segunda-feira, dezembro 30, 2013

São Silvestre






São Silvestre, filme de Lina Chamie, em cartaz em São Paulo, entra na classificação de documentário. Mas é, acima de tudo, uma experiência sensorial. Qualquer espectador médio que chegar à sala de cinema sem esta informação pode estar a meio caminho de não gostar do filme.

Isso não acontece porque seja mau filme – longe disso, aliás –, mas porque é diferente, e o diferente exige sempre olhos livres, que é algo escasso em tempos de público de cinema anestesiado pela mesmice de filmes convencionais.

Mas, sabendo antes o que pode encontrar, este mesmo espectador terá a chance de mergulhar em uma experiência inusitada e original, capaz de trazer revelações e epifanias inesperadas.

De certa forma, São Silvestre á uma antinarrativa, ainda que siga uma cronologia de fatos. Se seu foco principal é a tradicional Corrida Internacional de São Silvestre, evento esportivo paulistano por excelência, sua lente e montagem não deixam de lançar também um olhar sobre a cidade de São Paulo.

Não há diálogos, não há voz de narração, nem explicações. Ao som de composições clássicas, o filme desliza e imerge. Desliza pela cidade, imerge na corrida.

Primeiro, o faz no que pode ser um treino de preparação para a prova. Mas o atleta que se prepara mal aparece em cena. O que vemos são partes de São Paulo sendo engolidas pelo treino ao mesmo tempo que, sonoramente, nos vemos imersos no ato de correr. Correr pela cidade.

Depois, a cidade. No dia-a-dia da metrópole, as imagens não buscam traduzir esse cotidiano, mas também não se limitam a contemplá-lo. São ângulos, momentos, tempos mortos que revelam nas entrelinhas um tipo de fervilhamento endêmico, incessante. Encontra nas ruas e nos rostos um sentido São Paulo de ser.

Só então vem a corrida. Atravessá-la, enquanto ela própria, expressa na multidão de anônimos, atravessa a cidade, ganha então uma dimensão universal e particular. Mas como a diretora Lina Chamie chega a este resultado tão próximo de cada um de nós, único, e ao mesmo tempo universalizador, é algo que não se pode dizer, contar ou explicar: é preciso ver. Ou melhor, sentir.
Para tanto, no entanto, dispensa-se qualquer experiência de corrida. Não é preciso ser praticante, nem ter já participado da prova para ser levado pelo filme a uma experiência de sentidos e completude. Basta estar preparado para vê-lo, para percorrê-lo, com olhos e espírito livres.

Na sua estrutura inusitada, de apostar nos sentidos mais do que na narrativa, São Silvestre se mostra uma ato de coragem e ousadia. Só por isso já mereceria ser visto.

Mas o filme vai além. Alcança seu objetivo de nos trazer não apenas os sentidos únicos de estar dentro da São Silvestre, a corrida, mas também a sensibilidade de conduzir sutilmente nosso olhar para São Paulo, a cidade. No processo, a simbiose nem sempre fácil entre ruas, pessoas, corrida, cidade. O resultado: uma experiência inesperada.
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São Silvestre
Lina Chamie
Brasil, 2013
80 min.

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sexta-feira, dezembro 27, 2013

Lista de Melhores 2013

Acho sempre meio chato fazer listas, mas aqui vai a minha. Digo, vão, porque são três.

Vi muito mais filmes ano passado do que em 2013. Este ano foram menos lançamentos de cinema e muito mais filmes em casa. Explique-se que na maior parte do ano passado estive trabalhando como crítico e repórter de cinema – daí ter mais contato com lançamentos – enquanto que em 2013 naveguei por outras áreas do jornalismo.

