quinta-feira, dezembro 09, 2010

Deserto Feliz


"Nos dois estamos perdidos
Em um barco sem destino
Náufragos de um amor proibido
Atracados pelos mares da paixão

Perdidos
Em um barco a deriva
Almas gêmeas de uma vida
Esperando de uma vez a nossa terra
Prometida"

À Deriva - Aviões do Forró

Uma música que Jéssica (Nash Laila) canta regularmente e que exprime não apenas o sonho de qualquer menina adolescente, mas, no caso de Jéssica, uma tentativa de profecia. Uma música que na sua precariedade de versos, representa com perfeição os anseios e a alma juvenil sonhadora. Uma juventude esmagada pela força das condições do deserto e da vida, mas que sonha com sua terra prometida.


Talvez seja difícil encontrar inteiramente o significado do último plano de Deserto Feliz, filme de Paulo Caldas. Talvez seja mais fácil ainda fazê-lo no primeiro plano. Ambos - o primeiro e último plano - se conectam e pontuam a narrativa, representando, cada um no seu momento, o deserto feliz que busca Jéssica.

Ela tem apenas 14 anos. Em Pernambuco, numa cidade chamada Deserto Feliz, mora com a mãe e é molestada pelo padrasto. Passa a se prostituir em uma parada de caminhoneiros. Acaba indo para a cidade grande. Divide um apartamento com outras duas prostituas. Ganha a vida com o turismo sexual das praias nordestinas. Tem apenas 14 anos.

Deserto Feliz é um filme que se revela menos pelo que mostra, mas muito mais pelo que insinua. É estruturado em uma narrativa aparentemente não-linear, por isso não entrega com com clareza a ordem cronológica dos acontecimentos. São seus recortes e suas elipses que vão compor o quadro fragmentado da vida de Jéssica. Um quadro no qual faltam partes. Partes que podem ter sido suprimidas pela dureza da vida, pelo que foi roubado de sua infância.

Nesta realidade da vida de Jessica, o filme também revela, e dessa vez não por elipses, a realidade sem espaço para ficção do turismo sexual de menores no nordeste brasileiro. A facilidade de se conseguir drogas e crianças para estrangeiros. Ao custo de dólar ou euro.

É entre a banalidade corriqueira da exploração sexual de crianças e do consumo de drogas que o mundo de Jéssica se torna árido e triste. Mas ela sonha, como qualquer todas as meninas novas, com um gringo que a leve para a Europa e a faça rainha.

Acredita que sua felicidade só possa existir longe de um lugar e de um país que só lhe deu o corpo para o sustento, pois como diz uma personagem mais experiente: “sempre vivi da minha buceta”. Está aí um vaticínio inapelável. Um destino certo para jovens como Jéssica, cuja vida se marcou desde cedo pelo abuso e pelo descaso familiar e social.


No fim, o deserto feliz que Jéssica encontra é muito mais deserto e muito menos feliz. Mas dentro de seu rosto triste, andando por ruas com neve sobre a calçada e céu cinzento no horizonte; por trás de sua última conexão com sua origem que é ir a um parque alimentar algumas cabras e bodes num cercado; está uma vida melhor que a do Brasil.


Mas ainda é, e talvez muito mais nítida agora, uma vida de deserto, uma vida de elipse. A conexão final entre o primeiro e o último plano de Deserto Feliz mostra-se claramente não-linear e deixa transparecer no rosto de Jéssica o que Jéssica leva sempre dentro de si: seu vazio e seu deserto.
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Deserto Feliz
Paulo Caldas
Brasil/Alemahnha, 2007
92 min.

Trailer

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