado de cá da tela que chega a machucar. Abutres é um filme de rara intensidade, com uma força que poucas vezes vi no cinema.

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