Assim, fiz três listas. Os 15 melhores filmes que vi lançados em 2013, os 15 melhores filmes que vi (ou revi) no ano (excluindo os que já entraram na lista anterior) e os cinco piores filmes vistos este ano, também no geral. Aí vai:

15 Melhores filmes que vi em 2013 lançados no cinema:

1. Era Uma Vez em Anatólia (Turquia/Bósnia e Herzegovina, 2011), de Nuri Bilge Ceylan
2. O Som ao Redor (Brasil, 2012), de Kleber Mendonça Filho
3. Tabu (Portugal/Alemanha/Brasil/França, 2012), de Miguel Gomes
4. A Caça (Dinamarca, 2012), de Thomas Vinterberg
5. A Bela Que Dorme (Itália/França, 2012), de Marco Bellocchio
6. A Grande Beleza (Itália/França, 2013), de Paolo Sorrentino
7. O Mestre (EUA, 2012), de Paul Thomas Anderson
8. Azul é a Cor Mais Quente (França/Bélgica/Espanha, 2013), de Abdellatif Kechiche
9. Ferrugem e Osso (França/Bélgica, 2012), de Jacques Audiard
10. Jogos Vorazes: em Chamas (EUA, 2013), de Francis Lawrence
11. Killer Joe - Matador de Aluguel (EUA, 2011), de William Friedkin
12. Gravidade (EUA, 2013), de Alfonso Cuarón
13. Reality - A Grande Ilusão (Itália/França, 2012), de Matteo Garrone
14. A Visitante Francesa (Coréia do Sul, 2012), de Sang-soo Hong
15. Frances Ha (EUA, 2012), de Noah Baumbach

15 Melhores filmes que vi ou revi em 2013:

1. Persona (Suécia, 1966), de Ingmar Bergman
2. Scarface - A Vergonha de uma Nação (EUA, 1932), de Howard Hawks
3. Psicose (EUA, 1960), de Alfred Hitchcock
4. 2001 - Uma Odisseia no Espaço (EUA/Reino Unido, 1968), de Stanley Kubrick
5. Uma Rua Chamada Pecado (EUA, 1951), de Elia Kazan
6. Amor à Flor da Pele (Hong Kong/França, 2000), de Wong Kar-Wai
7. O Ato de Matar (Dinamarca/Noruega/Reino Unido, 2012), Joshua Oppenheimer
8. Os Amantes da Pont-Neuf (França, 1991), de Leos Carax
9. Amor (Áustria/Fraça/Alemanha, 2012), de Michael Haneke
10. Veludo Azul (EUA, 1986), de David Lynch
11. Blade Runner - O Caçador de Andróides (EUA/Hong Kong/Reino Unido, 1982), de Ridley Scott
12. Os Sonhadores (Reino Unido/França/Itália, 2003), de Bernardo Bertolucci
13. O Garoto de Bicicleta (Bélgica/França/Itália, 2011), de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
14. Essential Killing (Polônia/Noruega/Irlanda/Hungria, 2010), de Jerzy Skolimowski
15. Searching For Sugar Man (Suécia/Reino Unido, 2012), de Malik Bendjelloul

10 Piores filmes que vi ou revi em 2013:

1. Infectados (Canadá/Reino Unido, 2013), de Roger Christian
2. João e Maria: Caçadores de Bruxas (Alemanha/EUA, 2013), de Tommy Wirkola
3. Caça aos Gângsteres (EUA, 2013), de Ruben Fleischer
4. O Amor nos Tempos do Cólera (EUA, 2007), de Mike Newell
5. O Voo (EUA, 2012), de Robert Zemeckis
6. Obsessão (EUA, 2012), de Lee Daniels
7. Passion (Alemanha/França, 2012), de Brian De Palma
8. Trem Noturno para Lisboa (Alemanha/Suíça/Portugal, 2013), de Bille August
9. Prometheus (EUA, 2012), de Ridley Scott
10. Os Suspeitos (EUA, 2013), de Denis Villeneuve

quinta-feira, dezembro 19, 2013

A Grande Beleza



A Grande Beleza, novo filme do diretor italiano Paolo Sorrentino, não disfarça sua devoção a Federico Fellini nem à sua obra-prima: A Doce Vida, de 1960. Mas esta devoção em momento algum se sobrepõe à assinatura de Sorrentino na condução deste que é uma visão crítica e atualizada de uma elite ruída em sua própria letargia de valores.

Ainda assim, é quase inevitável a comparação entre o protagonista Jep Gambardella, interpretado com carismática maestria por Toni Servillo, e Marcello Rubini, imortalizado por Marcello Mastroianni no filme de Fellini.

