terça-feira, novembro 20, 2012

Um Alguém Apaixonado



Dizem por aí que o novo filme do diretor iraniano Abbas Kiarostami não é para público preguiçoso, uma vez que ele abre mão da narrativa, deixando-a por conta e esforço de quem vê. Mas nada impede o público de, por seu lado, afirmar que o preguiçoso na verdade é o diretor, que quer filmar bonito, mas tem preguiça de contar uma história.

Um Alguém Apaixonado se passa no Japão e é falado em japonês. Quem acompanha a trajetória do diretor sabe que, a exemplo de Wood Allen, ele tem realizados filmes “internacionais”, ambientados fora do Irã. O anterior, Cópia Fiel, ambientado na Itália, já denunciava o esforço de Kiarostami em abandonar o narrativo e colocar o público na condição de imaginar o que, de fato, se passa.

Se em Cópia Fiel a atriz francesa Juliette Binoche conduzia um jogo de cena armado sobre artifícios de simulacro e verdade, agora é a retração tímida da atriz japonesa Rin Takanashi que conduz a sutil linha pseudonarrativa. Mas assim como em Cópia Fiel e agora de forma mais clara, é também o artifício da simulação que dá o tom e realiza o drama que se passa na tela.

A verdade é que pouco importa se o público é preguiçoso ou se o diretor foi preguiçoso, pois o que conta é a forma brilhante com que Kiarostami trabalha os elementos que dispõe na tela.

Se não há uma história, se não há um antes ou depois que nos conecte ou que explique os personagens, isso importa menos do que a construção habilidosa de um drama sem a construção de uma narrativa. Está aí o brilho de Um Alguém Apaixonado: não se mover narrativamente e mesmo assim nos fazer entender seus personagens e com eles nos identificamos.

Sem prólogo ou epílogo, somos lavados do meio para um não desfecho. Sabemos que Akiko é uma acompanhante de luxo, que gostaria de encontrar a avó que a espera na estação de trem, mas tem que atender um cliente. O cliente é um professor aposentado que deseja apenas um jantar agradável com alguma companhia. Akiko tem também um namorado ciumento, com tendências impulsivas.

A partir desse jogo de personagens, Kiarostami monta uma pequena comédia de erros que guarda por trás do riso calmo uma sensibilidade e um sentido de solidão. Mas também revela, através do simulacro a que serão forçosamente submetidos, a fragilidade de suas realidades e o desejo de enganar ou de ser enganados. Não por prazer ou maldade, mas para que se “finja” a vida como esta poderia ser se não fosse tão real e triste para cada um deles.

Na construção das situações, os personagens trocam diálogos afinados e o diretor os coloca em um jogo de cena brilhante, em que mesmo dentro de um carro o modo de filmar, a relação de planos, a construção da tensão cênica é possível. A maestria de Kiarostami está nos detalhes, no modo inteligente com que filme e cria uma desconfortável tensão cômica através de pequenos gestos, diálogos e sons.

Desde um micro-ondas apitando intermitente o anúncio do fim de uma operação tão banal como esquentar um copo de leite, até o ruído de um movimentado bar, passando pelo gesto de se prender o cinto de segurança, cada um desses detalhes, como tantos outros, contribui amiúde para um jogo cênico que constrói tensão e estabelece relações e aspectos dos personagens.

O fato de haver ou não história, o fato de o fim ser tão aberto quanto o início importa menos que o modo como o diretor estabelece um sentido para cada personagem. Talvez seja um exibicionismo preguiçoso do diretor mostrar-se tão brilhante em filmar sem nos entregar uma história narrativa. Talvez sejamos nós, o público, os preguiçosos que querem sempre algo mais mastigado e formalmente familiar.

Seja como for, este novo Kiarostami pode ser uma boa oportunidade para se aprender o prazer de sair de uma sessão de cinema com mais dúvidas que certezas. Uma oportunidade pensar antes de simplesmente absorver.
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Like Someone in Love
Abbas Kiarostami
França/Japão, 2012
109 min.

