segunda-feira, novembro 29, 2010

5 x Favela - Agora Por Nós Mesmos

Antes por Outros

Talvez o impulso inicial inevitável ao se ver 5 X Favela – Agora por Nós Mesmos seja o de comparação com o Cinco Vezes Favela, de 1962. Porém, mesmo sendo o filme de hoje uma conseqüência direta do filme de 33 anos atrás, não creio que caibam comparações. Ainda que sejam projetos similares, apresentam-se díspares não apenas pelo tempo que os separa, não apenas pela ótica que os distingui, mas principalmente pela vocação de cada um. O primeiro se pretendia revolucionário, guardadas certas proporções com a acepção do termo. O segundo é apenas um exercício complementar.

É notável e impossível de desprezar o que foi o primeiro filme em sua gênese inaugural: a subida ao morro, a ida à favela de uma classe média-alta intelectualizada na busca por um Brasil verdade, ou ao menos mais real; a mostração da vida e do verdadeiro “real”, tão à margem da imagem que se via no cinema e na TV de então.

O ineditismo da intenção já valeria um estudo, mas há ainda o resultado dela. Um filme que tentava, dentro dos princípios cinemanovistas que já brotavam em alguns filmes daquele ano, expor um Brasil verdade sem abrir mão da ficcionalização dessa verdade enquanto narrativa. O que se viu foi um filme histórico na sua estética e na sua temática. Um flerte com o revolucionário, uma intenção clara de mudar a realidade através do cinema, através da imagem: fazendo dela um espelho.

O singular dessa tentativa de quebra de um paradigma está na problematização que sua gênese trazia em si mesma. Esta problematização estava no fato de que o que se viu na tela foi a visão da elite de dentro do morro – e nisso entra toda bagagem cultural de preconceitos arraigados por séculos de patriarcalismo colonial. Estavam dentro, mas viviam fora. E isso fazia toda diferença.

E faz mais diferença ainda o “agora por nos mesmos” do título do novo filme. Recado claro de que a perspectiva agora se pretende muito mais autêntica e intrínseca. E sendo o projeto desse novo filme todo orientado por um dos diretores do primeiro filme, Cacá Diegues, fica também a impressão de sutil auto-crítica em relação ao original, uma forma de reconhecer as limitações do projeto passado.

E toda essa carga historiográfica não poderia passar em branco no esforço dos novos e iniciantes realizadores, como na expectativa de uma parte do público atenta a esses detalhes.

Mas não creio que o desapontamento que me causou o resultado final do “agora por nós mesmos” seja culpa dessa grande expectativa. Pois a comparação, ainda que natural, não cabe como modelo, não tem base que a sustente, dadas as já citadas diferenças de tempo, espaço e realidade. Seja em termos de cinema, seja em termos de agravamento da problemática social.


Agora por Nós Mesmos

5 x Favela – Agora por Nós Mesmos peca em seus episódios pela superficialidade e pelo amistoso. Para um filme que carrega a carga de seu antecessor enquanto proposta inovadora, sua construção se mostra tacanha e convencional. Em alguns momentos chega até a ensaiar uma abordagem intensa, mas retrocede no meio do caminho e fica por isso mesmo.

De caráter episódico, como no antecessor, cinco histórias, escritas e dirigidas por diferentes núcleos de oficinas realizadas em comunidades carentes, embora com a colaboração de todos pelo projeto maior, se revezam na tela. Com a orientação e suporte de Cacá Diegues, cada um teve a liberdade de fazer seu próprio filme, de contar a história que queria. À disposição desses grupos estava um aparato profissional e técnico de ponta. Como o próprio Diegues disse em uma entrevista, o objetivo era que esses grupos de jovens cineastas pudessem dispor dos mesmos recursos que os diretores profissionais.

No primeiro episódio (Fonte de Renda) há um promissor conflito de princípios. Um jovem da comunidade passa na faculdade de direito e a alegria para quem vem de família tão pobre é imensa. Mas, com o decorrer do tempo as dificuldades vão se mostrando das mais mesquinhas e coisas como não ter o dinheiro para a condução até a faculdade minam o entusiasmo de qualquer um. A saída surge de um desvio motivado pelo desespero e falta de opções, quando ele passa a fornecer droga para um amigo da faculdade. De caráter reto e princípios rígidos, forjados por uma educação humilde e honesta, seu desvio se torna o prenúncio da tragédia que inevitavelmente se avizinha. Contudo, o desfecho se perde numa simplificação de superação que esvazia o conflito e não o explora em seu potencial.

O segundo segmento (Arroz e Feijão) retrata um garoto que quer dar de presente ao pai aniversariante um frango no jantar, cansados que estão de comer apenas arroz com feijão. As peripécias dele e seu amigo para conseguirem 5 reais para comprar um frango representam o esforço da superação da pobreza, as dificuldades e barreiras que a sociedade impõe aos mazelados. Nessa catarse de obstáculos sucessivos resta o último recurso, quando as tentativas retas de princípio e caráter se mostram frustrantes. Este é o episódio mais engraçado e por isso, por trazer embutido no humor uma dura realidade de fome, consegue ser um dos melhores. A solução do nó a ser desatado no final do episódio é não apenas original, como engraçadíssima.