Ambos são jornalistas e frequentam a movimentada noite da elite romana. A diferença fundamental, no entanto, é que o personagem de Fellini exprime ao longo do filme uma angústia crescente, como a se conscientizar da condição banal de sua vida, ao passo que Jep encara essa condição com cinismo, sem grande sofrimento.

Nos primeiros minutos do filme vamos conhecer Jep em sua festa de aniversário, quando completa 65 anos. Ao som de música eletrônica, em uma moderna casa noturna, vemos na pista homens e mulheres, todos vestidos com uma elegância a um passo do espalhafato, dançando com entusiasmo. Nota-se rapidamente a ausência de jovens: todos giram pela casa dos 50 anos.

A partir daí seguimos a jornada de Jep por outras festas, pela casa de amigos e recebendo amigos em sua própria casa, além de vagar pela cidade. Nessa jornada, entre o cinismo e o saudosismo da juventude, acompanhamos reflexões sobre o tempo e sobre o presente; este último, revelador de figuras hedonistas, homens e mulheres cujo baixo intelecto é disfarçado pela afetação de uma vida artificial.

Contudo, as reflexões de Jep não vêm apenas de seu monólogo interior, o que poderia afastar o filme de sua leveza caricata. Elas surgem também nas imagens e situações que transitam pelo tom onírico e pelo deboche elegante.

É o caso, por exemplo, da passagem por uma clínica que faz aplicações de botox em ritmo praticamente industrial ou do casal de “nobres de aluguel”: um conde e uma condessa que cobram para aparecer em festas, no melhor estilo das sub-celebridades de hoje em dia.

Toda essa aventura humana, representação da vida, livre do existencialismo e calcada no niilismo, tem sempre uma reserva de beleza, como a confirmar a vaidade. Esse espelho é representado por uma Roma de palácios, fontes e arcadas. São cenários cuja fotografia esmerada do filme capta como que para reforçar o belo em seu sentido de reflexo de quem o contempla. Assim, esse belo não é apenas um deleite, mas também um artifício de espelho. Mas este belo que está há tanto tempo estático ali é como moldura da decadência de quem se enxerga nele.

No olhar crítico de Sorrentino, não escapa também a igreja católica, na figura de uma mulher santa dedicada à pobreza. Nela talvez resida a mesma epifania que fecha A Doce Vida, que no caso do filme de Fellini se apresenta como um monstruoso peixe morto na praia.

Menos ácido, Sorrentino atribui à figura santa o peso do desfecho que vem da natural morte que a tudo amealha, precedida pela estranheza que uma vida simples causa a essa elite em derrocada moral. Não se trata, por isso, de encontrar significado para a vida, mas de tê-la vivido, de ter estado no mundo. Tudo isso carrega um valor à margem de sentidos morais. Vive-se, simplesmente, a despeito da miséria humana, a despeito da ausência de grande significado e apesar de serem raros os momentos de grande beleza.
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La Grande Bellezza
Paolo Sorrentino
Itália/França, 2013
142 min.

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terça-feira, dezembro 17, 2013

Os Suspeitos



A insistência quase didática em Os Suspeitos de afirmar-se como um drama familiar-policial recheado de ambiguidades morais talvez seja a falha mais grave deste novo filme do diretor canadense Denis Villeneuve. As atuações frias, o roteiro desbalanceado e a direção insossa completam as falhas que fazem desse um exemplar de como um diretor pode ir de uma obra-prima diretamente para a absoluta irrelevância.

Isso porque o filme anterior de Denis Villeneuve foi Incêndios, uma peça de rara excelência cinematográfica; não apenas pelo modo como constrói sua narrativa e o drama dos personagens, mas também pela relevância do pano de fundo da história contada.

Os Suspeitos é seu primeiro trabalho nos EUA, o que poderia ser indício da queda de qualidade, maldosamente falando. Mas isso é pouco para explicar. Até porque o elenco, pontilhado de nomes estrelados do cinema americano, se não prometia na sua heterogenia uma ótima qualidade, tampouco prometeria atuações tão decepcionantes.

