quarta-feira, janeiro 12, 2011

O Lenhador



The Woodsman
Nicole Kassell
EUA, 2004

Há dois diálogos em “O Lenhador” que funcionam como um claro dimensionamento de seu protagonista, ao mesmo tempo que simboliza o grande abismo no qual ele está afundado e do qual tenta sair. Num primeiro momento, ele pergunta, com uma sinceridade intensa: "Um dia serei normal?". Mais adiante ele afirma – e ao fazer essa afirmação, sabemos que, ele embora queira muito acreditar no que afirma, tem no seu íntimo uma duvida atroz: ”Eu não sou um monstro".

Colocar em pauta (e “indefinir”) a linha que separa o monstro do humano é a grande coragem do filme. Porque ele toca em um tema delicado, polêmico e inflamável e o faz destituído de qualquer maniqueísmo.

Walter (Kevin Bacon) é um ex-presidiário em condicional. Ao sair da prisão tenta recompor sua vida. Consegue emprego numa madeireira, consegue um lugar para morar e tenta reatar os laços com sua irmã. Mas Walter carrega uma mancha, uma maldição da qual tenta se livrar, e cuja sombra o persegue ininterruptamente: sua condenação foi por pedofilia. Por mais de uma vez Walter molestou crianças.

Kevin Bacon se mostra muito competente ao interpretar o homem atormentado, consciente de sua degeneração, conhecedor de sua condição doentia e desejoso de esquecer o passado e seguir em frente. Walter é um homem franco consigo mesmo. Admite ter um grave desvio comportamental e busca ajuda para superar esse mal. Sua maior humanização é o modo como luta contra seus instintos e como busca sinceramente se reaproximar de sua irmã.

Essa reaproximação é mais do que dolorosa, pois ele tem uma sobrinha de 12 anos, fator que problematiza sua condição e sua relação com a irmã e sua família.

Mas além dessa difícil e delicada reaproximação, Walter terá de lidar com o espelho de si mesmo e com a tentação diária. Isso porque a casa onde ele passa a morar fica em frente a uma escola primária. Essa situação cria uma perturbação permanente no expectador, pois o olhar que Walter lança pela janela a cada turno da escola não esclarece o íntimo de seus pensamentos.

Agrava-se esse quadro quando Walter nota que nas redondezas há um pedófilo, rondando a escola e assediando as crianças. É através desse elemento que o personagem de Kevin Bacon irá se deparar com um reflexo de si mesmo e ao encarar-se no reflexo verá o tamanho de sua monstruosidade e o quão repulsiva ela pode ser.

A diretora Nicole Kassell trabalha de forma corajosa na construção desse drama que humaniza a figura do monstro. Ao despir o horror de todo maniqueísmo fácil, o filme nos coloca frente a um contraponto que muitas vezes é mais cômodo esquecer ou fingir que não existe: o de que por trás do mal existe o ser humano e é sempre mais fácil “coisificá-lo” como monstro do que vê-lo com a complexidade humana. Não se trata de humanizar o mal, mas de entender que todo o mal que há no mundo é, essencialmente, humano.

A cena chave de toda ambigüidade que habita o personagem de Bacon ocorre num parque deserto, num diálogo tenso entre ele e uma garotinha que observa pássaros. A cena se desenvolve de forma perturbadora e com uma revelação desconcertante.

Se essa cena não resolve os conflitos de Walter, serve como exemplificação do quão complexo pode ser nosso sentimento diante do personagem apresentado. Nossa expectativa para que ele deslize e se entregue a seu desvio representa nosso desejo de justificar nosso ódio, justificar nossa impossibilidade de perdoá-lo. Ao mesmo tempo que desejamos que nada aconteça, como uma fé mínima que preservamos lá no fundo, querendo acreditar na regeneração do ser humano.

No fim, para Walter, resta seguir com sua vida, tentando conviver com o inferno dentro de si. Poderá até encontrar afeto, carinho e algum perdão, mas nunca o esquecimento.

“O Lenhador” é um filme desconfortável, porque nos faz humanos, quando queremos ser carrascos. Serve como exemplo da complexidade da vida, distante de simplificações, reducionismos confortáveis, cômodos e desinteligentes. É um filme que nos arranca de uma posição passiva e nos coloca frente à perturbação imensa do ser humano.

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