Um homem sem teto e sem nome que vive num descampado entre o
mar e um pequeno vilarejo. Sua única companhia é uma jovem que mora ali perto e
sofre abusos do padrasto. Para livrá-la do sofrimento, ele mata o padrasto.
Pois é a partir da relação entre a jovem e o homem que o
diretor francês Bruno Dumont desenvolve uma obra que dispensa respostas na
mesma medida que dispensa perguntas.
Em Fora de Satã, enigma
e mistério formam o elemento que sustém a narrativa para que esta se debruce
sobre o mal e sua ambiguidade humana ou, possivelmente, divina.
Assim, o sem teto que vive ao relento e que reza com
frequência pode tanto ser anjo ou demônio.
Se anjo, sua existência na terra passa longe da figura de
pureza e bem-aventurança, como se ao rastejarem no mesmo patamar humano, aos anjos
também se aderisse a sujeira e a vilania.
Por outro lado, se demônio, a inversão se torna igual, e
certa beatitude e bondade protetora despem-no do estereotipo maligno. Por trás
de sua violência e crueldade estaria a intenção de proteger alguém mais frágil.
Entretanto, por mais que estimule a curiosidade, a indefinida
natureza desse personagem pode não ser o que realmente importa. Talvez caiba
mais atenção em seu estado de errância ou exílio, como uma maldição inescapável,
e a relação entrelaçada que o filme constrói entre seus personagens e o
ambiente que os cerca.
Dumont trabalha seus planos longos de forma a diminuir seus
personagens diante da paisagem. Entre engolidos por ela e resistentes a ela, eles
parecem prisioneiros daquilo que os cerca e da solidão que isso traz. Contudo, também
se misturam à paisagem, na mesma medida em que ela talvez se misture a eles.
Não por acaso, o diretor exibe um perfeito apuro na
construção dessa paisagem, na qual há uma dose quase irreal em sua constituição
– que mistura o ermo, o litorâneo, o campo e o vilarinho – se somando ao
mistério sobrenatural que também pontua a trama. Se tomarmos a paisagem como o
mundo, não importa se aquele homem com atributos estranhos é anjo ou demônio, o
fato é que uma vez no mundo ele se torna parte dele, para o bem e para o mal,
indistintamente.
Morte, violência, exorcismo e ressurreição fazem parte dos
aparentes atributos desse errante. Sua indefinição é proposta e provocação do
filme, que trabalha elementos de um terror fora de esquadro, desfocado entre o
religioso e o pagão, em que o medo está presente em camadas muito finas que
apenas em alguns momentos ganham corpo.
Fora de Satã
termina por ser um filme simbólico sem símbolos. Uma disparidade provocativa
talhada com precisão e apuro de ritmo em cada cena, em cada enquadramento
montado e persistente na duração certa para nos absorver e envolver sem que
percebamos. Um trabalho de quem domina cena e narrativa sem precisar de muletas
como diálogos e explicações.
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Hors Satan
Bruno Dumont
França, 2011
110 min.
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