quarta-feira, maio 30, 2012

Branca de Neve e o Caçador


Rainha-bruxa-má misândrica, incestuosa e fetichista? Não, Hollywood jamais iria tão longe. Mas que a ótima personificação que Charlize Theron faz da vilã famosa pela frase “espelho, espelho, meu...” dá margem a ilações, isso dá. Em Branca de Neve e o Caçador, que chega na próxima sexta aos cinemas, a atriz é a melhor razão para se ver o filme.

Na onda das releituras de clássicos infantis, transmutados em aventuras cheias de ação direcionadas ao público adolescente, o filme estrelado por Kristen Stewart (a Bella de Crepúsculo), cumpre seu papel com um mínimo de dignidade. Engrossando o elenco – e o apelo juvenil feminino – Chris Hemsworth (o Thor de Os Vingadores), faz as vezes do caçador do título.

Da trama, cabe dizer que a Rainha-bruxa-má chama-se Ravenna. Traiçoeira figura que vive sob um feitiço através do qual perpetua sua beleza e seu poder. Ajudada pelo irmão, parte desse feitiço só tem efeito enquanto não houver outra mulher mais bela dando sopa por aí. Ela seduz o rei viúvo, pai de Branca de Neve, para logo assumir seu lugar e jogar a inocente garotinha na masmorra.

A certa altura, por imposição do roteiro, o espelho mágico se vê obrigado por contrato a dizer que Branca de Neve é mais bela que Ravenna; algo um tanto sem cabimento, mas que se tolera para não deixar a história perder a graça. O resto segue como esperado, Branca de Neve foge, a Rainha manda um caçador trazer o coração da moça, o caçador afrouxa, sentimos todos etc.

Mas o filme não vai pelo caminho clássico. Os tais sete anões, por exemplo, demoram a aparecer e não são nada amáveis. São na verdade salteadores brutos, ex-mineradores afetados pela crise sombria que o reinado de Ravenna trouxe para o reino. É somente após estarem todos reunidos que a trama deslancha para algum lugar. Antes disso, o filme vai se arrastando de um lado a outro sem muita direção.

Percebe-se em Branca de Neve e o Caçador um esforço quase bem sucedido de se levar a sério. Este esforço só funciona em parte graças à malévola Ravenna, que dá um bom estofo sombrio para o clima da aventura. Prejudica este esforço a velha preguiça de roteiro, quando remendos são inseridos na trama e não levam a lugar algum, como é o caso de um personagem que faz parte da infância de branca de Neva. O modo como ela atravessa o filme é grotescamente mal costurado.

Apesar de tudo, esta releitura do conto de fadas alcança um bom brilho. Tem uma direção de arte bem acabada, uma fotografia redonda, apesar de óbvia, e uma atriz que dá segmento à tradição na qual muitas vezes é o vilão da história quem rouba a cena e faz o filme valer o ingresso.
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Snow White and the Huntsman
Rupert Sanders
EUA, 2012
127 min.


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domingo, maio 27, 2012

A Delicadeza do Amor

CRÍTICA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO SITE CINECLICK

Sempre lembrada por seu papel em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), Audrey Tautou tem um encanto próprio. Os grandes olhos negros, o sorriso tímido, o jeito sonhador e um ar sutil de deslocamento, fazem parte desse encanto e contribuem para a que atriz francesa seja frequentemente chamada para papéis em histórias românticas. É mais uma dessas histórias que ela protagoniza em A Delicadeza do Amor.

Delicadeza é o termo certo para descrever a forma como Nathalie (Audrey Tautou) lida com os caminhos inesperados de sua vida. De vendedora de programas de peças de teatro a um emprego promissor; de um casamento apaixonado à perda repentina; do luto doloroso a uma tentativa de restauração de seu afeto. Será este o inconstante trajeto de Nathalie, no qual a delicadeza estará sempre presente.

Contudo, mesmo recheado de uma beleza romântica bem colocada, a sinuosidade dos caminhos da personagem fazem enfraquecer o filme, tornando-o irregular. Alternam-se momentos absolutamente sublimes – como o belíssimo e poético desfecho – com outros cheios de clichês românticos.

A falha mais evidente está no roteiro, que dá uma série de voltas que não levam a lugar algum. Há uma intenção de criar um clima de estranheza, fazendo da história de Nathalie algo inusitado e fora dos padrões. A intenção é boa, pois desvincula o filme de roteiros previsíveis e personagens estereotipados. Contudo, pela dosagem exagerada, tem-se em alguns momentos a impressão de que a história se perdeu.