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segunda-feira, novembro 19, 2012

Era Uma Vez Eu, Verônica

Era uma vez ela: Hermila Guedes. Porque se em Era Uma Vez Eu, Verônica, o talento do diretor Marcelo Gomes alcançam uma sensibilidade honesta, isso se deve em grande parte à atuação de Hermila. Ela, Verônica.

Nas primeiras imagens do filme vemos corpos nus envolvendo-se na areia de alguma praia em Recife. Uma alvorada qualquer em que a nudez não é apenas prazer, mas a libertação de algo. Ali, uma felicidade quase infantil comungada entre suspiros e risos e o farfalhar de areia na pele. Adiante, intuiremos que são os recém-formados da faculdade de medicina. São os novos psiquiatras.

Entre eles está Verônica, paciente de si mesma, como tanto anunciará ela para seu confidente gravador. Mora com o pai, mas pouco fala da mãe (morreu? fugiu?). Da relação paternal, vemos um apego enorme, de carinho e afeto. O orgulho do pai pela filha, o orgulho da filha pelo pai. Está ali todo sentimento de Verônica.

Ela inicia sua residência em hospital público depois de passar anos “decorando as mazelas humanas”. Atende pacientes com dores de cabeça, calores insuportáveis, vozes ao ouvido, silêncios catatônicos. Ela agora não estuda as mazelas humanas, ela as confronta todos os dias na sala de um hospital central.

Verônica tem dúvidas. O pai adoece. Quer do sexo uma libertação, mas não se sente capaz de amar, mesmo quando é amada. Sabemos de tudo por sua voz em confidência que guia a narrativa. Coloca às claras suas aflições, incertezas. Mas é no rosto de Verônica, na atuação de Hermila Guedes, que reside todo o filme.

Marcelo Gomes faz do filme um testamento da crise de uma mulher que tem dúvidas sobre a vida. Como qualquer pessoa (repete ela algumas vezes), trazendo para o campo da realidade a ficção de sua história. Todos, em algum momento da vida, fomos ou seremos Verônica.

Para nos mostrar isso, diretor e atriz se montam de honestidade. O compasso do filme tem a clareza da atuação de Hermila. Não há arroubos, catarses ou ápices dramáticos. Há apenas a vida no ritmo da vida. Pequenas epifanias, os silêncios de companhia quando o pensamento se distrai.

A dúvida é o cotidiano e dele nasce a crise de Verônica, desenhada em sua voz que grava pensamentos, em gestos que guardam sentimentos e olhares que dizem mais que as palavras do mundo.

Dessa composição, que o diretor orquestra com sensibilidade e sem apelos, nasce a verdade do filme, reflexo da verdade de Verônica. No mar calmo e nas palavras íntimas, ela quer rumo, quer cura para tanta incerteza. Mas encontra apenas a vida, o mar, o sol que amorna a água em seu umbigo e a perspectiva de que as coisas são o que são.

Era uma Vez Eu, Verônica faz um tipo de cinema que evita o espetáculo para nos aproximar da vida. Em sua trajetória narrativa, sustenta-se não com o absurdo ou surpreendente, nem com o raro e inusitado, mas com a realidade cinematográfica de um cotidiano qualquer. Mas não faz disso uma monotonia monocórdia, pois preenche a tela de um cotidiano que traz o que há de mais extraordinário em si: a mera, indefinida e sempre incerta existência.
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Era Uma Vez Eu, Verônica
Marcelo Gomes
Brasil, 2012
91 min.

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domingo, novembro 18, 2012

A Montanha dos Sete Abutres


Ir para a rua e morder um cachorro. Esta é a promessa que o jornalista Chuck Tatum (Kirk Douglas) faz a seu editor para o caso de não haver notícia. Mas ao brincar com uma ancestral lição do jornalismo (de que notícia não é um cachorro morder um homem, mas um homem morder um cachorro), o inescrupuloso Tatum revela sua natureza logo nos primeiros momentos desse clássico dirigido por Billy Wilder em 1951.

