segunda-feira, maio 23, 2011

O Homem ao Lado



El Hombre de al Lado
Mariano Cohn e Gastón Duprat
Argentina, 2009
110 min.

“O Homem ao Lado”, filme argentino que entrou em cartaz em São Paulo na última sexta (20), é o que arrisco classificar como uma comédia sombria. Isso porque não se trata simplesmente de humor negro a forma como as situações se sucedem na trama, e também porque não creio que se deva recorrer ao cômodo rótulo da tragicomédia. Para um filme que se desenrola com tão inesperada tensão cômica - na qual o riso é quase um sintoma do desconforto ante um clima sutilmente tenso -, rotulá-lo simplesmente seria diminuir sua força como elemento crítico da sordidez, covardia e indistinção humana de classes sociais (ou classes intelectuais) que se julgam acima.

Leonardo (Rafael Spreguelburd) é um conceituado e premiado designer que vive com a esposa e a filha pré-adolescente em uma casa desenhada pelo famoso arquiteto suíço Le Corbusier. A casa, único trabalho do arquiteto na América Latina, costuma ser ponto de visitação de estudantes de arquitetura e interessados por arte em Buenos Aires. A paz de Leonardo começa a se desintegrar quando seu vizinho Victor (Daniel Aráoz) resolve fazer uma janela de frente para uma das janelas de sua casa.

Indignado com a falta de privacidade (e também de “bom gosto”) que uma janela naquela posição causará para si e sua família, Leonardo irá pedir a Victor que pare a obra. Victor argumenta que precisa apenas de um pouco de luz solar para iluminar sua casa e tenta convencer Leonardo amigavelmente. Entre avanços e recuos na negociação da questão, os contrastes entre o sofisticado e refinado Leonardo e o cafona e “amalandrado” Victor revelarão o conflito subjetivo que há entre eles, que vai além de uma janela. Um conflito que guarda mais do que uma pendenga entre vizinhos, mas também um sentimento de repulsa e anacronismo.

Anacronismo é a melhor maneira de definir o modo de vida de Leonardo e a distinção entre ele e seu vizinho. Não se trata apenas de uma distinção social ou de sofisticação, mas principalmente da fraqueza e do aquartelamento de Leonardo em sua casa e em seu mundo. Esse anacronismo se apresenta na relação fria, porém catártica, de Leonardo com a casa. Ao morar dentro do que pode ser considerado uma obra de arte, o designer sofre um enclausuramento de si mesmo e de sua visão do mundo, da vida e até de sua família. Em especial da filha, que não esconde o profundo desprezo pelos pais.

Leonardo é acima de tudo um fraco. A casa onde vive subjetiva sua personalidade. O filme se mostra muito competente ao estabelecer essa relação de forma sutil, acentuando o anacronismo da vida de Leonardo através do modo como o filma. É pelas angulações inusitadas da casa que o vemos quebradiço, obliquado por linhas, móveis, corredores, rampas e esquinas. Uma composição de imagens que o esquarteja e o observa na sua incompletude. E tudo isso se acentua a partir do tormento que as reformas na casa do vizinho causam na vida do personagem.

São esses elementos cênicos, essa espécie de encarceramento voluntário, que esconde, de forma mal dissimulada, a impotência e a fraqueza de Leonardo.

A janela “invadindo” sua casa seria uma exposição dessa fraqueza. Uma fraqueza e impotência que ele compensa com seu estilo de vida pedante, na arrogância com que trata os jovens estudantes que o procuram e no desprezo que sente pelo vizinho.

No outro extremo, Victor se mostra como o “bom selvagem”, que transmite uma agressividade cordial de apaziguamento e conciliação, apesar do modo irredutível com que Leonardo aborda a questão da janela. Sua personalidade é quase que oposta a de seu vizinho, exibindo um gosto duvidoso na forma como decora sua van, em como se veste e fala. Mas, apesar de uma cordialidade insistente, de seu desejo em estabelecer uma “boa vizinhança”, sempre resta uma ambivalência na sua entonação, no seu olhar e nunca ficam claras suas reais intenções.

Diante do impasse que não se soluciona, Leonardo passa a se sentir arruinado, com sua vida completamente desestruturada, apenas porque não sabe como lidar com a figura obsequiosa, permissiva e diferente do vizinho. Já Victor insiste em contornar a situação amistosamente e tenta se aproximar de Leonardo, oferecendo repetidas vezes laços amigáveis e cordiais que são sempre rejeitados pelo outro.

Apesar de toda comicidade da trama, “O Homem ao Lado” se revela uma crítica contundente e pessimista a uma elite despreparada para a convivência social por estar permanentemente encerrada num anacronismo pedante e vazio; sempre cercada dos mesmos acólitos destituídos de qualquer pensamento crítico e que servem apenas como legitimadores dissimulados de uma inexistente relevância social ou artística. Não fazem parte do mundo real, apenas de seus pequenos mundos.

No final, toda a massa agônica que invadiu a vida “perfeita” de Leonardo e a transformou numa sucessão de dissabores e constrangimentos, revelará não apenas sua fraqueza, impotência e covardia, mas acima de tudo a sordidez de seu caráter anacrônico. Com um desenlace que choca o ser humano que há em cada espectador, o filme se conclui numa tragédia que aterroriza e dilui a possibilidade do humano e do humanitário, destruída pela inércia monstruosa dos personagens. E tudo apenas para que não se abra uma simples janela.
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