O terceiro episódio (Concerto para Violino) é o mais violento de todos. Na verdade é o único onde a violência explícita tem espaço. Serve como contraponto dos demais episódios e não por acaso fica no meio do filme. O episódio busca estabelecer uma relação de amizade entre três jovens que passaram a infância juntos e que na vida adulta seguiram rumos distintos. Entre o policial disposto a tudo para cumprir sua missão e o bandido que se vê acuado, fica o terceiro elemento de um triângulo de amizade e amor.

Como construção de um relacionamento perdido entre os três personagens Concerto para Violino funciona mal. As cenas da infância são contaminadas por um artificialismo difícil de engolir. No plano do tempo real, falta a mesma liga entre os personagens, justamente por não se ter construído uma empatia crível de suas vidas em comum dispersada pelo tempo. É um final pessimista, com um gesto de piedade, mas sem arrependimento. Funciona como disparo seco que fecha a ilustração de como a vida pode nos levar a lados opostos e ambos estarem errados. Perde pela construção precária das relações entre os personagens.

O quarto episódio (Deixa Voar) é o mais fraco de todos. Um córrego separa duas comunidades aparentemente rivais e a ponte que o atravessa é a fronteira proibida. Uma pipa vai parar do outro lado e o responsável pela perda é obrigado a transpor o córrego para recuperá-la. Uma aventura cujo perigo iminente, criado pela expectativa e pelo receio, parece imenso. O problema desse episódio está no aparente perigo versus a banalidade da motivação em arriscar-se. Uma pipa é muito pouco. Mesmo assim, diante da pressão, o garoto vai. E ao chegar ao outro lado uma surpresa. Mas não tão grande a ponto de salvar o episódio de uma certa banalidade. Serve, no entanto, como mostra de que mesmo comunidades com iguais condições precárias se rivalizam belicamente.

O filme só vem a funcionar plenamente no último episódio (Acende a Luz) e justamente num tipo de abordagem dificílima de ser construída. Neste episódio não há terror, não há violência, nem tampouco sofrimento. Falta luz na comunidade na véspera de natal. Um funcionário da companhia de energia tenta resolver o problema antes que a noite caia. Sente-se ameaçado, pois não é da comunidade.

Aqui temos uma bela construção do sentido de comunidade. Essa construção competente se dá pelo andamento da narrativa, pelos personagens que transitam na história, pelos diálogos, pelo sentido de vizinho, exaltado por uma camaradagem alegre, que encara as dificuldades com humor e simpatia. É neste episódio que se dá um tom de confraternização, não apenas pelo natal, mas pela comunidade em si. É a irmanação pelos problemas comuns, a ajuda mútua, a divisão do pão num amplo aspecto de fraternidade. Se o termo “comunidade” perdeu seu sentido intrínseco para se tornar apenas um eufemismo de favela amparado na praga cínica do politicamente correto, aqui ele se restitui de sua real significação.

Neste epílogo de um quase final feliz, o mérito de um efeito tão bem construído está no ritmo, no timing correto da montagem e no “conflito amistoso”, por assim dizer, entre a comunidade e o funcionário da companhia elétrica. Se num primeiro momento ele é hostilizado como representante de um poder público que pouca importância dá à qualidade do serviço prestado a uma comunidade carente, logo se humaniza na figura de um igual entre eles. É essa humanização e empatia comum que ressalta um espírito perdido no imaginário e na acepção correta do termo comunidade.

Se na sua construção e desfecho o episódio está mais no plano do ideal e da utopia humana do que da realidade, por outro lado não deixa de ser um fiel representante de um verdadeiro espírito que existe nas vizinhanças e na vida cotidiana de bairros de periferia.

Por fim, 5 x Favela – Agora por Nós Mesmos, na soma de seus episódios, assume um tom decididamente brando, com um final, também não por acaso, ameno. Se por um lado não explora a violência e a miséria na chave de um denuncismo pueril, sem nuances e muitas vezes estéril, tampouco consegue dar profundidade e dimensão aos personagens. O olhar de dentro do “agora por nós mesmos” não chega a se mostrar revelador de uma visão particular, ainda que tenha alguns momentos muito felizes, como na construção do último episódio. Como cinema não ousa, mas consegue ser correto e digno em toda sua extensão, mérito de empenho dos realizadores não-profissionais e, certamente, da mais que credenciada assessoria que receberam de Diegues.

Vale, enfim, como iniciativa de um projeto salutar, de boa intenção, que trabalha na formação de uma nova geração de cinema. E por isso só já é uma grande razão para existir. Se dentro de uma análise fílmica deixa a desejar, com e sem a carga historiográfica que carrega por natureza, não é de se desprezar a correção técnica com que foi realizado. No fim das contas, entre soma e descontos, o saldo até que é bem positivo.
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domingo, novembro 28, 2010

Negação


Não sou cinéfilo. Gosto de filmes e só. Escrevo sobre eles, ocasionalmente. Não sou crítico de cinema. Nego este rótulo com o desprezo pelo rótulo que existe apenas para ser rótulo. Na mesma medida admiro, respeito e reverencio a crítica de cinema. Só não a quero como um rótulo simplificador, reducionista e impregnado de um sentido equivocado de má compreensão de seu exercício.