No dia de Ação de Graças, duas famílias vizinhas, os Dover (Hugh Jackman, Maria Bello, Dylan Minnette e Erin Gerasimovich) e os Birch (Terrence Howard, Viola Davis, Zoe Borde e Kyla Drew Simmons), se juntam para o almoço de gratidão. O feriado segue ameno, até que as duas caçulas de cada família, de cerca de seis anos, desaparecem.

Entra aí o detetive Loki (Jake Gyllenhaal) e logo surge o primeiro suspeito: Alex Jones (Paul Dano). Mas sem provas que ligue Alex ao desaparecimento das meninas, ele logo é liberado. Começa aí a obsessão de Hugh Jackman, o Dover pai, achando que o rapaz, com claros problemas mentais, sabe onde estão as meninas.

No seu didatismo insistente, o filme, antes mesmo de estabelecer o drama familiar do sumiço das meninas, já estabelece a didática que pretende nos guiar pelos desvãos morais que ele quer estimular. Da oração do “Pai Nosso” que abre o filme numa cena de caça, passando pela música cristã que se segue, e fechando esta primeira remessa didática com um diálogo sobre a ausência de culpa por se ter matado um animal selvagem, o filme diz claramente como pretende preencher suas entrelinhas.

O problema é que este preâmbulo e seus princípios serão martelados no afundamento moral do personagem de Jackman durante sua ação persecutória e inquisitiva. Também será repetido no processo gradual de autorresponsabilização do detetive pelo desenlace dos acontecimentos, na participação passiva do outro casal nas ações condenáveis do amigo obcecado e no crime cometido por um padre anos atrás. Além do surgimento de mais um suspeito.

Em todo esse processo, o filme não apenas se repete no que já foi (e deveria assim permanecer) estabelecido tacitamente, como também o faz com falhas de roteiro, explicações nada convincentes e diversas muletas típicas de gênero. São coincidências, insights repentinos, despistes para desviar a atenção do público, subtramas que não acrescentam nada. Elementos que além de desgastados desprezam a inteligência do público.

A maior parte dessas falhas tornam-se destacadas pela longa duração de mais de duas horas e meia. Essa falta de concisão, aliada a um roteiro ineficiente, dilui qualquer tensão que se possa pretender e dá tempo de se perceber as falhas mais primárias de direção e enredo. Especialmente porque boa parte dessa duração excessiva é gasta com situações que não fazem a história avançar, deixando o filme patinando no limbo da indefinição enquanto martela seus dilemas morais quase sem matizes.

Assim, caminha vagaroso por pistas sutis de suas intenções, como um crucifixo tatuado ali, um anel da maçonaria acolá, além de metáforas bíblicas elementares. Como quando um casal decide não participar nem denunciar ou impedir o horror que se está comentando em nome do desespero (Pôncio Pilatos lavando as mãos?). Todo este apanhado revestido de debate moral torna-se um superficial, um batido acúmulo de referências.

Nesta presunção que não se preenche plenamente durante o filme reside a falha mais clara de Os Suspeitos. O filme não apresenta qualquer perspectiva de profundidade, faz dos personagens apenas autômatos a serviço de um roteiro previsível e pedante, caminha com dificuldade para lugar algum que não seja o desenlace desinteressante.
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Prisoners
Denis Villeneuve
EUA, 2013
153 min.

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segunda-feira, dezembro 16, 2013

Azul é a Cor Mais Quente

O inteiro e o fragmentado funcionam como jogo e contrapontos em Azul é a Cor Mais Quente. Através deles, o diretor tunisiano Abdellatif Kechiche nos conta a vida de Adèle (La Vie d’Adèle, no título original em francês), no filme que foi ganhador da Palma de Ouro do último Festival de Cannes.

Um filme que também despertou antigas (e sempre maçantes e sempre caretas) polêmicas, todas nascidas das cenas de sexo entre duas garotas, mostradas com empenho convincente pelas atrizes e pelo diretor.

Na sua duração de quase três horas, acompanharemos Adèle (Adèle Exarchopoulos) de sua adolescência até a vida adulta. Um período que sempre traz grandes descobertas (e também grandes ilusões) sobre quem somos e o que queremos e o que desejamos.

