sexta-feira, novembro 29, 2013

Frances Ha

A “Nouvelle Vague” de Godard e Truffaut respira tranquilamente em Frances Ha. Mais do que respira, convive. Nem a força de sua clara deferência sufoca o filme, nem o filme, com sua espontânea desenvoltura, sufoca aquilo a que remete. Nesta relação, há como que uma troca, uma renovação articulada e independente que tem assinatura, corpo, ritmo e vontade própria.

Esta convivência se estabelece não apenas pela fotografia em preto e branco que remete ao movimento francês dos anos 60. Nem apenas pela furtiva Paris, cidade quase aparição no filme, passageira tão expressa quanto uma viagem fugaz, quanto uma incontingência nos rumos de Frances (Greta Gerwig), esta personagem tão real quanto improvável.

É também o deslocamento dos elementos do filme, a trilha inesperada, a dança inesperada, a queda inesperada e uma certa ausência de noção em gestos e palavras. São pequenos desencaixes, pequenas rupturas no tecido do filme que se perderiam na referência estéril se não tivessem um propósito estético e narrativo bem condensado e uma atriz iluminada como Greta.

Frances é essa menina já nem tão menina que representa a vida sendo vivida. Daí uma realidade que gera automática identificação com o real, com perdão da redundância. Espécie de dançarina de segundo escalão em uma companhia de dança, ela almeja ascender, conquistar seu espaço. Não só no palco. Pois tem o aluguel, o espaço físico que durante o filme será, na sua alternância, representação da alternância imprecisa de rumo na vida dela.

Nestas alternâncias, alimentam-se os sonhos: ser aquilo que se deseja ser, obter sucesso, reconhecimento. Mas têm também as contas, o aluguel, a incerteza do trabalho, o desejo de encontrar alguém para se apaixonar, a amizade ponta firme que não é invulnerável a abalos. As mudanças e o tempo que são sempre incessantes.

Esta personagem encantadora converte-se então em um estado de juventude. Apresenta-se com menos daquele brilho de glamour artificial que o cinema costuma atribuir à juventude e muito mais assentada no brilho espontâneo de sê-lo com a dureza do cotidiano.

No improvável, cria-se esta personagem que dança, quer dançar, que muda-se, desloca-se e se perde sem perder a essência. Uma Frances sem amargor quando fracassa, que aprende durante o filme o que se aprende durante a vida.

Mantendo sempre um diálogo sem sustos com a “Nouvelle Vague”, Frances Ha livra-se de qualquer rótulo. Passa ao largo do cinema comercial ao mesmo tempo que se diferencia – em oxigênio e criatividade – do cinema independente contemporâneo e seus maneirismos à beira do clichê.

Noah Baumbach, diretor que também assina o roteiro ao lado de Greta Gerwig, mostra com este filme uma disposição incomum em fazer cinema com a mesma liberdade e espontaneidade que, décadas atrás, uns certos críticos da revista “Cahiers du Cinema” fizeram. Mas aqui há bem menos ruptura e muito mais harmonia. Uma condensação de linguagens, o novo e o velho, quase sem perdas na tradução e com um vigor que não se impõe, apenas frui.
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Frances Ha
Noah Baumbach
EUA, 2012
86 min.


Trailer*


(*) Com legendas, aqui

Trem Noturno para Lisboa

Mesmo sabendo que uma carreira premiada não garante infalibilidade a qualquer diretor, ainda assim é difícil entender como o dinamarquês Bille August realizou um filme tão superficial como este Trem Noturno para Lisboa. Com duas Palmas de Ouro no currículo e diversos outros prêmios em festivais, August erra a mão ao adaptar para o cinema o homônimo livro, sucesso editorial europeu que já vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares.

A história é sobre Raimund Gregorius (Jeremy Irons) um professor de filosofia suíço que um dia evita o suicídio de uma jovem, impedindo-a de saltar da ponte. Sem explicação, ela desaparece, mas deixa um casaco com um livro no bolso. Um livro português.

Fascinado pelo livro, pela história de seus personagens, e intrigado pela jovem cuja vida salvou, Gregorius abandona sua vida rotineira e viaja até Lisboa atrás de pistas sobre a misteriosa mulher e sobre o autor do livro.