Escrevo sobre cinema, amo Fellini e Aurora, de Murnau. Essa definição basta para definir com precisão e alcance o que um rótulo não poderia.

Mas inquiro-me sobre isso. Por que escrevo?

Escrevo para além do cinema. Escrevo, antes, porque na escrita guardo minha existência, que por si só já seria pueril. Com a adição da escrita como preservação, tradução, manipulação, dissimulação e banalidade, esta existência ganha não mais que uma pecha de peuril-literária. Não é nada para o mundo, mas é tudo para mim.

Escrever sou eu. Escrever sou. Escrevo.

Há mais, é claro. Sempre há mais, muito mais.  Por hora, no entanto, é o que interessa. Ou nem isso.

Mas cinema? Escrever sobre cinema. Por que?

Sem rodeios, por ordem crescente:

1.       Vaidade;
2.       Exibicionismo;
3.       Exercício;
4.       Introspecção;
5.       Prazer;
6.       Compartilhamento.

São essas minhas motivações para escrever sobre cinema. E o que escrevo não tem qualquer utilidade para o mundo, nem para o cinema, nem para a crítica. É inútil. Nesta constatação sem soberba não há desistência, rendição, desolação ou tristeza. É algo simples, que se descobre cedo ou tarde, quase sempre por uma epifania ou duas; como as três que tive hoje: uma declaração de João Moreira Salles que li logo de manhã, uma breve discussão na aula de história do cinema à tarde e algumas declarações de José Saramago no filme José e Pilar que vi à noite.

Percebi o inútil de tudo sem drama, sem vaidade, sem dor e sem tolices existencialistas. O que é apenas é. Inútil, note-se bem, mas não irrelevante.

Nada é irrelevante e tudo é irrelevante. Óbvio, percebo. Mas não óbvio o suficiente, nem óbvio o tempo todo.

Escrevo pela possibilidade de na escrita encontrar outro eu e no filme outro filme. Dessa possibilidade filosófica, metafísica, subjetiva e falsamente pomposa advém a relevância de tudo que se escreve, e inerente á isso sua inutilidade indissolúvel.

Uma hora de trabalho de um motorista de ônibus é mais importante que toda literatura do mundo.

Não há muito mais o que dizer. Tudo que vier depois será tergiversação. Exceto acrescentar que numa concepção em que nada do que já foi escrito importa de fato ao mundo, cada desimportância escrita um dia e vivente na sua mais profunda insignificância universal se torna por conseqüência a realização do todo, guardando e preservando para si uma importância tão universal quanto sua inutilidade. Perene, única, indestrutível.

Escrevo sobre cinema porque isso não importa. E por isso é importante.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Bastardos Inglórios

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Inglorious Bastards
Quentin Tarantino
EUA, 2009
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Nenhum outro diretor em atividade consegue resgatar um gênero, ou subgênero, dito menor e transformá-lo em algo de elevada qualidade como Quentin Tarantino. Com uma formação cinefílica eclética, seu gênio inquieto e uma mão incrível para a construção de diálogos memoráveis, Tarantino é mestre na utilização de uma coisa chamada referência, que em seus filmes ganha um contorno e um amálgama que resultam sempre em uma experiência única, repleta de tempos e entretempos e sensações sobrepostas. Tudo na medida certa.

Em Bastardos Inglórios o diretor resgata e embaralha dois gêneros improváveis: filme de guerra e western spaghetti. Filmes de guerra todos sabem o que é. Porém, os mais jovens talvez não se lembrem do que aqui no Brasil ficou conhecido como “Bang Bang à Italiana”. Era como se chamava de uma sessão de filmes exibidos semanalmente pela TV Record, composta quase que exclusivamente de westerns spaghetti. Eram os tradicionais filmes de velho oeste, mas realizados por diretores italianos e filmados invariavelmente na Espanha, como se fosse no oeste americano. Isso ocorria por ser mais barato, pois eram filmes de orçamento restrito que tentavam nos anos 60/70 obter algum sucesso na esteira do gênero americano que já entrava em declínio.

Muitos desses filmes se tornaram clássicos para toda uma geração, graças a produções marcantes como Django, Por um Punhado de Dólares, Era Uma Vez no Oeste. É dessa geração de filmes que Tarantino extrai o supra-sumo de sua nova produção e mistura com o gênero de filmes sobre a Segunda Guerra.

Com essa improvável receita, Bastardos Inglórios se constrói repleto de referências, que vão desde a trilha sonora até enquadramentos específicos. Na trilha sonora estão várias composições de Enio Morricone, talvez o maior compositor de trilhas para westerns spaghetti, sendo o responsável pela trilha do grande clássico desse gênero: Era Uma Vez no Oeste (C'era una volta il West), de Sergio Leone (1968), que em inglês ficou “Once Upon a Time in the West”. Não à toa Bastardos inicia-se com a frase Once Upon a Time In Nazi-Ocuppied France.

As referências não param e vão temperando o filme com homenagens que fazem a alegria de todo cinéfilo. Como a repetição do famoso enquadramento final de Rastros de Ódio (The Searchers), de John Ford (1956), passando por uma cena de tensão baseada no clássico ensinamento de Hitchcock para a construção do suspense, na famosa entrevista ao crítico e cineasta François Truffaut; isso sem deixar de citar o próprio Truffaut e o cinema da Nouvelle Vague. 