Porém, o que ameniza esse descompasso no ritmo do filme é a entrada de Markus (François Damiens). Ele é o estranho colega de trabalho de Nathalie, um sueco desajeitado que vive na França. É este personagem o grande achado do filme, que cresce sempre que ele está em cena. Com jeito meio abobado e compartilhando de uma ingenuidade delicada, surgirá entre ele e a protagonista uma química improvável. E também as tiradas mais divertidas do filme.

Sem os rodeios que tanto dispersam a trama, A Delicadeza do Amor poderia ser uma obra menos irregular e mais consistente. Mas mesmo com tantas falhas, a presença sempre bem temperada de Audrey Tautou e a espirituosa surpresa da atuação de François Damiens salvam o filme, impedindo um desastre açucarado e piegas. Nos momentos que acerta, é divertido, bonito e até poético.
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La Délicatesse
David Foenkinos e Stéphane Foenkinos
França, 2011
108 min.

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sábado, maio 26, 2012

Flores do Oriente


Quando o drama de Flores do Oriente finalmente nos fisga, já se passaram mais de uma hora e quarenta de filme e outros 40 minutos ainda estão por vir. É tempo demais para uma história engrenar ou dizer a que veio, mesmo se tratando de trazer à tona um fato histórico: o massacre promovido pelo exército japonês contra a população de Nanquin, na China, em 1937.

O chinês Zhang Yimou, diretor do filme, tem belos trabalhos no currículo, como Lanternas Vermelhas, Herói e O Clã das Adagas Voadoras. São obras que exibem um colorido vibrante, delicadamente orquestrado pela plasticidade do movimento – tanto dos corpos quanto da câmera. Mas nesta fita, Yimou deixa de lado esta plasticidade para revelar a violência e brutalidade da guerra. Mas para exibir este horror, parece ter aberto mão de contar uma história com personagens e dramas que traduzam ao espectador algum sentimento.

Historicamente, a invasão da cidade pelo exército japonês é conhecida por alguns como “estupro de Nanquin”, título que basta para ilustrar o tamanho da bestialidade cometida pelos soldados nipônicos às mulheres da cidade. No filme, durante a invasão, um convento para meninas órfãs é um dos poucos refúgios contra a barbárie dos invasores. Com o padre que cuidava do local morto, as meninas esperam, aterrorizadas, a chegada de um coveiro que enterre o corpo do padre. Este coveiro é John Miller, aqui interpretado por Christian Bale (que em 2011 levou um merecido Oscar pela sua atuação em O Vencedor).

À parte à péssima atuação que Bale entrega a este filme, a presença de seu personagem é um remendo de roteiro difícil de engolir. Ele é um sujeito mau caráter, beberrão e ganancioso que quer apenas fazer seu trabalho, receber por ele e dar o fora. Mas acaba ficando mais tempo no convento quanto um grupo de prostituas também busca refúgio no lugar. Neste microcosmo, um inevitável conflito entre as órfãs pudicas e as mulheres da vida surgirá, com o indiferente Miller no meio. Em paralelo, um soldado chinês faz de tudo para manter o convento livre da invasão bestial dos japoneses, enquanto tenta dar uma morte “confortável e aquecida” para seu companheiro de armas, mortalmente ferido.

Não é preciso muito tempo para perceber que o roteiro de Flores de Oriente é uma colcha de retalhos. Entre uma costura e outra, Yimou não se preocupa em ao menos dar algum estofo a qualquer personagem da trama. Nem Miler, nem qualquer menina órfã, nem qualquer prostituta demonstra alguma coisa além de estereótipo unidimensional Mas o filme ainda abusa da não verossimilhança, fazendo com que Miller, quase que por epifania, se torne numa pessoa altruísta, disposto a se esforçar na tentativa de ajudar o próximo.

Esquemático, o filme se arrasta até chegar ao ponto em que quer chegar. No caminho, abusa do melodrama, sem com isso comover de verdade. O tom sombrio e desolador do filme não basta para criar atmosfera e a figura de Christian Bale soa tão deslocada na trama e nas cenas, que torna ainda mais difícil entrar no clima. Claro que pela mão do diretor, algumas sequências são bem filmadas, exibindo sua virtuose para a intensificação do momento através da plasticidade do jogo cênico, ainda que siga abusando também da câmera lenta.

