domingo, outubro 17, 2010

A Doce Vida

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La Dolce Vita
Federico Fellini
Itália,1960
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Em A Doce Vida, Fellini não economiza no cinismo e na ironia para demonstrar o vazio e a futilidade de uma classe social, montando um mosaico de esquetes que afunda os personagens que o compõe numa indistinta vaguidão de sentido nulo.

Não é à toa – nem deixa de ser um sinal para o nosso tempo – que o termo “paparazzi”, tão usual nos dias de hoje, tenha surgido desse filme: uma referência ao personagem Paparazzo, um fotógrafo que persegue as celebridades com sua câmera oportunista, sempre à procura de escândalo ou tragédia.

O filme possui uma linha narrativa fragmentada, é composto de diversos quadros, passagens onde surgem e desaparecem figuras emblemáticas de um universo afetado e estéril. Atravessando todas essas passagens está Marcello Rubini (Marcello Matroianni), um repórter boa vida que circula livremente pelo mundo dos ricos e famosos.

Mas ao contrário das pessoas que freqüentam as festas e orgias em mansões e castelos, ou a vida noturna de uma Roma desmistificada e às vezes sombria e suja, Marcello parece ter uma vaga noção do ridículo e da falta de significado daquela vida. Porém, ele não se entrega a uma verdadeira reflexão, se limita apenas a ver com algum desprezo e indiferença o grotesco de um mundo do qual não consegue se desvencilhar.

Mas esta visão de Marcello, essa auto-crítica ensaiada, não surge de imediato, ainda que já se a note desde o princípio do filme. Ela se desenvolve e se agrava na percepção do protagonista através do que se pode chamar de epifanias, momentos chaves, muitas vezes insólitos, que se sucedem ao longo do filme.

O termo “epifania” pode ter muitos significados, mas representa, numa acepção mais formal, a aparição de algo divino. Numa interpretação mais usual, simboliza a súbita percepção de algo, a compreensão definitiva de um conceito ou uma idéia, como o encaixe da última peça de um quebra-cabeça.

E o que Marcello vivencia, ao longo de quase todas as passagens do filme, são pequenas epifanias, que vão aos poucos lhe dando uma dimensão mais ou menos nítida, mais ou menos montada, do vazio em que ele vive e dentro do qual se vê preso. Serão estas pequenas e quase sempre sutis epifanias, que lhe darão uma dimensão mais apurada do universo sem sentido das vidas que o cercam.

Como, por exemplo, na passagem das duas crianças que afirmam ver e falar com Nossa Senhora e no modo como seus pais exploram isso. Ou ainda, e essa é mais sutil, a figura melancólica do palhaço da boate Cha Cha Cha, um dos momentos mais tocante do filme. Ou num diálogo surreal entre Marcelo e Madalena em salas separadas, ou no filicídio seguido de suicídio de um intelectual. Ou, por fim, numa das mais antológicas cenas da história do cinema, quando a atriz sueca Sylvia Rank (Anita Ekberg) entra vestida na Fonte de Trevi e languidamente pede que Marcello entre com ela.

É através dessas “visões” que Marcello vai tomando consciência de sua condição e da condição dos que vivem num mundo de hedonismo e vazio existencial. Isso o torna cada vez mais cínico, na medida que não consegue se ver fora desse mecanismo que o arrasta sempre para os mesmos lugares e pessoas.

Fellini constrói com A Doce Vida não apenas um mosaico crítico da burguesia hedonista, expondo suas afetações ridículas, suas conversas irrelevantes, seus prazeres fáceis, suas tentativas tolas de preenchimento do vazio. Revela também, através de seus personagens, uma visão da sociedade e de seu mal maior: a impossibilidade de entendimento, a dificuldade das pessoas em se comunicarem umas com as outras. Com isso Fellini aponta para um futuro de total desentendimento, de busca incessante da saciedade no insaciável; um futuro de uma babilônia bizarra e sem rumo.

E é na epifania final de Marcello que isso é melhor simbolizado, diante do mar ruidoso e da aparição de um espécime marinho que olha interrogativo a todos, estático e grotesco. E no surgimento de um “anjo”, que tenta dizer algo a Marcello, mas que, por estarem em margens diferentes e distantes demais, não se podem ouvir e seus gestos tornam-se tentativas inúteis de entendimento. Então Marcello, impotente, desiste e volta-se para os notívagos de mais um amanhecer pós-orgia, juntando-se a eles, vencido, de volta para sua doce vida. Ao “anjo”, só resta acenar.
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