Um
registro de família convertido em uma viagem cheia de vida, liberdade e
consequência. Em Uma Longa Viagem, a diretora Lúcia Murat desencava
sentimentos de memória dolorida para compor um documento intenso e humano sobre
o tempo, a aventura e as sobras de tudo que somos nós.
São
três os personagens dessa história, mas apenas um é vivamente representado. É
dele que emana uma vivência única, tresloucada, libertária. Mas que também o
obriga a trazer na algibeira dessas experiências um amargo reflexo das drogas
de sua imensa liberdade: a esquizofrenia.
Lúcia,
Heitor e Miguel são três irmãos que seguiram caminhos diferentes na vida.
Miguel se formou em medicina. Lucia, por envolvimento com militantes de
esquerda nos anos da ditadura brasileira, acabou presa e torturada nos porões
da vergonha de nossa história. Já Heitor, viajou o mundo, provou todas as
drogas e regressou esquizofrênico.
É
a partir de cartas escritas por Heitor durante suas viagens, recordações
afetivas e a memória do próprio sofrimento de Lúcia, que o documentário resgata
um tempo e as ocorrências que marcaram toda família. Com inventividade e
recursos cênicos simples, o filme nos insere na loucura de Heitor, em suas
viagens pelo mundo e pelas drogas. Para pontuar a liberdade extremada de Heitor,
temos o depoimento franco de Lúcia sobre sua penúria na prisão.
Do
particular para o geral, e como a diretora, ao transpor para um documentário
sua própria história e a de sua família, revive um período da história. Um
tempo em que sonhos e pesadelos tinham aqui e no mundo pesos distintos. Tudo
parecia possível, e ao mesmo tempo, não. Entre nossa ditadura e a liberdade
propalada por uma juventude ansiosa por mudanças – aqui e lá fora –, uma
sintonia de ideais que destoava apenas nas consequências. Lúcia na prisão e
Heitor pelo mundo representam a disparidade do possível de então.
Na
construção deste quase díptico – uma vez que a figura do terceiro irmão, Miguel,
tem pouca ação neste relato, ainda que ele talvez represente o meio; o
equilíbrio que por si só, pelo tempo em que aceitou ser meio, aceitou também a
mediocridade da temperança em tempo de urgência e clamor – Murat utiliza da
criatividade para recompor o que não tem registro além de cartas. Para personificar
um Heitor atribulado de juventude, chamou Caio Blat.
Excelente
como costuma ser por ter sempre uma dedicação apaixonada pelo trabalho de
atuar, Blat interpreta a vivacidade das palavras das cartas de Heitor. Interage
contra projeções de imagens, cenários teatrais e traduz com intensidade esse
personagem real. Alterna-se esta atuação iluminada com o próprio Heitor, dando
depoimentos que deixam transparecer as consequências de sua juventude
desmedida.
Habilidoso
em lidar com a narrativa, Uma Longa Viagem é um documentário estimulante,
que nos passa uma vivacidade incomum. Traduz um tempo e traz na melancolia de
suas heranças não um aprendizado ou lição, mas o resultado da longa viagem de
seus protagonistas. Por ser tão particular, humaniza. Por ser tão contextual
com uma época, ilumina-a por um registro diferente. Há pouca amargura em suas
linhas. É muito mais um testemunho e uma catarse da diretora. Ao compartilha-la
com o espectador, transforma-a também em nossa própria catarse.
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Uma Longa Viagem
Lúcia Murat
Brasil, 2011
95 min.
Trailer
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