Se Flores do Oriente serve para alguma coisa, é para trazer à memória o vergonhoso fato histórico no qual o filme é ambientado. Tirando-se isso, fica apenas as costuras à mostra de uma mal remendada trama de melodrama e guerra, com um personagem fora de lugar em meio à superficialidade de personagens caricatos e padronizados.
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The Flowers of War
Zhang Yimou
China/Hong Kong, 2011
146 min.


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terça-feira, maio 22, 2012

Hasta La Vista!

Três deficientes físicos em busca de sexo. Assim pode ser descrito Hasta La Vista!, filme belga que estreia no próximo final de semana. Com clara vocação para comédia, a história é daquelas que parecem saídas da cabeça de algum roteirista pervertido. Mas a verdade é que o filme é inspirado em fatos e personagens reais, provando mais uma vez que a realidade pode ser tão inesperada quanto a ficção.

Philip (Robrecht Vanden Thoren), Lars (Gilles de Schryver) e Jozef (Tom Audenaert) são três amigos inseparáveis que compartilham deficiências físicas. Philip é portador de uma doença degenerativa que limita gravemente seus movimentos abaixo do pescoço, Lars ficou paraplégico após o surgimento de um tumor e Jozef é praticamente cego. Além de jovens e deficientes, compartilham ainda uma terceira particularidade: são todos virgens. E não querem, de modo algum, permanecerem assim.

A oportunidade para solucionar o problema do sexo surge quando um deles descobre que na Espanha, em uma cidade litorânea, existe um bordel especializado em atender deficientes. Como não podem pedir para que seus pais os levem a um bordel, planejam uma viagem só entre eles, de van, acompanhados por um enfermeiro-motorista.

Vencida a resistência inicial dos pais, que acreditam que eles vão fazer uma rota de degustação de vinhos, planejam a empreitada. Mas algo inesperado acontece e o que era consentido se torna clandestino. Em suma, eles acabam indo sem a autorização dos pais, fugidos na calada da manhã. Quem os levará será Claude (Isabelle de Hertogh), que eles achavam tratar-se de um homem, mas é na verdade uma mulher. Uma mulher grande, durona e sem muita delicadeza, responsável por conduzi-los ao “Cielo”, nome da casa de tolerância em Espanha.

Assim, Hasta La Vista! se torna um divertido filme de estrada, mostrando que as limitações dos personagens não os limitam de viver intensamente. O filme é recheado de piadas sobre as deficiências de cada um e são essas as que melhor funcionam. Mas a história não se trata de uma comédia e sim de uma aventura estradeira entre quatro personagens improváveis descobrindo novos sentimentos e prazeres. Como em qualquer filme de estrada, é a viagem e a convivência que os transforma e os revela. Tanto no que eles têm de bom quanto de perverso.

Apesar da boa história nas mãos, o filme escorrega em algumas superficialidades. Uma delas é a forma esquemática com que constrói a relação entre Claude e os três viajantes, apelando até para uma piada clichê e óbvia. Peca também por não desenhar melhor a personalidade de cada um, mantendo-os dentro de alguns estereótipos: o mimado e egoísta, o que sofre com a possibilidade da morte e o delicado sensível. Até pelas boas ótimas atuações apresentadas, os personagens mereciam uma melhor densidade individual.

Também fica bastante ao largo a polêmica que foi levantada pelos personagens reais que deram origem ao filme. Uma discussão sobre o direito dos deficientes físicos de terem uma vida sexual ativa, mesmo que para isso tenham que recorrer ao sexo pago. É essa a bandeira levantada por Asta Philpot, o norte-americano deficiente que iniciou todo um debate sobre o assunto e que inspirou outros deficientes a buscarem sua satisfação sexual.

Porém, independente dos deslizes, Hasta La Vista! traz para a tela uma inesperada aventura sobre rodas, guiada pela aceitação e pelo direito de se viver livre e intensamente, a despeito de condições limitadoras. Como filme de estrada entre amigos, reforça laços de amizade, de cumplicidade e companheirismo. E também de prazer; seja ele o da carne ou o da aventura entre bons companheiros.
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Hasta La Vista!
Georffrey Enthoven
Bélgica, 2011
115 min.