Assim é com Adèle, que descobre e explora o que esta fase tem de mais fascinante e, não raro, doloroso. Mas no seu caso, a óbvia “dor e delícia” de sempre virá com a intensidade do desconcerto que Emma (Léa Seydoux) causará na sua vida e no seu desejo. É com Emma que Adèle se descobrirá inteira, mas para isso terá que se desdobrar por fragmentos, partes que perdemos para descobrir o inteiro.

Logo no início, durante uma aula, discute-se a sensação de se deixar uma parte de si numa simples troca de olhares na rua entre dois desconhecidos. Adiante, é o que ocorre entre Adèle e Emma. Desdobra-se a partir daí o desejo e a descoberta do prazer homossexual em Adèle. Antes dele, afirma ela após fazer sexo com um garoto, é como se faltasse algo. Não se sentia completa.

Este desejo e esta completude vai se desabrochar na cama e no corpo de Emma. Daí as tais cenas polemicas, daí a classificação indicativa no Brasil de 18 anos, daí grande parte da beleza do filme em uma autenticidade rara no cinema.

Na elaboração desse jogo entre o inteiro e a parte, Kechiche mantém a câmera próxima aos rostos na maior parte do filme. São primeiros planos significativos e ambíguos na medida em que esta proximidade do rosto revela o íntimo e daí o todo, mas ainda assim é só parte, só o rosto. O corpo vem depois, e na sua inteireza no quadro revela-se fragmento, como se dependesse de algo que se encaixe nele.

Neste jogo há uma síntese sentimental a partir da qual se constrói o sentimento de Adèle, sua passagem pela descoberta não apenas da sexualidade e do prazer completo, mas também de si mesma diante do mundo. Nisto, Kechiche ataca sem muita sutileza na questão das classes sociais. Adèle, de família mais simples e sem propósitos artísticos, e Emma, de família sofisticada, com aspirações ligadas à arte.

Essa distinção é trabalhada à mesa, em algumas refeições (e quem assistiu ao O Segredo do Grão e a cena do almoço em família sabe como Kechiche domina a arte de filmar pessoas comendo e falando) e no claro desconforto de Adèle frente aos amigos afetados de Emma.

Mas se as questões sociais frequentam o cinema do diretor, aqui elas são apenas mais parte de um processo do que o foco da narrativa. Servem para texturizar a vida, contrapor personagens e matizar por meio de contrastes a passagem de Adèle na transição da vida.

Nessa passagem, vai da escola como aluna até a escola como professora; amigos, a vida em comum a dois, a falência que fada as relações duradouras, a solidão e seu desconcerto.

O plano final mostra-a inteira, mas como quem – e isso se nota nos tons azuis que pontuam o filme e a revestem no fim – alcançou uma certa inteireza a partir de partes daquilo que perdeu e ganhou, daquilo que deixou de si e do que leva de outros. É o fim da transição, da educação sentimental e sua recolocação no mundo.

Assim, Kechiche reafirma em sua obra a dimensão do humano, uma dimensão em que o comum e a grande aventura da vida caminham juntos, do sobressalto à normalidade, da atração dos corpos ao distanciamento dos mesmos.

Azul é a Cor Mais Quente é um filme sobre se encontrar no mundo, sobre passagem e descoberta, mas nunca sobre certezas. Adèle nunca perde seu ar de certa fragilidade, de lábios entreabertos entre a ingenuidade e o desejo, tão bem filmados pelo diretor. Mas caminha firme no fim, se afastando da câmera. De azul, sem que vejamos seu rosto, apenas seu corpo inteiro.
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La Vie d’Adèle
Abdellatif Kechiche
França/Bélgica/Espanha, 2013
179 min.

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sábado, dezembro 07, 2013

O Ato de Matar

Pode ser difícil de acreditar, mas os personagens de O Ato de Matar são reais. Embora fique sempre claro se trata de um documentário, esta é uma obviedade que precisa ser lembrada. Um reforço que se justifica pelo choque do terrível que o filme constrói, a ponto de nos fazer duvidar.

Isso acontece porque no seu mecanismo se trabalha o “real” em um patamar distinto da normalidade. Seus personagens, ao representarem para a câmera a reconstituição de atos que eles mesmos executaram, tonam-se reais em uma dimensão incomum: são o artifício da figuração, mas também são a verdade factual dentro dessa figuração. Pois é neste jogo de significados que habita o horror que nos surpreende.

