terça-feira, outubro 12, 2010

O Ser Crítico


As pessoas às vezes me perguntam por que os críticos costumam gostar tanto de filmes que ninguém gosta - e muitas vezes nem conhece - e desprezar tantos filmes que fazem grande sucesso de público e todos gostam.

A resposta a esse tipo de questionamento é um pouco complicada, até porque a pergunta tem uma certa esteriotipação da figura do crítico e um certo simplismo no conceito gostar/não gostar. Mas vou tentar explicar, baseado na minha própria vivência.

A primeira vez que assisti ao filme Cidadão Kane foi em 1996. Achei um filme muito bom. Mas, na época, não entendi porque havia todo um culto em torno dele. Tampouco consegui ver o que fazia dele um fenômeno tão forte, capaz de mantê-lo por décadas no topo de quase todas as listas de melhores filmes da história.

Hoje acho Cidadão Kane um filme incrível, soberbo. Não bato o martelo sobre ser o melhor de todos os tempos, mas não pode jamais ficar fora de uma lista dos 5 ou 3 melhores.

E o que mudou de 1996 para cá? É que naquela época me faltavam subsídios para entender Cidadão Kane em toda sua importância, genialidade e grandeza cinematográfica. O que me faltava era algo que chamo de "dimensão da coisa". Uma coisa que, no caso do cinema, só adquiri algum tempo depois, após um lento e contínuo processo da aprendizagem, estudo, análise e observação do objeto fílmico. Só depois disso é que passei a ter a tal “dimensão da coisa”.

Mas, afinal, que dimensão é essa?

Vinicius de Moraes, o capitão do mato, poeta e diplomata, tem um poema chamado O Operário em Construção. Nesse poema há uma estrofe que diz:
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão.
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

No poema de Vinicius o que ocorre com o operário é o que se pode chamar de epifania; uma descoberta súbita de algo que mudará completamente sua compreensão do mundo ou de determinada coisa. A partir daí, para o operário, tudo ganha outra dimensão, muito mais ampla, abrangente, profunda e contextualizada. É o que chamo de "a dimensão da coisa".

Com o cinema, no meu caso, foi parecido. Mas ao contrário de uma epifania, súbita e reveladora, essa dimensão só veio com o tempo e com o estudo da sétima arte. Antes de iniciar meus estudos de cinema, como era o caso na primeira vez que vi Cidadão Kane, não tinha a devida dimensão do cinema, de sua linguagem, de sua formação e de sua história. Não que hoje eu seja "douto" nesse assunto, mas meus estudos me levaram a conhecer o fundamental que, somado à experiência de assistir aos filmes também fundamentais, permitiram um melhor dimensionamento do cinema que vejo hoje.

E foi a partir disso - dos estudos e dos filmes vistos - que me tornei mais seletivo, mais crítico e mais criterioso com o que vejo. E isso, acreditem, é um processo natural e não uma impostura falaciosa, nem uma tentativa de ser (parecer) mais inteligente ou melhor do que os outros, quando o assunto é cinema.

Permitam-me uma digressão a título de exemplo.

Certa vez, vi um amigo meu, que entende muito de artes plásticas e pintura, irritar-se com a exaltação das pessoas para uma obra de artesanato de feirinha de rua. Dizia ele que aquilo era artesanato, não arte, e que a pessoa que tinha feito o quadro era artesão, não artista.

Achei muito interessante essa distinção. Certamente este meu amigo, ao ver uma pintura de artesanato, sabe reconhecer quais elementos faltam ali para que se possa considerar aquilo arte. Da mesma forma que ao ver um quadro de Pablo Picasso sabe reconhecer nas cores, nos traços e no conjunto, quais elementos fazem daquele quadro uma obra de valor inestimável.

Eu, que pouco conheço do assunto, talvez não veja no quadro de Picasso tudo aquilo que se diz de valor artístico, como também, por ser ignorante no assunto (e não há demérito em sê-lo), posso achar o artesanato de rua uma coisa lindamente artística. Falta-me, nesse caso específico, a dimensão da coisa, algo que só o estudo e o aprendizado de sua história e evolução podem dar.

O fato desse meu amigo distinguir criteriosamente uma coisa da outra, colocando cada uma em seu devido patamar, não faz dele um chato preconceituoso para com o artesão. Mas apenas alguém que ao conhecer um pouco melhor a dimensão da arte plástica, passa a ser, naturalmente, mais seletivo. Não o faz para ser arrogante ou exibido, mas apenas porque seu gosto é mais exigente, justamente por entender e saber colocar em perspectiva cada um dos fatores envolvidos.

Poderia dar muitos outros exemplos, pois em todas as áreas do conhecimento isso acontece. Poderia ser o caso do sujeito que acha a empadinha do café da esquina a coisa mais gostosa do mundo, mas um dia, ao se tornar estudante de gastronomia, percebe que aquela empadinha era realmente gostosa, mas passava longe de ser tão suprema quanto lhe parecia antes. É a dimensão da coisa.
O nome disso é tornar-se crítico. Um processo inevitável e inerente à qualquer tipo de aprendizado. E não é diferente com o cinema e a crítica em geral.

Ao se adquirir dimensão histórica da linguagem, das formas, dos princípios narrativos, do jogo de cena, da estética fílmica, do universo temático, dos recursos artísticos e das grandes obras dos grandes diretores, fica mais difícil gostar dos filmes banais, feitos apenas para entreter, que caem facilmente no gosto das pessoas. Como a empadinha ou o artesanato.

Tornar-se seletivo, depois de adquirir a tal "dimensão da coisa" não é uma opção, é inexorável. E é isso que explica porque os críticos têm essa fama de ranzinzas, de não gostarem de nada. Não porque sejam melhores ou mais inteligentes que o grande público, apenas vêem o filme de um panorama diferente.

Isso não substitui a experiência íntima, pessoal e intransferível do cinema em cada um de nós, incluso o grande público. E gostos pessoais sempre estarão presentes, imiscuídos ou prevalecendo em qualquer análise. A crítica existe para quem quer a crítica. Para quem não a quer, que se goste ou se desgoste do filme como bem entender e nenhum crítico tem nada que ver com isso. E o inverso vale na recíproca. Porque a experiência e o prazer do cinema são únicos. Ponto.

Mas para quem já entrou no tal processo de dimensionamento da coisa não há mais volta. E aí fica quase impossível ver um filme como, por exemplo,
Lua Nova, e achar algo de interessante nele. Por outro lado, ver pela enésima vez um filme como Noites de Cabíria (Fellini) ou Aurora (Murnau), pode ser sempre, todas as vezes, uma experiência prazerosa e enriquecedora.

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