Bastardos Inglórios é antes de tudo uma ode ao cinema. E faz isso sem ser pedante ou restrito aos “iniciados”.

Mas o que poderia se tornar apenas um amontoado de citações e referências – e provavelmente o seria nas mãos de qualquer outro diretor – acaba por transformar toda essa devoção ao cinema em uma trama emocionante, com diálogos repletos de malícia, com atuações memoráveis e a apresentação de tipos que só o cinema de Tarantino pode proporcionar.

O filme conta a história de um esquadrão conhecido como “Os Bastardos”. São soldados americanos judeus infiltrados na França ocupada e cujo único objetivo é matar o maior número de nazistas que conseguirem. Eles são liderados pelo tenente Aldo Raine, um sulista cujo sotaque, na interpretação preciosa de Brad Pitt, é algo impagável. Paralelo a isso há a história de Shoshana, uma jovem que sobrevive ao massacre de sua família e tem, anos depois, a chance de obter sua vingança.

O próprio tema da vingança, alicerce de Bastardos Inglórios, é também comum aos velhos filmes sobre o Velho Oeste. Neles, os personagens buscam essa vingança acima de tudo e para isso não medem esforços, nem crueldade. É o que Tarantino nos apresenta em cenas de violência intensa, com requintes de frieza e sadismo.

Tarantino é único. Consegue unir fórmulas tão díspares e lhes dar unidade e personalidade, elevando ao nível de qualidade do bom cinema o que em outros filmes e diretores é apenas pastiche, clichê e muleta. Com Bastardos Inglórios se afirma como gênio, como grande diretor, capaz de reescrever o cinema não como uma nostalgia barata, mas como uma arte que se reinventa e se renova nas mãos desse artista de visões e talentos tão múltiplos quanto as referências que permeiam sua obra. Bastardos Inglórios é cinema, de uma forma que só Tarantino é capaz de criar.
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quarta-feira, novembro 24, 2010

Um Homem Bom

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Good
Vicente Amorin
Alemanha/Inglaterra, 2008
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Depois da trilogia O Senhor do Anéis, filme que tornou o ator Viggo Mortensen conhecido para o grande público, só o reencontrei em Senhores do Crime, seu penúltimo filme, onde interpreta um segurança de um mafioso russo.

Ambos são papéis de homem durão, líder nato ou quebra-caras. Há inclusive uma seqüência em Senhores do Crime em que ele se entrega a uma visceral luta corpo a corpo num banho turco.

Por isso, não foi sem surpresa que em Um Homem Bom assisti à sua interpretação de um homem tímido, retraído e cordato, que nos anos 30 e 40 vai se deixando envolver pelo partido nazista na Alemanha de Hitler.

Um Homem Bom é o primeiro filme em inglês dirigido pelo brasileiro Vicente Amorim. Uma produção entre Inglaterra e Alemanha que conta a transformação de um homem dentro do mecanismo nazista.

Viggo interpreta John Halder, um professor universitário dedicado aos livros e à família. Halder é um homem gentil, que de tão educado chega a ser submisso. Vive com a esposa e os filhos e se dedica inteiramente ao lar e à vida acadêmica. Seu melhor amigo é um psicanalista judeu, Maurice (Jason Isaacs), para quem costuma revelar suas mais íntimas preocupações. São amigos de serviço militar e lutaram juntos pela Alemanha na Primeira Guerra.

Halder tem em Maurice mais que um amigo, mas um confidente. Isso se torna claro quando uma aluna de Halder passa a cortejá-lo e ele se vê tentado a ter uma aventura extra-conjugal incentivada por seu amigo.

As coisas começam e se complicar quando Halder é intimado a comparecer a um órgão do governo nazista para dar explicações sobre um livro seu, publicado anos atrás. O que parecia ser uma ameaça se torna, contudo, uma estranha proposta, que Halder, mais por medo que por afinidade, aceita. É a partir daí que ele se vê cada vez mais embaraçado nas tramas do partido nazista. Quanto mais o tempo avança, e a guerra se avizinha, mais “O Professor”, como é ser chamado dentro da SS, vai galgando, quase sempre de forma involuntária, degraus dentro da estrutura do poder nazista.


Naturalmente nada disso passa ao largo de sua amizade com um judeu. O gradativo cerceamento dos direitos dos judeus vai corroer, de forma sinuosa, a amizade entre Halder e Maurice. O que antes, para um humanista como Halder, parecia inaceitável, aos poucos se torna, através de sua passividade, justificável; o que parecia ser uma distante ameaça, torna-se aos pouco uma realidade concreta.

Claro que Halder vivencia a clássica tragédia do homem seduzido; seduzido pelo poder, seduzido pela mulher mais jovem e bonita e esquecido de seus princípios humanistas. Mas o protagonista de Um Homem Bom é muito mais uma vítima de si mesmo do que simplesmente um homem corrompido. E é esse detalhe que o torna tão interessante como personagem e como catarse de um tempo. Pois sendo vítima de si mesmo não se pode eximi-lo de qualquer culpa. Culpa esta agravada pelo seu próprio histórico.

