domingo, fevereiro 27, 2011

No Meu Lugar





No Meu Lugar
Eduardo Valente
Brasil, 2009

A partir de um fato trágico, “No Meu Lugar” desenvolve uma elaborada estrutura narrativa de tempo e espaço. É partindo desse vértice que o diretor constrói um inusitado paralelismo entre passado, presente e futuro. Cria um intrincado círculo em torno do qual e a partir do qual giram tempos narrativos distintos. Um interessante quebra-cabeça cujas peças vão se ligando, refazendo e dado ampla dimensão ao mesmo quadro com que o filme se abre.

O ponto de encontro atemporal, estopim de tudo, se dá no início. Apresentada quase sem rostos, a tragédia é o prelúdio do que depois será esse quebra-cabeça. O ponto do qual emana três linhas distintas de narrativa e para o qual retornarão essas linhas, numa circularidade bem orquestrada. No tempo de antes, um jovem da periferia se envolve com uma garota comum e dessa relação surgirá o convite ao erro. No tempo recente, acompanhamos o drama do tenente José Maria (Márcio Vito), seu afastamento da corporação e a forma como um tiro mudou toda sua vida. No tempo de anos depois, a família que retorna à casa onde a tragédia se deu e a reconstrução da memória, a vida seguindo adiante, mas ainda marcada pelo passado.

A construção não se apressa. Tem ritmo e cadencia firme, montagem que equilibra os três tempos. O breve desnorteio inicial aos poucos vai se definindo como uma história que será montada, pontas que serão amarradas. O tempo avança e retrocede em torno do vértice, se encaminha para o início da mesma forma que segue para o fim. Um jogo que revela a humanidade – com erros e acertos, equívocos e desenganos. Sem julgamentos.


Abertura

O filme abre com um rosto em primeiro plano. Com uma expressão amena, como quem medita e tem bons planos, despreocupado. À medida que a imagem se abre, vemos que segue em um carro em movimento, como quem viaja. Mais uma abertura na imagem e o fuzil que lava a tira-colo chama a atenção. O que vemos é um policial numa viatura.

Esse choque entre um despiste inicial, que faz crer uma coisa e se revela outra, joga-nos em um inadvertido jogo de aparências. Se todo enquadramento é uma subtração, a adição de elementos redefine seu significado. O que antes era tranqüilidade, pelo simples conhecimento de uma força policial se torna tensão. A cena se prolonga estrada acima. A tensão cede, parece tudo normal, rotina. Surge então uma mulher pedindo socorro. Diz que alguém está armado e pode matar o outro, que estão brigando.

O policial entra na casa. A câmera não. A imagem da fachada da casa, as vozes que vem de dentro, o disparo. Retém-se na retina aquela fachada, aquela porta. Sua repetição será a memória ativada de que dali partem todas as histórias da narrativa. Indica também que para ali convergirão, circularmente. O quebra-cabeça se desdobra diante de nós, montá-lo e entendê-lo será o desafio. Porque unir as peças não é o difícil, compreender o quadro que formarão é que talvez seja.


O Humano

Em seu filme, Eduardo Valente foca o humano. Não com o lirismo trabalhado feito fábula humanista, nem com a crueza exacerbada pelo áspero. Ele é simples. Por isso não cai em julgamentos, maniqueísmos ou simplificações arbitrárias. Recorre, sim, à já quase desgastada estilisticamente violência urbana carioca. Mas segue caminho diverso, sem espetáculo ou dramalhão. Até pela natureza do elaborado roteiro, prefere a construção em vez da constatação. Por isso é mais complexo.

Essa complexidade, porém, não se trata de afetação acadêmica, tão comum a alguns de seus pares de geração. Vai mais na linha do veja e entenda. Sem malabarismos, fora os de roteiro, que mesmo com uma estrutura que pode confundir no início, evolui de forma clara. O desnorteio do policial afastado e sua relação com a filha, um namoro comum e natural que leva sem grande surpresa ao trágico e a memoração da ausência, o desligamento final do passado. Tudo isso em paralelas que convergem para o início, elementos que são dispostos para o entendimento e a compreensão de que é dentro da naturalidade que acontecem as exceções e rupturas.

“No Meu Lugar” é um filme de ritmo bem cadenciado, mas que parece patinar no terceiro quarto. Ali as narrativas empacam e há uma aparente tergiversação que não caminha adiante. Também se equivoca no uso exagerado da trilha sonora, presente em excesso com a mesma música que de moldura passa a cansaço. Falhas ou exageros que atrapalham e dispersam a experiência do filme.

Mesmo assim, “No Meu Lugar” se mostra um bom filme, que expõe de maneira natural e humana dramas comuns, causas e consequências da tragédia. Se falha em alguns momentos, compensa essa falha por conduzir bem um roteiro que facilmente poderia ser motivo de embaraço e tropeço irreparável. No entanto, mostra-se ousado na forma e confiante no conteúdo. Termina por se sair muito bem e proporcionar uma boa experiência de cinema e exercício narrativo.
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