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terça-feira, maio 15, 2012

Luz nas Trevas - A Volta do Bandido da Luz Vermelha





O filme O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla tornou-se um mito. Sua estrutura anárquica, estética indecorosa (no melhor e mais libertário sentido do indecoroso); sua agressividade e ausência de ilusões, a acidez debochada e veemente... tantas são suas particularidades que fica difícil descrevê-lo. No momento em que surgiu e diante do despropósito de seu realizador – que jamais o ensaiou como grande obra, mas apenas um filme qualquer, para ser visto e esquecido em qualquer cinema poeira do centro de São Paulo – sua envergadura genial assombrou público e crítica. Hoje, mais de 40 anos depois, é cultuado pela cinefilia, tem forte reconhecimento internacional, tornou-se o símbolo mais bem acabado do chamado cinema da boca do lixo. Tornou-se manifesto e marco.

Antes de morrer, em 2004, Sganzerla deixou pronto um roteiro para o que poderia ser uma continuação de sua obra-prima. Foi a partir desse roteiro que a viúva de Rogério – e atriz-musa de seus filmes –, Helena Ignez, realizou, em parceria com Ícaro Martins, Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha.

Menos uma continuação e muito mais um desdobramento atualizado do filme original, Luz nas Trevas traz Ney Matogrosso na pele do próprio bandido, 40 anos depois. Mas como?, pode-se perguntar, uma vez que o bandido morre no final do filme de 68. Na prisão, é o próprio Luz quem responde, referindo-se ao filme como um filme que fizeram sobre ele. Está dada a chave e a permissividade para a construção de uma obra plenamente metalinguística e cíclica, que tem pelo original uma reverência permanente, mas guarda para si um bom pedaço de originalidade e personalidade.

Vemos o “Sr. Luz” nas trevas da prisão. No discurso, a veemência que Matogrosso despeja sob a encarnação desse bandido revoltado. Fora da prisão, temos o filho do Luz, seguindo os passos do pai. Interpretado por André Guerreiro Lopes, ele assume a alcunha de Tudo ou Nada, aterrorizando a noite paulistana. Entre as mulheres que seduz, Djin Sganzerla – filha de Rogério e Helena – o acompanha no conversível vermelho rumo à praia, numa reedição do que Pablo Villaça, o Luz original de 1968, e Helena Ignez fizeram de forma magistral no passado.

Luz nas Trevas é um diálogo permanente com o filme de Sganzerla. Vai da referência à homenagem, passando pela reedição atualizada de planos, sequências e diálogos. Na caotização que preserva do original, insere enxertos de falas, sons, ruídos e as indefectíveis sirenes que pontuam a cidade e o bandido. É desarranjado e provocativo, mas não evita uma mimese muitas vezes diluída do que foi o filme original. Por outro lado, traz sempre uma exuberância renovada, um fio cortante, elétrico, disseminador de um cinema incorreto, caleidoscópico, aguçador.

Entre a continuidade e a reedição, Helena e Ícaro reconstituem e preservam o espírito libertário do cinema de Sganzerla. Nesta tentativa ousada, os deslizes, as irregularidades e a força oscilante que são problemas pontuais do filme, acabam por se dispersar na fumaça inebriante de sua conjunção carnal, intensa e exuberante, que se percebe nas intenções de sua construção. Não é perfeito ou equânime, nem se pretende tal. Mas é visceral e autêntico, e como tal, necessário e excitante.
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Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha
Helena Ignez e Ícaro Martins
Brasil, 2010
83 min.

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quarta-feira, maio 09, 2012

Uma Longa Viagem














Um registro de família convertido em uma viagem cheia de vida, liberdade e consequência. Em Uma Longa Viagem, a diretora Lúcia Murat desencava sentimentos de memória dolorida para compor um documento intenso e humano sobre o tempo, a aventura e as sobras de tudo que somos nós.

São três os personagens dessa história, mas apenas um é vivamente representado. É dele que emana uma vivência única, tresloucada, libertária. Mas que também o obriga a trazer na algibeira dessas experiências um amargo reflexo das drogas de sua imensa liberdade: a esquizofrenia.

Lúcia, Heitor e Miguel são três irmãos que seguiram caminhos diferentes na vida. Miguel se formou em medicina. Lucia, por envolvimento com militantes de esquerda nos anos da ditadura brasileira, acabou presa e torturada nos porões da vergonha de nossa história. Já Heitor, viajou o mundo, provou todas as drogas e regressou esquizofrênico.