Sua passividade diante dos fatos e sua personalidade fraca poderiam ser atenuantes (frágeis) para sua inércia, mas um olhar mais atento verá nuances sutis em seu comportamento, revelando o quanto ele de fato mudou. Não tanto por aceitar a ideologia nazista, mas por não renegá-la mais em certo momento. É sua passividade sua maior culpa, mas até nisso pode-se ver o peso de sua ingenuidade. E é por essa ingenuidade que ele demora em ver o quanto Maurice tem razão e o quanto sua relutância em ajudá-lo a fugir será seu maior pecado.

Viggo Mortensen se mostra um ator capaz, que imprime a seu personagem uma fragilidade que nunca o abandona, mesmo quando o poder se torna sua sedição particular. É essa fragilidade que dá ao personagem uma humanidade forte, que o coloca dentro da realidade da fraqueza e do embaraço que o poder e a ideologia podem fazer a um homem bom. Uma bondade que nunca o abandona, mas que também o impede de ver o mal dentro de um sistema que o absorve involuntariamente. O que Viggo consegue emprestar a seu personagem é o quanto involuntariamente, ou nem tanto, a sedução ocorre. Uma dúvida que permeia a corrupção de seus princípios, que ele, ingenuamente, não vê de imediato o quanto estão sendo esfarelados.

A direção de Amorim é competente. Lançando mão de flashbacks consegue mostrar como a estrutura do poder vai envolvendo um pacato professor dentro de uma estrutura tentacular ameaçadora. Toda a produção foi filmada em Busdapeste, numa impecável reconstituição de época. E Budapeste se torna uma convincente Berlim, pois segundo o diretor Vicente Amorim “Budapeste se parece mais com Berlim do que Berlim se parece consigo mesma”.


Um Homem Bom é um filme que revela a fragilidade das convicções humanas e a cegueira que ideologias podem causar. É um excelente trabalho de Amorim em sua estréia internacional e uma mostra da competência de Mortensen como ator.

É também uma bela peça sobre a condição humana dentro de mecanismos atrozes e inescapáveis, pondo em xeque até que ponto se pode resistir à deturpação de princípios e à cegueira do óbvio quando se está absorvido pela monstruosidade. Não se presta à qualquer isenção de culpa ou atenuação de responsabilidade, mas retira o maniqueísmo simplista de questões como o bem e o mal, tornando-as humanas como são humanas todas as coisas dos homens.

E seu desfecho não poderia ser mais contundente e poético, quando se dá a completa perda da ilusão e da inocência, quando se vislumbra o horror definitivo a que uma ideologia torpe e sua aceitação irrestrita podem levar.
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domingo, novembro 21, 2010

O Lutador

The Wrestler
Darren Aronofsky
EUA, 2008

Em certos filmes é preciso buscar a chave: aquele momento do filme em que se dará ao expectador o elemento para entendê-lo em sua dimensão maior. Em O Lutador, ela só chega perto do fim, quando Randy “Carneiro” Robson diz, apontando para o ringue: aquele é o único lugar onde não me machucam.

Contar a história de O Lutador é contar a história do ator que o protagoniza. Pois, como disse a revista Newsweek, nunca houve uma convergência tão grande entre ator e personagem.

Na vida real, o ator Mickey Rourke despontou no anos 80 como uma das maiores promessas do cinema. Foi comparado a James Dean e Marlon Brando. Mas ficou na promessa. Realizou ótimos filmes, mas à partir de 91/2 Semanas de Amor passou a escolher cada vez piores papeis. Entrou em descenso e jamais se recuperou. 

Os papeis que interpretou nos anos 90 foram dados muito mais pela amizade do que por seu talento. Desistiu do cinema, entrou para o mundo do boxe e chegou aos dias de hoje velho, com o rosto deformado por uma mistura de socos da vida, socos dos ringues e aplicações de botox. 

Em Sin City, de Robert Rodrigues e Frank Miller voltou às telas e mostrou que talvez poderia se reerguer. Agora em O Lutador, se tornou “o” assunto e já arrebatou dezenas de prêmios de melhor ator, incluindo o Globo de Ouro, e entra como favorito ao Oscar no próximo domingo.

No filme, Rourke interpreta Randy “Carneiro” Robinson, um lutador de luta livre (aquelas lutas encenadas que levam a platéia ao delírio) que foi um fenômeno de sucesso nos anos 80 e que hoje, aos 50 anos, vive a decadência de se apresentar em acanhados ginásios de cidades pequenas, com cachês mínimos. É admirado pelos colegas de ringue e pelos mais velhos, que cresceram com pôsteres dele no quarto.

Randy não tem esposa ou namorada, apenas uma filha que não vê faz anos e que o odeia. É apaixonado por uma stripper, (vivida por Maraisa Tomei em forma invejável).

A vida de Randy é, portanto, a própria decadência. Tem dificuldades em pagar o aluguel da espelunca onde mora, precisa fazer bicos fora das lutas para garantir o sustento, passa por humilhações diversas. Mas as coisas se tornam realmente graves quando depois de sofrer uma parada cardíaca ele se vê obrigado a parar de lutar.

