segunda-feira, fevereiro 20, 2012

A Invenção de Hugo Cabret

Relembrar os melhores filmes de Martin Scorsese é fazer um mergulho na violência e na sujeira das ruas de uma grande cidade. Mas também é fazer um sobrevoo na psique desequilibrada de assassinos, criminosos e paranoicos. Autor de uma obra consistente, mestre da tensão narrativa, Scorsese nunca escondeu que o mundo perverso de seus personagens é um exorcismo de sua infância difícil, da qual muitas vezes escapava através do cinema. E que foi pelo cinema que se deu algo como uma salvação de sua alma.

Em A Invenção de Hugo Cabret, a trajetória de seu pequeno protagonista, Hugo (Asa Butterfield), reflete a mesma lógica por caminhos distintos. De certa forma, será o cinema – e toda magia dedicada ao olhar deslumbrado da plateia – a salvação de Cabret; do personagem, e também do filme de Scorsese.

Porque ao se voltar pela primeira vez para o universo infantil, e para a tecnologia 3D, o diretor realiza um filme visualmente impecável, mas narrativamente problemático. De forma que apenas quando o cinema entra de vez na história, esta cresce e se desdobra com força e sentimento. Antes disso, porém, arrasta-se.

Hugo é um órfão que mora em uma estação de trem na Paris dos anos 30. Seu trabalho consiste em manter os relógios da estação em ordem. Esta tarefa foi herdada do tio beberrão, com quem foi morar após a morte do pai, um relojoeiro que passou a Hugo sua paixão por máquinas e engrenagens. O tio, na verdade, desapareceu há algum tempo. Desde então, Hugo vive clandestino, realizando seu trabalho, roubando para sobreviver e tentando consertar um autômato deixado por seu pai.

Um autômato é como um robô que depois de receber corda realiza uma tarefa específica. O de Hugo parece ter sido programado para escrever algo e o garoto alimenta algumas esperanças quanto ao conteúdo dessa mensagem.

Para repor as peças que faltam, o garoto frequentemente rouba de uma loja de conserto de brinquedos que há na estação. Uma loja que pertence a um senhor com ar melancólico, mas que age com dureza quando flagra Hugo em pleno delito, tomando dele uma caderneta de anotações sobre o autômato. Será na tentativa de recuperar estas anotações que o garoto descobrirá que a senhor da triste figura é na verdade Georges Méliès, a quem se julgava morto desde a Primeira Guerra Mundial.

Méliès foi o precursor do cinema como fantasia e imaginação sem limites. A ele o cinema deve tudo. Realizador de mais de 500 filmes, mágico ilusionista de profissão, Méliès introduziu no cinema os efeitos especiais, misturando truques de mágica com efeitos de filme. Criou histórias fantásticas, mundos incríveis, efeitos que até hoje surpreendem. Seu filme mais famoso é Viagem à Lua, de 1902, um dos poucos que não se perdeu com o tempo.

O grande problema no filme de Scorsese está no andamento da narrativa, algo que se oculta em parte por trás do uso extremamente bem arquitetado do efeito 3D. Tecnicamente impecável, a tecnologia tridimensional é muito bem aproveitada na construção de um universo rico em textura e profundidade. O efeito é eficaz ao nos introduzir neste mundo através do olhar de Hugo.

Contudo, há na condução da trama um arrasto desnecessário, uma certa demora de rodeio sem objetividade durante o miolo do filme, quando todos os personagens já foram apresentados e a história simplesmente não anda, dando voltas em torno de si mesma.

Com o carisma bastante limitado de Hugo no propósito de comover o público com sua busca de menino órfão, a trama se enfraquece com personagens bastante caricatos, mas que se repetem além do necessário. É o caso do inspetor da estação que persegue Hugo. Interpretado pelo comediante Sacha Baron Cohen (famoso por seu personagem Borat), o inspetor é o alívio cômico que não funciona e colabora para o arrasto da narrativa. Mesmo a presença marcante de Christopher Lee como um livreiro “enciclopédico” pouco contribui para o fluxo do filme.

Quase tudo se perdoa quando chegamos ao terço final da história e a comovente atuação de Bem Kingsley como Georges Méliès faz o filme crescer substancialmente. É um prazer para os olhos de qualquer cinéfilo rever as imagens dos filmes de Méliès retrabalhadas por Martin Scorsese para comporem quadro junto ao 3D, alterando sua textura, mas preservando sua simplicidade. Assim como Scorsese, Hugo se encontra através do cinema. Encontra um propósito para si e para todos a quem tocou em sua aventura. E ver no cinema este tipo de cinema, que resgata, que salva e modifica, é sempre um fabuloso deleite.

Não há dúvida que o diretor realizou uma obra de visual encantador, nem há dúvida de que sua homenagem ao cinema, através da figura de Georges Méliès – e seu recado sobre a importância da preservação dos filmes –, é de uma delicadeza imensa. Mas nada disso deveria ocultar o fato de que na tentativa de construir uma fábula infantil, carismática e de encanto, A Invenção de Hugo Cabret funciona com lacunas e falhas na condução do tempo. Mas nada grave o suficiente para diminuir sua beleza apuro técnico, além das emoções que seu final consegue despertar.
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Hugo
Martin Scorsese
EUA, 2011
126 min.

Trailer

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