Em terras portuguesas, vai se deparar com pessoas consumidas por paixões desenfreadas, marcadas pela violência da ditadura de Salazar e pelas sequelas de um tempo em que se rebelar era a única forma de se sentir vivo. Pois é justamente esta vivacidade que Gregorius busca, já que não demora a perceber que o livro o fez despertar da letargia solitária que se tornou sua vida.

Mas a riqueza poética, histórica e sentimental que poderia surgir dessa trama, logo na primeira cena começa a se diluir pelo destempero e pela superficialidade novelesca que acompanhará todo o filme. Ao mostrar seu protagonista jogando xadrez consigo mesmo, o diretor inicia seu filme com uma descarada muleta, constrangedoramente óbvia, para simbolizar a solidão de seu personagem.

Já desde esse início clichê, a trilha sonora se intromete. Suas notas, repetidas à exaustão durante o restante do filme, soam sempre elementares na melancolia que querem emoldurar. Daí em diante, o que se arrasta na tela é uma série de encontros, desencontros e ações que muito raramente flertam com alguma lógica ou coerência interna. Nem trama nem personagens parecem se encaixar e a desarmonia disso resulta em artificialismo ou emoções vazias.

À medida que Gragorius avança em sua investigação sobre o autor do livro, vai se tornando o fio condutor de uma trama paralela, desenvolvida na tela por flashbacks a partir de relatos das pessoas com quem ele vai se encontrando.

Mesmo desconsiderando as grandes coincidências que o roteiro não se furta a lançar mão, o avançar quase sem obstáculos do protagonista rumo à finalização de seu nem tão desafiador quebra-cabeças, apenas reforça a esterilidade que transita pela tela. Uma esterilidade que destoa dos grandes atores que o filme apresenta.

Charlotte Rampling, Bruno Ganz, August Diehl e Christopher Lee (além do próprio Irons), são alguns dos nomes de relevo que ajudarão a contar a história. Nenhum deles, contudo, alcança alguma dimensão além do superficial. Em alguns casos, são menos que a personificação de caricaturas, o que faz das relações costuradas entre eles um acumulado insosso de frágil dramaturgia.

Trem Noturno para Lisboa é antes de tudo um filme pretensioso. Mas encontra nas suas limitações simplistas o desmoronamento dessa pretensão. Quer ser poético, inspirador e apaixonante, tudo ao mesmo tempo, e na ânsia de sê-lo revela-se um inflado de grande vazio.

Como se seguisse algum manual esquemático, parece crer que a simples combinação de música insistente, personagens solitários, segredos e traumas do passado, uma juventude política contra um regime autoritário e o fogo das paixões de um triângulo amoroso juvenil bastariam, empilhados, para funcionar. Mas não, não bastam. O resultado é decepcionante.
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Night Train to Lisbon
Bille August
Alemanha/Suíça/Portugal, 2013
111 min.


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quinta-feira, novembro 28, 2013

Vila de Paranapiacaba recebe 5ª edição de festival de curta-metragem


A histórica vila de Paranapiacaba, em Santo André (região do ABC paulista), recebe neste final de semana a 5ª edição do Curta Neblina. O festival, que reúne curtas-metragens brasileiros e de países latino-americanos, vai de hoje (28) até domingo. Todas as atividades são gratuitas (veja programação completa abaixo).

Nesta edição, o festival exibe 26 produções divididas em três categorias: Mostra Principal, Mostra Animação e Mostra Primeiros Filmes. O programa inclui ainda a mostra especial Diversidade Sexual, que este ano homenageia o cartunista Laerte, que participará de debate com o público no sábado à tarde.

Na tarde de domingo, o festival promove uma sessão de autógrafos do livro Curtametragem, de Rafael Spaca. A obra é uma compilação de entrevistas feitas pelo autor com cineastas, atores e diversas figuras do universo cinematográfico.

Os filmes do festival concorrem ao troféu Mojica (uma homenagem ao cineasta José Mojica Marins, o Zé do Caixão). Eles disputam o troféu nas seguintes categorias: animação, direção, ator, atriz, roteiro, direção de fotografia e montagem.