É a partir de cartas escritas por Heitor durante suas viagens, recordações afetivas e a memória do próprio sofrimento de Lúcia, que o documentário resgata um tempo e as ocorrências que marcaram toda família. Com inventividade e recursos cênicos simples, o filme nos insere na loucura de Heitor, em suas viagens pelo mundo e pelas drogas. Para pontuar a liberdade extremada de Heitor, temos o depoimento franco de Lúcia sobre sua penúria na prisão.

Do particular para o geral, e como a diretora, ao transpor para um documentário sua própria história e a de sua família, revive um período da história. Um tempo em que sonhos e pesadelos tinham aqui e no mundo pesos distintos. Tudo parecia possível, e ao mesmo tempo, não. Entre nossa ditadura e a liberdade propalada por uma juventude ansiosa por mudanças – aqui e lá fora –, uma sintonia de ideais que destoava apenas nas consequências. Lúcia na prisão e Heitor pelo mundo representam a disparidade do possível de então.

Na construção deste quase díptico – uma vez que a figura do terceiro irmão, Miguel, tem pouca ação neste relato, ainda que ele talvez represente o meio; o equilíbrio que por si só, pelo tempo em que aceitou ser meio, aceitou também a mediocridade da temperança em tempo de urgência e clamor – Murat utiliza da criatividade para recompor o que não tem registro além de cartas. Para personificar um Heitor atribulado de juventude, chamou Caio Blat.

Excelente como costuma ser por ter sempre uma dedicação apaixonada pelo trabalho de atuar, Blat interpreta a vivacidade das palavras das cartas de Heitor. Interage contra projeções de imagens, cenários teatrais e traduz com intensidade esse personagem real. Alterna-se esta atuação iluminada com o próprio Heitor, dando depoimentos que deixam transparecer as consequências de sua juventude desmedida.

Habilidoso em lidar com a narrativa, Uma Longa Viagem é um documentário estimulante, que nos passa uma vivacidade incomum. Traduz um tempo e traz na melancolia de suas heranças não um aprendizado ou lição, mas o resultado da longa viagem de seus protagonistas. Por ser tão particular, humaniza. Por ser tão contextual com uma época, ilumina-a por um registro diferente. Há pouca amargura em suas linhas. É muito mais um testemunho e uma catarse da diretora. Ao compartilha-la com o espectador, transforma-a também em nossa própria catarse.
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Uma Longa Viagem
Lúcia Murat
Brasil, 2011
95 min.

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domingo, maio 06, 2012

Conspiração Americana





Na direção, Robert Redford tem se mostrado um provocador. Com uma cinquentenária carreira de ator, seu engajamento político fora dos sets de filmagens tem se refletido em seus últimos projetos como diretor. Foi assim em Leões e Cordeiros (2007) – uma provocação reflexiva sobre a invasão do Afeganistão através de 3 perspectivas: soldados na frente de batalha, imprensa e poder, juventude politicamente desinteressada. Agora, em Conspiração Americana, Redford reconstitui o drama histórico do quase desconhecido julgamento de Mary Surratt, a primeira mulher executada pela justiça norte-americana.

Logo após o fim da guerra civil americana (Guerra de Secessão – 1861-1865), os EUA era um país em frangalhos. Apesar do fim da guerra, sua unidade enquanto nação ainda era frágil. Foi nesse clima de incerteza, misturado ao alívio pelo fim da guerra, que aconteceu o assassinato do presidente Abraham Lincoln, morto com um tiro na cabeça, disparado por John Wilkes Booth durante uma apresentação teatral.

O trauma de um crime tão duro em um momento tão delicado, faz o governo iniciar uma intensa caçada pelo assassino e por todos os envolvidos na suposta conspiração que levou ao atentado fatal. Entre os suspeitos, está o então foragido John Surratt (Johnny Simmons), amigo de Booth. Mas será sua mãe, a viúva Mary Surratt (Robin Wright), proprietária de uma pensão, quem mais sofrerá as consequências disso. Isso porque era na pensão de Surrat que aconteciam as reuniões conspiratórias, frequentadas pelo próprio assassino do presidente.

Por conta disso, Mary Surrat é presa, acusada de fazer parte do plano que matou Lincoln. Ela alega inocência, mas se for condenada será levada à forca. Entra aí a figura do senador Reverdy Johnson (Tom Wilkinson). Ele solicita ao advogado e herói de guerra Frederick Aiken (James McAvoy) que assuma a defesa da acusada.

