sábado, dezembro 06, 2014

O Homem Duplicado


É somente no instante final de sua insólita jornada que O Homem Duplicado entrega a chave de sua estrutura desconcertante. Um desfecho que faz do filme uma obra de efeito retroativo, que se remonta na memória logo após o último plano. Não se trata, porém, de uma resposta definitiva para as tantas incertezas que a narrativa alimenta. É muito mais a confirmação de uma perspectiva a partir da qual tudo se reconfigura.

Jake Gyllenhaal interpreta Adam, um pacato professor de história que um dia, ao ver um filme, nota que um figurante se parece muito com ele. Ao fazer uma pesquisa com o nome do ator, percebe que não se trata apenas de uma semelhança: eles são idênticos. Após uma estranha hesitação e usando caminhos improváveis, o encontro de ambos mostrará que a identicidade entre eles vai muito além do que a realidade permite como natural.

Baseando-se na obra homônima do escritor português José Saramago, o diretor canadense Denis Villeneuve dá a seu sexto filme a consistência do sonho e o tom do desconforto.  Longe, contudo, de se diluir no clichê de uma jornada onírica, faz da singularidade de seus personagens matéria para a construção de um incômodo crescente, quase exasperante.

Primeiro, porque a ação nunca toma o rumo do senso comum. A começar pelos personagens, elípticos no seu desenvolvimento e fragmentados nas suas atitudes. Segundo, porque cria uma atmosfera também desconfortável, com uma fotografia artificial e opressiva em tons sépia. O efeito é disruptivo. Se, por um lado, nos mantêm desconectados do protagonista, sem gerar empatia ou identificação, por outro, a trama insólita nos prende pela curiosidade, pelo que há de intrigante nos seus desdobramentos. Prende como em uma teia de aranha.

Não por acaso, a figura do aracnídeo desempenha um papel enigmático, sendo representado em diversos momentos. Inicialmente, em uma cena fetichista, dentro do contexto de erotização que permeia o filme, depois, em diversas referências subjetivas. Sua representação é ao mesmo tempo uma linha condutora e um limiar da realidade, que no final se transforma em uma ressignificação imprecisa e fantástica, mas ao mesmo tempo definitiva.

É esta a chave que abre novas possibilidades e nos leva ao retrospecto da trama. Ao fazê-lo, nos empurra a vivenciar, de certa forma, a experiência de seu personagem, que terá no cíclico e na repetição um fator determinante dentro do tipo de aprisionamento que experimenta. Porque é de aprisionamento, em amplo aspecto, que trata O Homem Duplicado.

Mais importante do que compreender com exatidão a jornada de personagens improváveis e o cruzamento de suas personas, é entender que o que se dá na tela acontece em um nível de realidade que não necessariamente se enquadra no real. Isto se nota já nas reações de Adam diante da descoberta de seu suposto duplo. A hesitação e a insegurança de suas ações colocam seu desconcerto em um patamar de interioridade, sobre o qual está parte das relações de causa e efeito que o filme propõe.

Toda esta construção que a direção de Villeneuve e a ótima atuação de Gyllenhaal desempenham se aproximam com sucesso do universo recorrente na obra de Saramago, que o filme absorve, filtra e trata com satisfatória dignidade.

O Homem Duplicado se calca, sobretudo, no desconforto, mas seu grande achado está no efeito cíclico. A repetição como forma de controle, abordada durante uma aula de história, mostra-se um tipo de aprisionamento, uma teia envolvente e inescapável. A duplicação de que trata seu título e que sua trama constrói dentro do insólito seria uma fuga possível, uma troca ou inversão que poderia funcionar como escape. Mas seu final é contundente na representação da impossibilidade dessa fuga.
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Enemy
Denis Villeneuve
Canadá/Espanha, 2013
90 min.

Trailer

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