Na Indonésia, em 1965, os militares assumiram o poder após um golpe de estado. O motivo do golpe, apoiado por países ocidentais, seria barrar o avanço do comunismo. Segundo informa o documentário, a partir de então, qualquer opositor ao regime poderia ser acusado de ser comunista e morto por isso. Em menos de um ano, milhares desses “comunistas” foram assassinados por grupos paramilitares, sob a anuência do governo.

Alguns dos executores que faziam parte desses grupos ganharam status de heróis nacionais e seguem ligados ao poder até hoje. São como celebridades. Têm orgulho de seus feitos de morte e seus métodos de tortura. Contam – e gostam de contar – os mecanismos de execução que utilizavam.

Foi diante desse orgulho assassínio que o diretor norte-americano Joshua Oppenheimer propôs a esses homens uma representação do real: que reconstituíssem, do modo como quisessem, algumas de suas histórias em frente à câmera. Esse é o dispositivo de O Ato de Matar.

Ao criar esse arranjo formal e improvisado de reconstituição, em que o sujeito representa o próprio sujeito, o filme se insere em uma vertente do documentário conhecida como filme-dispositivo. Nesse tipo de filme, as relações do que é mostrado ganham contornos subjetivos por meio de dispositivos específicos.

Filmes como Super Size Me, de Morgan Spurlock, no qual o diretor se propõe a passar 30 dias se alimentando exclusivamente no McDonald’s e registrar os efeitos nocivos dessa dieta; ou Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, no qual o diretor convida mulheres para contarem suas histórias de vida e embaralha relatos autênticos e representados para discutir os limites entre documento e ficção, são alguns exemplos de filmes-dispositivos.

Em O Ato de Matar, o dispositivo acaba por revelar o absurdo e nos levar ao desconcerto. O que se vê na tela são homens sorridentes e brincalhões. Falam e representam seus assassinatos com a espontaneidade que ultrapassa o orgulho, mergulha no banal e revela uma assustadora ausência de culpa ou noção de gravidade.

Revelam ainda uma perturbadora influência do cinema de Hollywood em seus atos e na banalidade de toda violência que impuseram a suas vítimas.

Para aumentar o desconcerto, o diretor acrescenta a seu dispositivo representativo toques surreais. Bastidores de videoclipes em que os assassinos são as estrelas compõem o horror bizarro que o filme constitui com uma força que confronta a lógica comum para ressaltar a lógica desse mal. Uma lógica menos incomum do que gostaríamos.

Nesse processo, o diretor Oppenheimer pouco interfere. Não aplica, contudo, o distanciamento formal. Sustenta uma posição em que, através de poucos estímulos, permite revelar para o público o absurdo proposto, totalmente encampado pelos personagens. Assim, obtém uma naturalidade na qual seus personagens se deixam desdobrar espontaneamente, aprofundam-se no surreal que representam (e são) e revelam sua indiferença ante o horror da tortura e da morte.

Na articulação desse dispositivo, O Ato de Matar traz à tona uma assustadora disposição humana em banalizar o mal quando o pratica. Mas aqui não se trata das inferências que a filósofa Hannah Arendt traçou ao dissecar o nazismo e o mal banalizado por ele. O patamar aqui é diferente, e mesmo o sadismo – uma simplificação sempre pronta a entrar em discussões desse tipo – ganha contornos distintos e perturbadores.

O Ato de Matar, como documentário e dispositivo, atinge um patamar de significações ricas. É alimento farto para quem quer debater aspectos formais e intrínsecos como jogo de espelhos, sujeito significante ou o significado do sujeito. Mas à parte formalismos acadêmicos, o filme é um retrato de dimensões múltiplas sobre a natureza do mal na natureza humana. Nesse aspecto, funciona de forma simples, direta e perturbadora. A ponto de nos fazer (querer) duvidar de que o que se vê representado seja, ou tenha sido, alguma vez realidade.
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The Act of Killing
Joshua Oppenheimer
Dinamarca/Noruega/Reino Unido, 2012
115 min.