Desorientado ele tenta se reconciliar com a filha e se envolver com a stripper. Mas sente que só dentro dos ringues a vida lhe poupa das pancadas e da dor. Esta talvez seja a constatação mais dura do filme, pois apesar de ensaiadas, as lutas machucam de verdade. 

Ao afirmar que somente no ringue não se sente machucado, Randy demonstra toda sua solidão, sua tristeza e decepção com a vida. Ele reconhece seus erros, sabe que os cometeu em quantidades quase irreparáveis (contra si mesmo e contra os outros), mas sabe também que sua natureza é uma só e que o único lugar onde se sente vivo é também o lugar que mais rapidamente pode matá-lo.

A interpretação de Rourke é mesmo incrível e de fato o ajuste da história do personagem com sua própria história geram uma simbiose que salta aos olhos. A direção de Darren Aronofsky é enxuta, cria um filme seco, onde a vida raramente é generosa ou cordial.

O Lutador é um filme comovente e duro. Um filme que mostra o quanto a vida pode ser um poço profundo e o quanto o que somos pode ser, mesmo como último recurso ou mesmo como risco de morte, nossa única opção. O resto é um passado sem retorno, onde os erros cometidos não têm mais conserto, onde nada mais tem volta e tudo que resta é lutar.
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Cinema e Direitos Humanos

Em São Paulo vai de 19 a 25 de novembro. Em mais 19 capitais brasileiras (consulte programação) as datas variam, mas chagam até 19 de dezembro. Trata-se da 5ª edição da Mostra Cinema Direitos Humanos na América do Sul. A entrada é franca e as salas são duas: Cinesesc e Cinemateca Brasileira.

A programação desse ano trás 41 filmes e está muito melhor que de outros anos. Além de inéditos, trás bons filmes em retrospectiva. O homenageado desse ano é Ricardo Darín, talvez o mais importante ator argentino da atualidade.

É sempre bom que mais uma mostra de cinema chegue ao 5º ano de vida, mostrando crescimento e seletividade apurada. Desde já insere-se na maratona de mostras e festivais de cinema que inundam o segundo semestre cultural na capital paulista.

Dentre os filmes exibidos indico:

Avós, de Michael Wahrmann
Neite e Ferro, de Claudia Priscilla
Mundo Alas, de León Gieco, Fernando Molnar, Sebastián Schindel (Argentina)
Groelândia, de Rafael Figueiredo
Cinema de Guerrilha, de Evaldo Mocarzel 
O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburguer
Abutres, de Pablo Trapero
O Filho da Noiva, de Juan José Campanella 
XXY, de Lúcia Puenzo 

Programação completa, clique aqui.
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sábado, novembro 20, 2010

As Férias do Sr. Hulot

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Les Vacances de M. Hulot
Jacques Tati
França, 1953
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Diante de filmes que são verdadeiras avalanches de cor, movimento, pirotecnia, cortes rápidos, sequências de ação vertiginosas e quase sempre nenhuma história interessante, sempre me pergunto: 'E onde está o cinema?'. Daquilo que entendo por cinema muito pouco vejo nos grandes blockbusters dos últimos tempos. Simplesmente não encontro neles o cinema que preciso.

Talvez por isso eu tenha ido buscar refúgio, dia desses, na obra de um diretor muito pouco conhecido, mas cuja obra deveria ser sempre revisitada. Refiro-me a Jacques Tati e o filme que vi foi uma de suas obras-primas: As Férias do Sr. Hulot, de 1953.

Jacques Tati foi um grande comediante do cinema, mas com uma obra que conta com apenas seis longas-metragens e dois curtas. Em seus filmes, Tati explora o humor físico, a gag pura, realizada na graça arquitetada de seu jogo de cena, no mímico e no mimético dos gestos. Um humor amparado e sustentado pela imagem antes de qualquer coisa, no qual a palavra em nada se aplica. Quase não há diálogos em seus filmes, marcados por esse humor poético, quase ingênuo, mas que por trás da aparente ingenuidade esconde uma inteligente crítica de costumes.

Em As Férias do Sr. Hulot o personagem recorrente de Tati vai passar a alta temporada na praia. Não há um roteiro, apenas esquetes e situações através das quais Tati desenvolve sua comicidade com a figura estabanada e solitária de seu personagem. Um personagem que antecipa a era dos gadgets que vivemos hoje, uma vez que é o excesso de bugigangas (chapéu, cachinbo, guarda-chuva, tralhas em geral) uma de suas escadas para a gag. É o olhar crítico para a modernidade, a pergunta subentendida que diz: “pra quê tudo isso?” E isso já nos anos 50.

Tati faz também de seu filme um retorno ao cinema original, o verdadeiro cinema, que não é feito de palavras, mas de imagens. Para muitos, nos anos 30, a sonorização do cinema representou a morte de sua essência. O próprio gênio inconteste Charles Chapplin era um dos que assim pensavam.