Depois de perder sucessivos empregos nos grandes jornais das grandes cidades, Tatum vai parar na pequena cidade de Albuquerque, pedindo emprego para o editor do Albuquerque Sun Bulletin. Seu papo de repórter experiente, capaz de fazer tudo e conseguir grandes matérias convence o editor, cujo lema que reforça sua fé na profissão está exposto na parede do jornal: diga a verdade.

Mas Tatum está mais interessado em fazer fama, em conseguir a grande história que o fará voltar à grande imprensa, de preferência em Nova York. Depois de um ano “preso” no jornal sem grandes reportagens, cai em seu colo um acontecimento inusitado. Um homem preso num deslizamento, dentro de uma escavação, sob a tal Montanha dos Sete Abutres.

Está ali o personagem da grande matéria de Tatum: Leo Minosa (Richard Benedict), com quem o repórter consegue falar e ver através de um estreito buraco. Loe está com as pernas presas, mas consciente e sem dores. Tatum aciona o jornal, a polícia e todo serviço de auxílio que pode. Mas a cada um deles o repórter manipula a seu modo, seduzindo-os pela vaidade e pela ganância.

Desse modo, uma operação de resgate que poderia ser realizada em pouco mais de 24 horas, é articulada por Tatum para durar uma semana. A intenção é vender mais jornal e Tatum tem então a chance de refazer seu nome na grande imprensa. Um desejo de grandeza do personagem de Kirk Douglas que joga à lama toda ética jornalística.

O diretor Billy Wilder expõe de forma muito clara as engrenagens obscuras que podem fazer girar as relações nem sempre transparentes entre imprensa e poder. Assim como atribui também responsabilidade a quem consome notícias para dar vazão a baixos instintos de mórbida curiosidade sensacionalista.

Na composição dessa representação da realidade até hoje em vigor, há o xerife como figura política, que aceita as imposições do repórter em troca de destaque elogioso nas matérias; há o empreiteiro que planeja o resgate do modo mais demorado e ineficaz em troca da publicidade gratuita que terá; há o público comum, que se mobiliza para o local, transformado um resgate da vida humana em um aglomerado de curiosos sedentos pela última novidade.

O circo armado é a representação máxima de até onde o jogo entre imprensa, poder e “espetacularização” da notícia pode chegar.

Além das referências mais evidentes, Wilder também trabalha de forma sutil o perfil da consciência de Tatum diante de sua falta de escrúpulos. Isso é construído através da relação que ele tem com a esposa do homem soterrado. Indiferente ao sofrimento do marido, ansiosa por deixar aquele lugarejo no meio do nada e ainda lucrando com a iminente tragédia, ela se dispõe a seduzir o repórter para que ele a leve com ele.Torna-se, no início aliada dele.

Ao mesmo tempo, essa mulher e sua má índole funcionam como um espelho e o reflexo de si mesmo para Tatum. O que ele vê nela (como um espelho indesejado) claramente o perturba. Daí seu desprezo por ela e por sua indiferente ganância. Um desprezo pelo próprio reflexo, um desprezo pelas próprias atitudes, que Wilder trabalha de forma inteligente.

Para que se crie uma referência de oposição, representação do que é o bom jornalista, há o honesto editor do jornal da pequena cidade. Como jornalista que busca apenas a verdade, há na sua figura um curioso elemento, que "ressignifica" uma das bases da profissão. Ao se apresentar como um homem que usa ao mesmo tempo cinto e suspensórios, a figura desse editor denota o princípio da checagem e rechecagem dos fatos, um pilar do jornalismo desde sempre, mas muitas vezes posto de lado em nome da vendagem da notícia.

Referência como um filme que desmistifica de forma pessimista uma profissão que sempre se arvorou de nobre, A Montanha dos Sete Abutres é um filme que revela sintomas de uma doença chamada sensacionalismo e que contamina até os dias atuais quase todo veículo de informação. Um filme de 1951 que continua atual em pleno ano de 2012.
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Ace in the Hole
Billy Wilder
EUA, 1951
111 min.

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quinta-feira, novembro 08, 2012

Breve Pausa

O abandono é breve. Mudanças profissionais positivas tem me roubado todo tempo. Mas logo volto a ver filmes e comentá-los.
 

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