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terça-feira, dezembro 03, 2013

Morro dos Prazeres

Há no documentário Morro dos Prazeres algumas transições em que se contempla, do alto do morro que dá nome ao filme, a paisagem do Rio de Janeiro. A vista muda de acordo com a face do morro de onde é vista, mas o princípio é o mesmo: a câmera que contempla a cidade (e o mundo) “lá embaixo”.

Essas transições são um respiro e também uma carta de princípios. Um tempo para pensar a respeito do que a câmera acabou de mostrar “ali em cima” e uma reafirmação de que esta mesma câmera está lá apenas para mostrar, sem juízo de valor. Por entre becos, escadas, vielas, casas pobres e a unidade de polícia pacificadora, o princípio é muito claro: reproduzir sem filtros ou intervenções uma realidade cuja complexidade se revela por si própria.

O filme é uma incursão da diretora Maria Augusta Ramos no cotidiano da comunidade do Morro dos Prazeres e no cotidiano da força policial pacificadora que o ocupa desde 2011. Vê-se, a partir desta incursão, como brota naturalmente na tela a relação de forças e tensões entre a população e a presença policial. É este o objeto de observação do filme, que serve para construir de forma menos simplista a realidade da questão das UPPs no Rio de Janeiro.

Não se trata, porém, de uma imersão. O olhar do filme mantém sempre um distanciamento que busca uma imparcialidade objetiva. Retrata ambos os lados, de moradores e policiais. Daí que Morro dos Prazeres quer ser um estímulo para a discussão sobre a ação policial e as relações de tensão com a comunidade, mas sem emitir opinião. Deixa-se, assim, na conta do espectador qualquer conclusão ou inferência a partir do que se vê e ouve.

O princípio funciona bem. Mas se por um lado essa imparcialidade oferece a chance de uma visão crítica livre de artifícios indutores, por outro lado corre o risco do empobrecendo do registro, que pela ausência de articulações pode soar como um enfileiramento de situações.

Não é. Vê-lo dessa fora seria um simplismo preguiçoso, uma covardia do espectador que recusa o ônus de pensar e concluir por si próprio. No entanto, essa ausência calculada de articulação enfraquece, inevitavelmente, a riqueza de sentidos e relações profundas expressas nos discursos dos moradores e dos policiais.
Revelam-se, nestes discursos, raízes profundas de ressentimentos, obliquidades e barreiras que se aproximam do intransponível. Há largo material ali, solto no registro, prato cheio para articulações mais elaboradas. Mas resistir a isso é também mérito do filme.

Maria Augusta Ramos não cede à tentação e se atém ao registro cru, de planos e enquadramentos com pouca margem para subjetividade, embora nunca tão distantes que pareçam desinteressados. Há nisso uma harmonia entre um registro frio e uma aproximação humana, um equilíbrio afinado sem interferência, mas também sem a frieza mecânica de quem não se importa.

Morro dos Prazeres torna-se, de qualquer forma, um filme importante de ser visto. Importante para que se possa de forma menos superficial vivenciar através da tela o caldeirão que ferve em fogo brando – tanto na superfície quanto no profundo – com as relações conflituosas que surgem quando há a presença do Estado onde o Estado sempre foi pouco presente.

A realidade complexa que o filme exibe fica bem acima (e bem mais dentro) do que a visão midiática e/ou governista da questão da pacificação nos morros cariocas. Isso porque, se por um lado o olhar do filme busca um distanciamento que se arrisca na desarticulação, não deixa nunca de ser um olhar mais verdadeiro e próximo daquilo que é a realidade.

Sem filtros da mídia, sem filtros de nossos preconceitos, sem filtros até mesmo da articulação que o filme dispensa e que muitas vezes poderia ser mais filtro do que qualquer outra coisa.

Filmado muito antes do caso Amarildo, Morro do Prazeres não é um prenúncio da tragédia, é apenas a constatação das coisas e do estado das coisas. Em tempos de mimetismos superficiais e indutores, de simplismos covardes e apatia documental, seu registro desarticulado pode articular mais questões do que aparenta sua distanciada contemplação.
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Morro dos Prazeres
Maria Augusta Ramos
Holanda/Brasil, 2013
90 min.

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