As exibições e o debate ocorrem no Clube União Lyra Serrano. A sessão de autógrafos será na hospedaria Os Memorialistas.
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Serviço:
O que: V Curta Neblina – Festival Latino-Americano de Cinema
Quando: De 28/11 a 1º de dezembro
Onde: Clube União Lyra Serrano (Av. Antonio Olyntho, s/nº) e hospedaria Os Memorialistas (Av. Fox, 525).
Quanto: Grátis
Informações: (11) 97289-6765 / (11) 98313-1983
Site: curtaneblina.blogspot.com.br

PROGRAMAÇÃO

28/11 – Quinta-feira
20h – Cerimônia de Abertura

29/11 - Sexta feira
20h – Exibição de Curtas – Programa 1 (Bloco A: 12 anos – Bloco B: 14 anos)

30/11 - Sábado
14h – Exibição de Curtas – Programa 2 - LIVRE
16h – Debate com o cartunista Laerte - mediado pelo crítico Christian Petermann
20h – Exibição de Curtas – Mostra Laerte de Diversidade Sexual

1/12 - Domingo
14h – Exibição de Curtas – Programa 3 - Infantil
16h – Tarde de Autógrafos com Rafael Spaca (Hospedaria Os Memorialistas)
20h – Cerimônia de Encerramento

PROGRAMA 1

BLOCO A (Classificação: 10 anos):
Iguaria – Fábio Fehrsi / FICÇÃO – São Paulo/SP
Animador – Fernanda Chicolet / FICÇÃO – São Paulo/SP        
Polaroid Circus – Marcos Mello e Jacques Dequeker / FICÇÃO – São Paulo/SP

BLOCO B (Classificação: 14 anos)
As Piadas Infames do Aníbal – Carlos Eduardo de Carvalho Machado /FICÇÃO – Guarulhos/SP
Sangue & Rosa – Diego Scarparo /ANIMAÇÃO – Cachoeiro do Itapemirim/ES
Pedaços – Athansios Kalogiannis / FICÇÃO – São Paulo/SP

PROGRAMA 2

BLOCO A (Classificação: Livre)
Musa – Leo Leite / FICÇÃO - Recife/PE
Sobremesa – Lucía Ferreyra / FICÇÃO – Argentina
Fogo-Pagou – Ramon Batista / DOC – Taquaritinga do Norte/PE
Juan Night Stand – Yashim Bahamonde e Nelson Mendoza/FICÇÃO – Porto Rico

BLOCO B (Classificação: Livre)
Uma Vida Feita de Outras – Denise Marchi/ FICÇÃO – Porto Alegre / RS
Estepário, um Cadáver Esquisito – Sorel Fabiani / FICÇÃO - Isla Margarita/Venezuela
Piove, Il Film di Pio – Thiago Mendonça DOC – São Paulo/SP

PROGRAMA 3

BLOCO 1 (Classificação: Livre)
O Capitão – Vanden Broeck / ANIMAÇÃO – Cuajimalpa/México
Paleolito – Ismael Lito / ANIMAÇÃO – Rio de Janeiro/RJ
A Equação do Amor – Fábio Allon / FICÇÃO – Curitiba/PR

BLOCO 2 (Classificação: Livre)
O Menino que Sabia Voar – Douglas Alves Ferreira / ANIMAÇÃO – São Paulo/SP
Cabeça Papelão – Quiá Rodrigues / ANIMAÇÃO – Rio de Janeiro/RJ
Dona Rosa – Mathias Mangin e Lucas Mandacaru / DOC – São Paulo/SP

MOSTRA LAERTE DE DIVERSIDADE SEXUAL

BLOCO A (Classificação: 12 anos)
Filho de Deus – Alvaro Rozas Leiva e Tomas Montalva Armijo / ANIMAÇÃO – Santiago/Chile
Esse Coração que me Resta – Marcella Jacques / FICÇÃO – Belo Horizonte/MG
Porno Star – Sergio García Locatelli / FICÇÃO – Argentina
Paraphilia – Lino Negri / FICÇÃO – Porto Alegre/RS

