sexta-feira, dezembro 24, 2010

A Culpa é do Fidel



La Faute à Fidel
Julie Gravas
França, 2006

Em sua estréia na direção, Julie Gravas, filha do cultuado cineasta grego Costa-Gravas, consegue um feito notável: retratar um período da história recente com inteligência e sensibilidade, através de uma abordagem original na perspectiva.

O tempo da narrativa é o final dos anos 60 e começo dos 70. No pano de fundo do filme estão os ideais do socialismo e toda efervescência daqueles anos agitados. Estão presentes no cotidiano dos personagens figuras e fatos como a ditadura de Francisco Franco na Espanha, o pós-maio de 68 na França, a eleição de Salvador Allende no Chile (e sua posterior derrubada e assassinato pelo general Augusto Pinochet), a morte de Charles de Gaule e todo contexto político e ideológico da juventude socialista engajada daquele tempo.

Com isso, o filme poderia facilmente ser apenas mais um retrato de uma época, que a despeito de sua importância histórica e social já foi explorada à exaustão pelo cinema. Ou poderia ser mais um filme-denúncia, impregnado pelo memorialismo documental, panfletário e ideológico. Mas não é o que acontece.

O que Julie Gravas nos apresenta é uma perspectiva diferente, inovada, que dá ao filme graça e beleza pela inocência com que uma época nos é mostrada. E isso tudo se deve à personagem Anna. É pelos olhos de Anna que vemos esse tempo e é através dela que se filtra a realidade, quase sempre com um humor ingênuo, mas não sem alguma reflexão. E quem é Anna?

Anna é uma menina de 9 anos que tem uma vida confortável com seus pais e seu irmão caçula. Seu pai é advogado e sua mãe jornalista. No melhor sentido da palavra, Anna é uma princesinha: delicada, feminina e requintada. Gosta da vida que tem, do colégio de freiras onde estuda, das férias na casa dos avós em Bordeaux, das roupas bonitas que veste e da casa ampla onde vive. Logo no início do filme há uma cena em que Anna, numa festa de casamento, tenta, sem muito sucesso, ensinar seus primos a se portarem à mesa com educação e refinamento. Essa é Anna.

As coisas começam a mudar quando uma tia e sua prima vão morar em sua casa. Elas vêm da Espanha, fugidas da ditadura do General Franco. É à partir desse fato que, pouco a pouco, Anna vê seus pais se engajarem cada vez mais nos movimentos de esquerda e sua vida começar a mudar drasticamente.

Mudam-se para um apartamento pequeno, passam a comer comidas exóticas, trocam de babá freqüentemente (geralmente mulheres fugidas de regimes opressores da época) e mesmo ler os quadrinhos do Mickey Mouse é censurado por seus pais. Mais do que isso, pessoas estranhas passam a freqüentar a casa, homens de barba cerrada, cabelos desgrenhados e roupas estranhas em intermináveis reuniões com seus pais.

Toda essa mudança assusta Anna, que tem uma visão infantil e aterrorizada do que sejam comunistas. Para ela, comunistas são os “barbudos vermelhos” que querem fazer a guerra nuclear e tomar suas coisas. Anna também sente falta de sua vida antiga, se sente discriminada no colégio de freiras, pois foi impedida pelos pais de freqüentar as aulas de catecismo, tendo que se retirar da sala quando as aulas têm início. A reação de Anna, não poderia ser outra senão a rebeldia. Geniosa, determinada e de personalidade forte, ela contesta tudo, se rebela contra tudo, exige ter sua vida de volta.

O que os pais de Anna tentam é passar à filha noções de solidariedade e igualdade, a importância da liberdade e de um mundo mais justo. Esbarram, no entanto, na teimosia da filha, na sua carrancuda expressão que rejeita e contesta qualquer argumento. O que segue é um processo de tentativa e erro, onde Anna terá de aprender a crescer e a aceitar as mudanças, bem como as diferenças. Mas para isso, terá de vivenciar sua própria prova, sua própria experiência de crescimento, apesar de sua rejeição.

Há no filme uma cena antológica e delicada, quando um dos “barbudos” ensina a Anna, usando uma laranja como metáfora, os princípios de justiça social, concentração de renda e divisão de riquezas. E há, em contrapartida, outra cena onde Ana brinca de lojinha com os “barbudos”, vendendo produtos com lucros exorbitantes. Duas cenas que definem claramente a oposição de idéias, os arraigados preceitos de Anna, na inocência de seus 9 anos.

A pequena atriz Nina Kervel-Bey dá um show como Anna. Empresta à sua personagem uma expressão forte, de cenho quase sempre franzido e olhar penetrante. É, sem dúvida, um dos grandes motivos para se ver o filme. Sua atuação é impecável e representa grande parte de graça e beleza do filme.

A “Culpa é do Fidel” é, portanto, um filme divertido e raro. Mostra com inteligência e delicadeza o processo de aprendizagem e amadurecimento de Ana, que passa da rejeição à aceitação, cumprindo o árido caminho da revolta e da contestação. Ensina que as escolhas têm seu preço e que solidariedade é algo que se forma, não algo que se explica. Ensina, acima de tudo, que crescer pode ser um doloroso aprendizado, difícil e tortuoso. Mas que no fim os ganhos se mostram sempre maiores que as perdas.
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