Aiken tenta recusar, pois não vê como pode defender alguém que conspirou contra aquilo que ele lutou e que custou a vida de tantos amigos. Mas acaba convencido pelo senador, que evoca os princípios constitucionais a que a acusada tem direito. Ele também diz temer que o julgamento se desdobre de forma injusta, resultando em vingança sumária no lugar de justiça.

Cria-se então uma interessante relação ambígua entre o advogado e a acusada. A força e a determinação da mulher em se dizer inocente – ao mesmo tempo que reafirma seus ideais sulistas – afetam o advogado, confrontado com aquilo que acredita e aquilo que é seu dever. Um dever que ao ser cumprido afetará intensamente sua vida pessoal, atingida pela impopularidade em se defender alguém que a opinião pública execra.

Através de uma história real ocorrida há quase 150 anos, Robert Redford traça um estimulante paralelo com o presente. Ao demonstrar como a fragilidade de uma nação diante de um ato de terror pode levar a ações antidemocráticas e a graves injustas na busca de culpados, faz uma provocativa analogia com os EUA pós-11 de setembro de 2001 e a política da era Bush.

Conspiração Americana pode parecer um filme de interesse restrito, por tratar da história norte-americana. Mas um olhar mais atento verá no julgamento de Mary Surratt mais que uma passagem nebulosa da justiça dos EUA. Está ali o estereotipo do linchamento popular, da necessidade de se dar à opinião pública a vingança que turbas consternadas desejam. Não raro, ao largo da verdadeira justiça. Uma história que se repetiu nos EUA contemporâneo, e se repete constantemente também por aqui.
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The Conspirator
Robert Redford
EUA, 2010
122 min.


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sábado, maio 05, 2012

Anjos da Lei




CRÍTICA PUBLICADA ORIGINALMENTE NO PORTAL CINECLICK

Certos filmes – especialmente algumas comédias – só funcionam bem se ficar claro que não se levam a sério. Quando isso acontece, você relaxa e curte. A cena que permite isso em Anjos da Lei é quando o Capitão Dickson, interpretado muito bem por Ice Cube, explica a dois policiais novatos a força tarefa em que estão entrando. Ele diz que estão reativando um antigo programa dos anos 80 como se fosse algo novo. Que ultimamente ninguém parece ter ideias novas, que ficam repetindo coisas antigas com ar de novidade achando que ninguém vai notar.

No final dos anos 80, a série de TV Anjos da Lei (21 Jump Street no original) fez grande sucesso e ajudou a alavancar a carreira de Johnny Depp. Indo pelo gênero policial dramático, a série mostrava jovens policiais infiltrados entre alunos de escolas secundárias. Eles investigavam crimes como tráfico de drogas e formação de gangues. Agora, chega aos cinemas o longa metragem que revive a antiga série. Contudo, diferente da versão da TV, a versão para o cinema é pura comédia.
 
Schmidt (Jonah Hill) e Jenko (Channing Tatum) foram colegas de colégio. O primeiro fazia o tipo nerd, sem vocação para os esportes. O segundo era o inverso, ruim de notas, mas bom atleta. Após o término da escola eles voltam a se encontrar na academia de polícia, onde tornam-se amigos. Finalmente nas ruas, acabam cometendo mais erros que acertos. Por terem uma aparência jovem, são convocados para o novo programa da polícia e terão de trabalhar disfarçados em uma escola secundária.

Mesmo sem um grande roteiro, o filme funciona por suas piadas e referências ao anacronismo que vivem os personagens. Parte da graça surge da inversão que o retorno deles à escola ocasiona. Assim, o nerd tem a chance de ser popular e o atleta descerebrado a chance de se tornar nerd. Entre essa troca de estereotipo, o filme carrega em referências que vão da série antiga a comédias recentes.

No desejo de fazer rir, algumas vezes o filme passa do ponto, oscilando entre o gosto duvidoso e o sem graça. Mas a dupla de atores, com destaque para o ótimo Jonah Hill, consegue reverter muitos desses excessos. Quem está no ponto é Ice Cube. Sua caracterização de capitão casca-grossa pavio curto é muito boa, mesmo quando apela para alguns clichês.

O Anjos da Lei do cinema passa longe da série de TV, exceto pelas claras referências e pela história. Para os fãs da velha série, o filme guarda algumas boas e divertidas surpresas. Para o público mais jovem, é mais uma comédia. Acerta na maioria das piadas e consegue fazer rir.
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21 Jump Street
Phil Lord e Chris Miller
EUA, 2012
109 min.

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