sábado, outubro 16, 2010

Deixa Ela Entrar

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Låt den räte komma in
Tomas Alfredson
Suécia, 2008
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Em tempos de monotonias como Crepúsculo, Lua Nova e adjacências, Deixa Ela Entrar é uma luz de originalidade para um gênero marcado há muito tempo por repetições desgastadas e, recentemente, por uma inversão de valores soporífera e deturpadora do símbolo original e essencial da figura do vampiro. O filme consegue preservar o “classicismo” folclórico do universo vampiresco, mas ao invés de buscar a facilidade dos signos conhecidos e confortáveis do gênero, opta por uma fábula sobre transição, delicadeza e solidão.

Oskar é um menino de 12 anos que vive com a mãe na periferia de Estocolmo, na Suécia. Os pais são separados e pouco presentes em sua vida.  Na escola ele sofre com o assédio violento e mórbido de três garotos. Introspectivo, busca solidão e isolamento e ensaia, aparentemente sem muita determinação, uma vingança contra seus algozes. É quando surge Eli, uma menina de 12 anos que se muda para seu prédio.

Eli também é solitária, isolada, mas de uma maneira muito mais misteriosa. A empatia entre ambos acontece aos poucos, em encontros no playground do condomínio, sempre à noite. A forma como a relação entre ambos se desenvolve revela, a cada gesto e a cada recuo, a delicadeza de uma espécie de inocência preservada por baixo do quanto ambos têm de amargo em suas vidas.

A relação que se estabelece é um tipo de interdependência onde Oskcar encontra em Eli o desconhecido que há dentro dele mesmo, seus próprios instintos. Como se ele intuísse desde sempre a verdadeira natureza de Eli. Isso fica claro pelo tanto que o próprio Oskar tem de mórbido na maneira como muitas vezes reage ás agressões de que é vítima, como quando aparenta sentir até um prazer masoquista com o flagelo que lhe é imposto.

Já Eli encontra em Oskar um alívio para sua existência solitária e sem esperança. Quando ela afirma que tem 12 anos há muito, muito tempo, decreta sua imutável condição de tristeza e maldição. Mas a maldição aqui não ganha os contornos trágicos do vampiro moderno. Ela existe muito mais na epiderme, numa condição de espírito, mais íntima e profunda do que a simples e animalesca fome de sangue.

Por isso Eli pede, implora, em determinado momento, para que Oskar se ponha em seu lugar. Busca nesse pedido sincero uma empatia impossível – afinal, ninguém pode saber o que é ser um vampiro sem se tornar um – mas o faz com a inocência e o desamparo de quem precisa muito que ele entenda, e de certa forma perdoe.

Deixa Ela Entrar trata em sua essência de alguns temas universais como a morte, o desejo e a destruição. A beleza mórbida de Oskar com sua pele muito branca, seu flerte com a morte simbolizada na faca que carrega, encontram na animalidade da fome de Eli, na sua força dominadora e destruidora e ao mesmo tempo desamparada, um contra-ponto de equilíbrio e complementação. A própria sexualidade de ambos insinua uma certa ambigüidade, seja por uma enigmática imagem da genitália de Eli, seja pela constante insistência dela em dizer que não é uma menina.

Com essa riqueza de matizes o diretor Tomas Alfredson compõe essa fábula delicada, com uma beleza implícita por dentro das esferas de uma transição complicada para algo que deveria ser a adolescência, mas que termina por ser algo indefinível. Mas entrega também um filme em que a violência bestial presente nos instintos de um vampiro brotam em momentos chaves, revelando toques de terror e suspense, com destaque para a cena final na piscina.

Deixa Ela Entrar tem o valiosíssimo mérito de extrair originalidade de um tema e de um gênero cansado de mesmices ou de aborrecidas tramas contemporâneas. É um filme que se esquiva dos clichês, sem abrir mão da referência e, melhor de tudo, não renega a gênese anárquica, desajustada e bestial do vampiro como símbolo de instintos irreprimíveis. É um filme realmente surpreendente.
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