BLOCO B (Classificação: 12 anos)
Retrato Invisível – Denise Soares / FICÇÃO – Curitiba/PR
O Melhor Amigo – Allan Deberton / FICÇÃO – Fortaleza/CE
Antes das Palavras – Diego Carvalho Sá / FICÇÃO – São Paulo/SP

sexta-feira, novembro 22, 2013

Blue Jasmine

Alguns risos provocados pelas situações de Blue Jasmine, novo filme de Woody Allen, são carregados de certo desconforto. Há graça na situação, daí o riso. Mas a graça está na superfície, pois o miolo do que se revela em cena tem algo de constrangedor, daí o desconforto. Apressadamente, pode-se confundir com humor negro, mas o que temos aí é humor ácido.

Não é de hoje que Woody Allen descortina em suas tramas a patetice que há nos dramas da sociedade moderna e em nossas sempre conflituosas relações humanas. Porém, com o passar do tempo – e peneirando-se o que realmente tem qualidade em uma produção prolixa que se torna cada vez mais irregular – o resultado desse descortinado parece caminhar para o melancólico.

Melancolia esta que agora surge até como uma obviedade cravada no título, em que “blue”, como se sabe, indica tristeza. Jasmine (Cate Blanchett) é uma socialite que ficou dura depois de o marido rico ser preso por falcatruas financeiras. Ela então vai morar com a irmã pobre em San Francisco.

A situação que se desenha com isso poderia resultar numa pilha de clichês envolvendo o conflito de classes, com farpas de afetação, preconceitos, constrangimentos e o manjado choque de camadas sociais distintas.

De fato, há um pouco disso no início de Blue Jasmine, mas Woody Allen logo direciona sua trama para revelar não a óbvia superfície desse conflito, mas o caráter mais íntimo de suas personagens.

O diretor até brinca com a obviedade – que logo dispensará – ao fazer de Jasmine a loira e de Ginger (Sally Hawkins), a irmã pobre, a morena. Explica-se: ambas foram adotadas. Daí em diante, contudo, trabalha seus personagens desmontando gradativamente o maniqueísmo aparente. É nesse desmonte que o filme cresce.

Em narrativa paralela, Allen vai contar como Jasmine chegou ao desamparo financeiro. Ao mesmo tempo, por meio da excelente atuação de Cate Blanchett, revela as consequências do trauma que a levou à lona. Nesse aspecto, o trabalho de Blanchett merece destaque.

Ela compõe na medida uma personagem que se apresenta detestável e ridícula em sua afetação. No entanto, o faz com boa dose de autêntica fragilidade, desmontando-a em sua soberba. Para isso, alterna-se em doses de insanidade, que ora passa pelo cômico, ora pelo sinistro e ora se confunde um e outro, feito riso e desconforto.

No oposto, vemos a vida ordinária de Ginger, cujas perspectivas não vão além dos dois filhos cujo pai (seu ex-marido) se ressente da ex-cunhada, um futuro novo marido grosseirão que vai da explosão agressiva à fragilidade infantil e uma carreira fadada a caixa de supermercado. Allen não constrói nela a virtuosidade do simples, mas o fado disso.

Sem deixar de lado o humor natural da vida, melhor qualidade do cinema de Woody Allen, Blue Jasmine desenvolve, em meio aos conflitos, ingênuas aspirações feitas de esperanças e alimentadas por inverdades.

No que poderia ser esquemático e previsível, desconstrói no espectador certezas que se desmancham na humanização de quase todos que passam pela tela. Sai o maniqueísmo do certo e entra o sentimento do difuso, mais real e menos simples de ser digerido. Ora odiamos, ora nos apiedamos.

Mas Allen não facilita e por baixo da camada de humor e graça que cobre quase todo o filme, despeja uma acidez que faz desse humor algo amargo e melancólico. Não deixa muito espaço para sonhos, apenas o desconforto que, sob a espuma do riso, esconde uma conformação ao que se está fadado e uma falsa alegria contraposta a um grande pessimismo. É o que faz de Blue Jasmine um dos melhores entre os filmes recentes do diretor.
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Blue Jasmine
Woody Allen
EUA, 2013
98 min.