Jacques Tati redescobre e reinventa essa essência do cinema, mas o atualiza com a sonorização. Seus filmes não são mudos e até há diálogos neles, que não são explicativos e compõem apenas um elemento sonoro, junto com os demais ruídos do filme: o motor de um carro velho, o som da turba rumo à praia, a porta vai-e-vem que pontua entradas e saídas de cena. Ele se utiliza do som não como elemento narrativo ou explicativo, mas como uma moldura para o que realmente importa, a imagem. É através dela que deve viver o cinema e é dela que Tati extrai seu humor, composto por situações, gestos e desencontros.

Claro que há no personagem do Sr. Hulot e na obra de Jacques Tati uma herança clara de Chapplin e Keaton, mas não de forma ostensiva ou repetitiva. Tati inventa seu próprio cinema, seu próprio ritmo e seu próprio jogo de cena. É original, autêntico e engraçado.

As Férias do Sr. Hulot é uma comédia que faz rir. Algo que se torna raro em nosso tempo de magra criatividade no humor, cujas comédias são quase sempre opacas, monótonas ou irritantemente repetitivas.

A obra de Jacques Tati merece cada retrospecto e merece ser conhecida. Revela uma verdadeira vontade e paixão pelo humor e pelo cinema original, no qual a imagem prevalece sobre qualquer palavra. Mais que uma obra, é um tributo às raízes de uma arte que atravessa o tempo e sobrevive em alto patamar. Graças aos que a reinventam e renovam a cada geração. Tati sem dúvida está entre eles. E é em Tati, e em tantos outros tão pouco conhecidos, que se encontra - e se preserva - o cinema de verdade. Aquele que procuro e preciso.
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quarta-feira, novembro 17, 2010

Brincando (e criticando) Merten

De vez em quando gosto de atazanar o Merten, do Estadão. Admiro-o demais como crítico e compêndio vernacular de cinema. Mas às vezes, na minha modesta opinião, ele escorrega por conta de birras. Foi o caso de A Ilha do Medo, de Scorsese. Está sendo o caso de A Suprema Felicidade, do Jabor. Na onda de irritá-lo, usei até uma investigação dos limites entre ficção e realidade, tão em voga no cinema nacional, para me pintar de acadêmico (nada mais distante de mim que a academia). Ele respondeu, com a ironia e o respeito de sempre pelos seus leitores. A cena que resultou disso foi, para mim, epifânica. Eu, diante do quadro negro, explicando para ele alguns princípios básicos de cinema, depois de reprovar sua redação a respeito da contracrítica. Nem a dupla Dalí e Buñel comporiam quadro mais surreal. O que fica mesmo para mim é o orgulho de ter sido notado - outra epifania - por alguém tão no olimpo de aqui desse meu mundinho de blog anônimo. Abraços ao Merten. Clique aqui.
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terça-feira, novembro 16, 2010

Ondulações

34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
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Curling
Denis Côté
Canadá, 2010
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O gostar ou não de um filme muitas vezes passa por uma subjetividade que nos escapa a compreensão. Descobre-se nessas ocasiões que são as pequenas coisas – e em certos momentos as pequenas coisas estranhas – que guardam os mistérios de muitos sentidos.

No inóspito inverno do Quebec conhecemos Jean-François, pai da jovem Julyvonne de 13 anos. Ele ganha a vida com pequenos serviços de limpeza e manutenção em um hotel local e no boliche do lugarejo. Tem um zelo exagerado com a filha, a quem não permite que frequente a escola, nem conviva com ninguém quando ele não está por perto. A mãe de Julyvonne cumpre pena na penitenciária, mas não se sabe qual crime cometeu.

Jean-François acredita poder educar a filha sozinho. Educá-la e instruí-la. É um homem solitário que parece ter um medo patológico das relações e mantém sua filha num isolamento cerceador.

Julyvonne, por sua vez, vivencia a solidão imposta por seu pai sem grande rebeldia. Tem seu jeito de lidar com ela, a solidão, manifesto por comportamento estranho. Ela passa o dia sozinha, em casa, enquanto o pai trabalha. Mas não fica trancada. Sai frequentemente sob densa neve e intenso vento para fazer passeios por um bosque próximo. Um dia, encontra cadáveres na neve.

Á partir daí seu cotidiano passa a flertar com uma morbidez que abriga também uma certa inocência e é o claro reflexo de seu isolamento. Alivia sua solidão no silêncio do bosque, no silêncio da neve, no silêncio da morte. Deitada sobre a neve, ao lado dos mortos.

Ondulações não é um filme simples. Possui uma dinâmica quieta, preenchida por mistérios que nunca serão revelados, e trás uma inquietude que nos absorve sorrateiramente.

Fala de medo, de solidão, de estranhamento. Fala de um tipo de afastamento do mundo para uma melhor proximidade com o íntimo. A relação entre Julyvonne e seu pai não é conturbada, embora se mostre algumas vezes atritada. Preserva nos gestos carinho gélido e sincero, oculto no silêncio e em momentos de liberdade vigiada.

Jean-François, por sua vez, diante da insistência dos que os cercam - e até ensaiam uma amizade com ele -, se questiona sobre sua postura, sobre o que é melhor para a filha. Representa o pai que na insegurança e desejo do melhor para um filho, não percebe que extrapola os limites da proteção.

