O filme O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla tornou-se um mito. Sua estrutura anárquica, estética indecorosa (no melhor e mais libertário sentido do indecoroso); sua agressividade e ausência de ilusões, a acidez debochada e veemente... tantas são suas particularidades que fica difícil descrevê-lo. No momento em que surgiu e diante do despropósito de seu realizador – que jamais o ensaiou como grande obra, mas apenas um filme qualquer, para ser visto e esquecido em qualquer cinema poeira do centro de São Paulo – sua envergadura genial assombrou público e crítica. Hoje, mais de 40 anos depois, é cultuado pela cinefilia, tem forte reconhecimento internacional, tornou-se o símbolo mais bem acabado do chamado cinema da boca do lixo. Tornou-se manifesto e marco.
Antes de morrer, em 2004, Sganzerla deixou pronto um roteiro
para o que poderia ser uma continuação de sua obra-prima. Foi a partir desse
roteiro que a viúva de Rogério – e atriz-musa de seus filmes –, Helena Ignez,
realizou, em parceria com Ícaro Martins, Luz
nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha.
Menos uma continuação e muito mais um desdobramento
atualizado do filme original, Luz nas
Trevas traz Ney Matogrosso na pele do próprio bandido, 40 anos depois. Mas
como?, pode-se perguntar, uma vez que o bandido morre no final do filme de 68.
Na prisão, é o próprio Luz quem responde, referindo-se ao filme como um filme que
fizeram sobre ele. Está dada a chave e a permissividade para a construção de
uma obra plenamente metalinguística e cíclica, que tem pelo original uma
reverência permanente, mas guarda para si um bom pedaço de originalidade e
personalidade.
Vemos o “Sr. Luz” nas trevas da prisão. No discurso, a veemência
que Matogrosso despeja sob a encarnação desse bandido revoltado. Fora da
prisão, temos o filho do Luz, seguindo os passos do pai. Interpretado por André
Guerreiro Lopes, ele assume a alcunha de Tudo ou Nada, aterrorizando a noite
paulistana. Entre as mulheres que seduz, Djin Sganzerla – filha de Rogério e
Helena – o acompanha no conversível vermelho rumo à praia, numa reedição do que
Pablo Villaça, o Luz original de 1968, e Helena Ignez fizeram de forma
magistral no passado.
Luz nas Trevas é
um diálogo permanente com o filme de Sganzerla. Vai da referência à homenagem,
passando pela reedição atualizada de planos, sequências e diálogos. Na caotização
que preserva do original, insere enxertos de falas, sons, ruídos e as
indefectíveis sirenes que pontuam a cidade e o bandido. É desarranjado e
provocativo, mas não evita uma mimese muitas vezes diluída do que foi o filme
original. Por outro lado, traz sempre uma exuberância renovada, um fio
cortante, elétrico, disseminador de um cinema incorreto, caleidoscópico, aguçador.
Entre a continuidade e a reedição, Helena e Ícaro reconstituem
e preservam o espírito libertário do cinema de Sganzerla. Nesta tentativa
ousada, os deslizes, as irregularidades e a força oscilante que são problemas
pontuais do filme, acabam por se dispersar na fumaça inebriante de sua
conjunção carnal, intensa e exuberante, que se percebe nas intenções de sua
construção. Não é perfeito ou equânime, nem se pretende tal. Mas é visceral e
autêntico, e como tal, necessário e excitante.
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Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha
Helena Ignez e Ícaro Martins
Brasil, 2010
83 min.
Trailer
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