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segunda-feira, novembro 11, 2013

Capitão Phillips

O diretor britânico Paul Greengrass é um ótimo artífice da montagem como ferramenta para criar tensão. Mas não parece ter ainda desenvolvido a habilidade de dar dimensão dramática a seus personagens.

Sua qualidade como artesão de thrillers está comprovada em filmes como A Supremacia Bourne, o Ultimato Bourne e Voo 93. Neles, Greengrass mostra saber muito bem como controlar o ritmo das imagens para criar suspense enquanto desenrola a ação. Com sua técnica, faz crescer a expectativa a cada cena, prendendo o público numa vertiginosa onda de cortes que picotam toda a ação para dar a ela um tom de urgência e asfixia.

Não é diferente em Capitão Phillips, filme que, estrelado por Tom Hanks, se baseia numa história real envolvendo um navio cargueiro da marinha mercante dos EUA e piratas somalis. Hanks é o capitão do título que terá seu navio invadido e acabará vítima de uma situação extrema de medo e desespero.

Naquilo que é bom, o diretor é ótimo. Mas uma história como a de Capitão Phillips talvez exigisse habilidades que ainda faltam a Greengrass. Pois se o filme funciona muito bem como thriller, seu natural aspecto dramático fica um tanto na superfície.

Isso não ocorre, porém, por culpa do elenco. Pois se, além do suspense, há outro bom motivo para ver o filme, este motivo é o desempenho dos atores. Do veterano Tom Hanks até o mais que convincente desempenho do elenco somali – todo ele amador –, é a força das atuações que sustenta o circo de Greengrass.

Esta sustentação encontra sua melhor qualidade no arco dramático que sugere a figura de Muse (Barkhad Abdi), líder dos piratas. Mas sugere apenas, justamente porque o filme está sempre mais preocupado em gerar tensão do que em dar dimensão ao drama de seus personagens.

Isso não enfraquece seu resultado naquilo que se propõe, mas  deixa algo como um ruído entre o drama natural da história e seu desenrolar com foco em um resgate orquestrado pelas forças especiais da marinha norte-americana. Nisso, o casamento entre a tensão e o drama não se equilibra bem.

Já no seu início, o filme insere uma proposta que abandona sem desenvolver. Um ótimo diálogo entre Phillips e sua esposa sobre os filhos – que estão entrando na vida adulta – e sobre o mundo que vão encontrar contrasta com a cena a seguir. Toda a gravidade que identificamos nas preocupações de Phillips é posta a prova quando o filme vai para a costa da Somália e revela outro mundo. O mundo de Muse.

É o encontro desses dois mundos, por meio da ação de pirataria e sequestro, a aparente proposta dramática que sustentaria a ação. Mas isso fica no meio do caminho, com apenas alguns breves lampejos desse conflito de “mundos”, que daria ao filme um estofo que ele até parece querer ter, mas definitivamente não tem. Pois é nisso que Greengrass se mostra mais fraco.

Entre outros motivos, porque este é um diretor muito mais visual do que sutil. A questão da proporcionalidade que o filme trabalha na imagem prova isso. O desequilíbrio entre os dois “mundos” é mostrado visualmente na desproporção de tamanhos e forças. Seja do pequeno barco somali ante o imenso cargueiro, seja dos esquálidos piratas ante a bem nutrida tripulação, ou a ainda mais evidente desproporção entre quatro piratas somalis e o poderio militar dos EUA.

Ainda assim, Capitão Phillips é um eficiente thriller que mantém o espectador tenso, elevando o grau de tensão de forma constante. Na sua estrutura dramática, mesmo com suas fragilidades, tem o mérito de reduzir bastante o maniqueísmo típico de filmes em que as forças armadas dos EUA representam a “cavalaria” salvadora. Há na sua elaboração contrapontos interessantes que matizam suas cores, reduzindo certezas pétreas sobre o que é maldade e vilania e o que é apenas desespero.