Em Ondulações é difícil entender essa relação de afeto entre os personagens, suas motivações para comportamentos tão estranhos. Mas mesmo toda essa estranheza, que parece afastar, trás também uma afetuosidade e uma aproximação rara entre pai e filha. Um sentimento que se expressa muitas vezes por uma estranha limitação da liberdade de ambos.

Toda essa afetuosidade anacrônica se faz presente através da solidão e de um medo indefinido e profundo. Seu andamento é compassado e cruza no meio do caminho com a morbidez e com o desespero. Mas no final o que fica é uma enternecida promessa de mudança. Através de um sorriso, de uma esperança e de um pouco mais de liberdade para ambos.
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segunda-feira, novembro 15, 2010

Senna


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Senna
Asif Kapadia
Inglaterra, 2010
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Quando lidamos com homens que se tornaram ídolos, que alcançaram um patamar que ultrapassa os limites dos mortais, sempre vai existir o polêmico, o duvidoso, o incerto. São esses elementos que tornam as pessoas – sejam ídolos ou não – interessantes. É o multifacetado de cada um que torna cada pessoa única, independente em sua grandeza. Por isso, qualquer biografia séria tem a obrigação de buscar isso, a múltipla e complexa pessoa que há em cada um de nós.

No documentário Senna, lançado esta semana nos cinemas, o diretor inglês Asif Kapadia opta por uma estrutura simples, direta e convencional. Ao retratar a carreira do piloto, desde sua primeira temporada até o acidente fatal em 1994, o faz com uma rara superficialidade, de forma que mesmo a trágica morte e a perda que ela significou não cause grande comoção na tela.

E melhor que não comova mesmo, pois dentre as muitas possibilidades de abordagem da vida desse mito do automobilismo uma das mais desprezíveis seria através do apelo fácil à comoção que sua morte causou.

O problema maior do filme está em sua perspectiva simplista e unidimensional de um personagem que era tudo, menos prosaico como personalidade. Da forma como está, o filme não acrescenta nada à biografia do piloto, como também não proporciona um mínimo de experiência emocional durante sua exibição.

Ayrton Senna da Silva foi mais que um piloto extraordinário, realizador de grandes feitos até hoje insuperáveis - e não falo aqui de números e estatísticas. Foi uma personalidade que afetou o meio em todos os lugares por onde passou. Foi, como na letra de Caetano Veloso sobre Alexandre, o Grande, magnânimo e cruel. Sua condição de ídolo, ampliada pelo efeito midiático pronto a exaltá-lo sem confrontação, muitas vezes ocultou sua personalidade difícil, ultracompetitiva e, em alguns momentos, até desleal.

Nada disso seria capaz de diminuir sua importância, seu talento, sua genialidade. Mas parece que a morte santifica e por conta da tragédia de que foi vítima é como se quisessem apagar o homem e lembrar só do mito.

Assim, o filme de Asif Kapadia  incorre em superficialidades que acabam até por diminuir o tamanho do documentado, comprometendo a compreensão de sua verdadeira grandeza para o esporte.

O filme passa por sua carreira de forma panorâmica e superficial, não mostrando sequer grandes confrontos em corridas, ultrapassagens históricas e momentos que seriam indispensáveis para a construção e dimensionamento do verdadeiro tamanho de Ayrton. Além disso, trata o personagem como alguém unidimensional, não lhe dá profundidade. Abstém-se de escrutinar por trás da máscara de bom-mocismo, de exemplo para uma nação, e revelar não um vilão, mas um homem, passível de destemperos, equívocos e fragilidades humanas.

A única perspectiva que o filme ressalta de forma até exagerada - e consequentemente distorcida - é a inimizade com o arquirrival Alain Prost. Sob a ótica do filme, Prost, associado a forças do mal geridas por Jean-Marie Balestre, então presidente da FIA (Federação Internacional de Automobilismo), é o grande vilão da história; o piloto de talento inferior que tenta “sabotar” e desestabilizar Senna. É uma forma não apenas limitada, mas, pior, maniqueísta de contar a história. Até porque Senna tinha ainda outro inimigo: ele mesmo e seu temperamento difícil.

Ao pautar todo o filme por uma rivalidade que de fato existiu, mas que representou apenas parte de um todo muito maior; ao dar ao personagem de Senna uma unidimensionalidade limitadora e apequenada quando comparada com a verdadeira importância de suas conquistas e de suas batalhas, dentro e fora da pista, o filme de Asif Kapadia resulta numa experiência empobrecedora e tacanha.

Já li críticas que dizem que é um filme para fãs. Discordo. Não serve aos fãs, pois não o dimensiona como esportista genial, não dá mensuração do caminho duro e das passagens que construíram o mito. Também não contribui como fonte de informação para novas gerações no aprendizado de quem foi e o que representou Ayrton Senna, pois apresenta um material fácil de ser achado e até confrontado nos meios multimídias disponíveis hoje. Não constrói uma narrativa, mas apenas um recorte borrado. Muitos documentários televisivos de 30 minutos já disseram mais sobre Senna do que este filme.

Senna, o filme, termina por servir apenas como um entretenimento superficial. É um filme que poderia ser grande se desse ao personagem uma dimensão real e profunda, mas que por fazer justamente o contrário, torna-se um filme pequeno e sem importância diante do verdadeiro personagem que falha em retratar.
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