sexta-feira, outubro 15, 2010

Tropa de Elite

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Tropa de Elite
José Padilha
Brasil, 2007
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O filme Tropa de Elite, do diretor José Padilha, é, antes de mais nada, um filme corajoso. Expõe, de forma visceral, algumas verdades constrangedoras de nossa sociedade. Uma realidade nacional que encontra na cidade do Rio de Janeiro sua representação arquetípica mais sintetizada e intensificada.

Temos ali – no filme e na cidade real – a violência, o crime, a corrupção, a tortura, a violação dos direitos civis, o caos e as distorções do sistema. E por “sistema”, entenda-se uma cadeia complexa e viciosa que corrompe - de dentro para fora das instituições - as estruturas sociais precárias de um país de vergonha como o nosso.

Mais do que sua coragem, o filme tem ainda o efeito surpreendente de nos mostrar algumas dessas verdades constrangedoras através de uma catarse capaz de levar a platéia a se manifestar enfaticamente. Sim, porque é através das reações das platéias, aplaudindo e se entusiasmando com atitudes desprezíveis e repugnantes como a tortura que Tropa de Elite se contextualiza dentro do horror-Brasil, nos induzindo, nos inclinando à aplaudir o grotesco e o covarde.

Esse efeito perturbador do filme sobre a platéia pode abrir centenas de teses sociológicas e psicológicas, relevantes ou de almanaque, na tentativa de explicá-lo; e também à nós, expectadores, enquanto sociedade. Mas a irrelevância de certa polêmica causada pelo filme só não é maior que sua ficção fundamental, pavio que serve justamente e intencionalmente para isso: criar polêmica.

Mas isso é tema para mesas filosóficas, universitárias ou de bares, dispostas a derramarem tempo e teoria no vão do infinito. A mim, interessam outras coisas.

Como cinema, Tropa de Elite se firma não só como o blockbuster nacional que as bilheterias estão demonstrando, mas como uma produção de excelente qualidade, num nível ainda muito pouco visto no nosso cinema. Possui um roteiro impecável, muito bem amarrado, uma direção de primeira e uma edição inteligente e clara sem ser simplista e óbvia. As interpretações são admiráveis (com destaque para Wagner Moura como Capitão Nascimento), além dos diálogos realistas em retratarem uma realidade tão contemporânea quanto viva.

Por outro lado, Tropa de Elite acentua sua maior qualidade através de seu pior defeito: o maniqueísmo. Um maniqueísmo sempre perigoso, mas que neste caso se revela mais que uma simples opção de foco narrativo, mas como um mal necessário, que contextualizado com todo o filme e seus entrelaces soa mais como uma censura e menos como uma apologia.

Pois sendo narrado pelo Capitão Nascimento, oficial do BOPE (Batalhão de Operações Especiais), a visão parcial desse narrador indica uma clara manipulação da realidade, indicando os homens do BOPE como absolutamente honestos e incorruptíveis, em oposição aos homens da polícia convencional, todos desonestos. Como expressão da realidade este maniqueísmo é uma séria distorção, já que nas fileiras do BOPE pode haver tanta corrupção quanto fora delas.

Mais do que isentar seus homens de qualquer desvio de caráter, Capitão Nascimento investe-se de uma autoridade extrema: pode torturar, assassinar e humilhar, indiscriminadamente, sob a alegação de guerra. Ampara seus atos (também criminosos) no esteio de sua conduta ética inabalável e sua luta contra o crime. Assim, Nascimento torna-se um herói dos cansados, dos indignados, dos que não toleram mais o vigoroso mal que apodrece nossas grandes cidades, sob a anuência dos que deveriam combatê-lo. 

Um herói torto, possível apenas dentro do universo irreal que é a realidade brasileira, que toma como virtude coisas que são execráveis, como tortura e assassinato. O que poucos percebem é que Nascimento não é herói de nada. Ele é tão sujo quanto a sujeira que combate; tão torpe quanto a torpeza que execra.

A mim, Capitão Nascimento soou como um caricato selvagem idiotilizado pela violência, acreditando, ingenuamente, estar salvando a pátria. E isso não é um demérito do filme ou à função de Nascimento dentro dele. É apenas idiossincrático. Pois é essa proposição – a de um herói corrompido dentro de si mesmo sob a fé de que os meios justificam os fins – que torna Capitão Nascimento um personagem memorável.

A verdade é que Tropa de Elite coloca-se como um expoente do cinema nacional, seja pela sua qualidade técnica, seja pela sua coragem de bater e se dar a bater. Pode não ser uma unanimidade, mas já é um fenômeno.

Não disseca a sociedade da violência na qual vivemos, pois não conclui nem analisa. Limita-se a mostrar, com todas as palavras (e palavrões), o que é a realidade do “sistema” e seu ciclo ininterrupto de vergonhosa brasilidade, com nossa moral torta de princípios frouxos. Ampara-se na ilusão oblíqua de salvação, através da figura de um capitão de polícia que pouco entende de si mesmo e das contradições de seu discurso raso e parcial.

Tropa de Elite revela não só o que quer revelar, mas instiga de tal forma que nos revela a nós mesmos, surpreendidos por, enleados, simpatizar com aquilo que mais detestamos e por aceitar o que sempre tomamos por inaceitável. Um filme corajoso.
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