Graças às excelentes atuações, é possível uma forte empatia com o protagonista sem que isso anule uma também empatia com seus algozes, em especial com Muse. Essa baixa voltagem de maniqueísmo, somada à competência do filme em produzir tensão, fazem de Capitão Phillips um filme que merece ser visto.
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Capitain Phillips
Paul Greengrass
EUA, 2013
134 min.

Trailer


quinta-feira, novembro 07, 2013

Gravidade

Claustrofobia, medo e tensão permanente atingem níveis sufocantes ao longo dos 91 minutos de Gravidade. Por meio de uma técnica impecável, o filme consegue proporcionar uma experiência visual deslumbrante e também assustadora, o que contribui para que uma outra experiência, a emocional, seja também convincente.

Para isso, o diretor mexicano Alfonso Cuarón lança mão da técnica, transformando seu aspecto puramente visual - que noutros filmes raramente vai além do meramente contemplativo - em uma representação sensorial capaz de nos absorver intensamente, e ainda a coloca a serviço da reconstrução do clássico embate homem versus natureza. Embate este que não é nenhuma novidade no cinema, mas que Cuarón repagina de forma muito inteligente.

Neste confronto clássico, nada de novo. Como sempre, a paisagem é tão deslumbrante quanto hostil. Saem de cena animais selvagens, desertos escaldantes, cordilheiras geladas ou mares revoltos. A 600 km da superfície da Terra, o desafio é a falta de gravidade, o oxigênio limitado, o silêncio desolador.

O experiente astronauta Matt Kowalski (George Cooney) e a Dra. Ryan Stone (Sandra Bullock), novata em missões espaciais, fazem parte da tripulação do ônibus espacial Explorer, em órbita terrestre. Numa rotineira tarefa fora da nave, são surpreendidos por um acidente envolvendo satélites próximos, uma colisão que cria uma reação em cadeia lançando destroços em alta velocidade em sua direção.

Da destruição à deriva no espaço, Gravidade trabalha seu registro com uma eficiente imersão sensorial no drama dos personagens, em especial ao da Dra. Stone. Para conseguir esse efeito, o diretor usa com muito apuro o recurso do plano em sequência, montando sua narrativa em longos períodos sem cortes e fazendo uso bem dosado da câmera em primeira pessoa.

O resultado é de uma eficiência rara, capaz não apenas de nos absorver como de também nos impressionar. As sequências de destruição remetem ao que de melhor já se produziu no cinema em termos de catástrofe, mas com uma intensidade que apenas o efeito 3D, quando usado como meio, não como fim, pode proporcionar.

Parte do sucesso desse efeito imersivo se deve à construção sutil, ao modo como o diretor trabalha recursos técnicos. São transições discretas entre pontos de vista, aproximações que nos inserem, sem que percebamos, num claustrofóbico capacete espacial ou nos distanciam para uma perspectiva de terror e perigo iminente, na qual a profundidade de campo é essencialmente bem trabalhada.

Nesta elaboração imersiva, os efeitos sonoros complementam a atmosfera de sentidos. Do silêncio espacial aos sons ocos de movimento e impacto que se ouvem dentro de um traje espacial, passando pela sonoridade letárgica no interior de cápsulas sem gravidade ou o ruído incessante do rádio quando está funcionando, tudo contribui para nos envolver intensamente.

DRAMA
Todo esse conjunto de efeitos faz de Gravidade, acima de tudo, um trabalho de imersão, e como tal o filme se resolve de forma brilhante. Mas nada disso teria força sem uma linha dramática à altura. Nesse sentido, o filme tem seu aspecto menos brilhante, o que não quer dizer que seja ruim.

George Clooney cumpre com seu papel de carismático, enquanto Sandra Bullock segura com bastante afinco sua personagem, conduzindo seu esforço de sobrevivência de modo convincente. Mas o roteiro, na elaboração do drama e na personificação dessa mulher, não escapa a muletas sentimentais que, se não a enfraquecem, também não vão além de um aditivo dramático de potencial apenas apelativo.

