Atravessar as duas horas e meia de A Humanidade, filme de 1999 do diretor francês Bruno Dumont, é um
exercício de paciência que muitas vezes se aproxima da exasperação. Isso porque,
aos poucos, vai crescendo um desejo de que acabe logo aquele arrasto narrativo
em que quase nada acontece.
Contudo, ao mesmo tempo, há no filme um modo peculiar de
absorver a atenção e enreda-la na trama que faz com que a impaciência seja
esquecida constantemente, para voltar logo adiante. No fim, fica a impressão de
que A Humanidade não é um filme ruim,
nem mesmo prolixo. É antes um grande enigma que nos observa tanto quanto o
vamos observando.
Com sua escassez de diálogos, o filme vai delineando seus
personagens com uma vitalidade melancólica intensa que só pode ser construída
pela lentidão com que o filme os atravessa. Na dificuldade de comunicação que marca
suas relações, há um sentimento atravessado que não encontra voz nas palavras, mas
apenas em gestos imprecisos e nos olhares distantes.
Assim, o inspetor de polícia Pharaon de Winter (Emmanuel
Schotté em desconcertante atuação) lança frequentemente seu olhar distante para
as coisas, como se cada uma delas o afetasse intensamente em dor e solidão. É
quase um mesmo olhar desesperançado que lança a partir da vista do jardim que
cuida, ou para o mar, ou ao tomar o café da manhã ou ao observar sua vizinha
Domino (Séverine Caneele) fazendo sexo com o namorado desagradável.
Este é um olhar que nasce para o filme quando vemos, logo no
início, Pharaon cair na lama, atônito, depois de ver o corpo de uma menina de
11 anos, morta e violentada. O close que o filme dá na vagina dilacerada da
vítima retrata o choque que não se diluirá ao longo do filme, durante a
investigação do crime.
Será esta investigação o fio condutor para imersão na vida
desse personagem cuja humanidade do título estará representada em uma candura
que o desloca da realidade para um mundo quase próprio por trás de seus olhos.
Ele mesmo vítima de uma tragédia há dois anos e que revela seu apego pela
vizinha operária e suporta seu desconforto com o namorado dela ao aceitar
sempre em sair na companhia dos dois.
Na construção de uma peça que revela a incomunicabilidade de
personagens que trazem uma latência de desejo e uma clara insuficiência
afetiva, Dumont cria um universo quase paralelo, de borda da realidade. Um
universo bucólico de pequena cidade em que ambienta uma trama espargida nos
silêncios, nas paisagens e na rua onde moram seus dois personagens principais.
Como se houvesse um filme dentro do filme, a trama policial
de investigação do crime se dilui na quase ausência de trama que embaraça a
vida desses personagens, fazendo deles o foco de uma longa observação que
revela aos poucos sentimentos imperfeitos.
A Humanidade não é
filme de roteiro. É antes um filme-exercício no qual a figura de Pharaon nos
remete a um estado entre a dor e a pureza do homem. Ele e sua intimidade
periférica são o objeto de uma contemplação ante a própria contemplação que o
filme incorpora o tempo todo.
Na longa travessia, o
resultado ao fim não serve de recompensa aos que buscam respostas claras.
Dumnot não está interessado em explicar, embora não use de artifícios para
confundir.
Sua narrativa de arrasto apenas nos conduz para um mundo
quieto em que a banalidade pode ascender ao terrível e o terrível se mostrar dentro
da banalidade. Entre um paradoxo e outro resta o sentimento de incompreensão e
algo como um gesto de sacrifico por amor puro e desapego supremo. Como uma
imensa humanidade ausente do mundo e do homem.
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L'humanité
Bruno Dumont
França, 1999
148 min.
Trailer
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