Por outro lado, é justamente essa muleta que leva o filme a outro aspecto clássico do embate homem versus natureza, que é o esforço de sobrevivência ante a opção fácil de desistir. Daí que, a partir de certo momento, Cuarón concentra nesta personagem a mitificação do esforço de superação, representado com gigantismo épico na bela cena final. Um efeito que se equilibra entre o piegas e o grandioso, mas que convence na atuação de Bullock.

Ainda que deslize no apelo sentimental e numa discutível mensagem de superação, tudo em Gravidade funciona para fazer do filme uma experiência de compressão, dentro da qual somos levados a sentir o medo deslumbrante da morte na solidão no espaço. Uma experiência digna de ser vista em 3D, para que se possa aproveitar sua riqueza de detalhes.
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Gravity
Alfonso Cuarón
EUA, 2013
91 min.


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segunda-feira, novembro 04, 2013

Amor Bandido

As conexões entre os personagens de Amor Bandido formam uma corrente não muito sólida, mas com liga suficiente para nos fazer embarcar com certa cumplicidade amigável. Mesmo o elo mais fraco, que é a motivação de Ellis (Tye Sheridan) para ajudar o misterioso Mud (Matthew McConaughey), encontra alguma sustentação no histórico que a narrativa constrói em paralelo, como sua aura romântica e a crise no casamento de seus pais.

Assim, ainda que o filme seja frágil naquilo que é a base de sua construção narrativa – as relações entre os personagens – ele se mostra eficaz naquilo que é sua segunda intenção: ser um filme sobre meninos e homens e sobre o transitório de mão dupla entre um e outro; e funciona melhor ainda em sua terceira camada: a elaboração de uma atmosfera de aventura juvenil, com o que há de inocência e amadurecimento no seu desenrolar. Uma atmosfera que se inicia com o aventuresco.

Dois jovens, de seus 14 anos, que vivem em uma região ribeirinha do rio Mississipi, no Arkansas, saem de barco, ás escondidas, até uma ilha próxima. Buscam uma espécie de tesouro perdido, que é um barco “encalhado” no alto de uma árvore. É a imagem deste barco na tela que dá o tom inicial que permeia o surreal e lança as matizes da aventura improvável.

Logo, no entanto, os jovens descobrem que na ilha vive um sujeito misterioso, chamado Mud, que está morando no barco do alto da árvore. Armado de uma pistola, usando botas de cowboy e envolto em superstições, aos poucos ele envolve os dois jovens em suas histórias. Diz esperar por alguém, um grande amor que virá encontrá-lo para que fujam juntos.

Entre verdade e fantasia, descobre-se que Mud está sendo procurado pela polícia, que uma garota que combina com a descrição que ele deu está pela cidade, que além da polícia outras pessoas estão à sua procura.

O mistério e a ambiguidade dos personagens contribuem não apenas para a atmosfera do filme, mas para livrá-los de um maniqueísmo fácil. Embora ao longo da história essas ambiguidades diminuam e o caráter dos personagens fique melhor definido, sua elaboração causa um efeito de simpatia oblíqua no espectador, que adere ao filme apesar de suas fragilidades.

Esta adesão, que pode ser profunda ou superficial, é mérito de uma fotografia equilibrada, de filtros discretos que remetem a um tipo de memória sem cair no memorialismo. É como ver o presente sob o filtro da juventude e de imediato guardá-lo como passado, com cores que, mesmo vívidas, já indicam um tom desbotado. Uma espécie de presente que já nasce com aura de passado.

No efeito final alcançado, há o mérito também de boas atuações, como a de Matthew McConaughey, que balança entre uma leve insanidade afável e o desconcerto de uma vida fora dos eixos. Além do entusiasmo bem autêntico que se vê na atuação do jovem Tye Sheridan.

Amor Bandido acaba, portanto, funcionando como um daqueles filmes dos quais gostamos de lembrar, ainda que não seja especialmente marcante. Tem uma aura que nos envolve, personagens que nos predem; tem mistério, tem aventura. Suas imperfeições, seus personagens secundários que ora despistam, ora se tornam óbvias muletas para o desenlace, não afetam demais a integridade de suas intenções, o que faz dele o tipo de filme que gostamos de gostar.
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Mud
Jeff Nichols
EUA, 2012
130 min.


Trailer

 

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