quarta-feira, julho 03, 2013

A Bela que Dorme








Em fevereiro de 2009, na Itália, morreu Eluana Englaro. Antes, por 17 anos, ela permaneceu em estado vegetativo, consequência de um acidente de carro. Sua morte foi induzida após anos de batalhas judiciais, nas quais seu pai tentava obter na justiça o direito de deixar sua filha morrer.

O caso mobilizou todo o país, com protestos contra e a favor da eutanásia. Chegou a causar uma crise institucional no governo, polarizando o então premiê Sílvio Berlusconi (contrário à medida) e o então presidente Giorgio Napolitano (favorável). No parlamento, um projeto de lei foi colocado às pressas para ser votado na tentativa de barrar a decisão judicial que permitiu a Eluana morrer.

É em meio a toda atribulação política e dogmática dos dias que antecederam o fim do estado vegetativo da jovem que o diretor Marco Bellocchio trama uma série de histórias que envolvem o direito à vida e o direito à morte, com toda polêmica que o assunto levanta.

Como é comum em sua obra, o diretor de 73 anos “ficcionaliza” a partir da realidade para trazer à discussão temas ligados à política e à história da Itália. Foi assim em Bom Dia, Noite (2003), sobre o sequestro político de Aldo Moro pelo grupo de extrema esquerda “Brigada Vermelha” em 1978. Foi também assim em Vincere (2009), sobre a vida de Ida Dalser, amante de Mussolini na juventude e que teria dado à luz a um filho bastardo do Duce.

Em A Bela que Dorme, o fato real serve de eixo para histórias que orbitam o tema da morte como opção. Um senador instado a votar com o partido, mas em dúvida moral com seu voto. Sua filha, contrária à eutanásia, que se apaixona por um sujeito que está preso ao dever de cuidar do irmão problemático. Uma família cuja mãe católica abdica totalmente da brilhante carreira para cuidar da filha, que também vegeta presa a um respirador artificial. Um médico que se depara com uma usuária de drogas decidida a cometer suicídio.

Bellocchio apresenta todas essas histórias em um tiroteio de personagens que só aos poucos vão tomando forma. Sua construção fragmentária, confusa no início, serve como grifo à complexidade da questão. Mas também funciona para ampliar o drama que envolve cada personagem.

Á medida que cada drama ganha seu matiz único e ficam claros seus contornos, vai-se aos poucos ganhando uma dimensão do todo. Nesta construção inteligente, o diretor nos confronta com diversas vertentes de um problema sem que saibamos de antemão do que cada vertente trata. Assim, evita a instauração antecipada de nossos próprios preconceitos, nos levando a tomar contato com cada situação livres de nossas amarras dogmáticas.

A tensão dessa construção fica por conta de seu eixo, que é o caso Eluana, onipresente na trama pelos registros reais de rádio e TV da época. Tensão que cresce, operística de certa forma, pelo sentimento de tempo que se esgota. Este efeito, o diretor cria ao adotar uma contagem regressiva de dias para o desenrolar das histórias. Dias que faltam para Eluana morrer.

Nos desdobramentos, Bellocchio não esconde sua posição diante dos fatos, mas tampouco a impõe de forma manipuladora. Prefere retratar diversos aspectos da questão, assim como expor o radicalismo dogmático que divide opiniões em trincheiras agressivas. Mas para suplantar o discurso rasteiro das partes, apresenta desenlaces que vão além do óbvio. Revela os pequenos dramas por trás do grande drama; os debates privados, íntimos, diante do grande debate.

Essa aproximação, através de personagens que estão, de uma forma ou de outra, absorvidos pelo caso Eluana, permite um olhar menos dogmático para a questão, apresentando perspectivas bem menos maniqueístas. Amplia, por exemplo, os reflexos e as consequências na vida das pessoas próximas, muitas vezes sugadas completamente pela situação, e cujas vidas, em sua continuidade, também deve ser considerada.

De forma sutil, Bellocchio tangencia seu posicionamento sem articular manobras de persuasão. Como, por exemplo, no contraste que cria em frente à clínica onde estava internada Eluana, dos grupos de manifestantes contra e a favor numa batalha de ódio, e depois a oposto disso na paz posterior que o quadro revela.

Quase em paralelo, o filme toca no desespero pela morte de uma suicida determinada e na obstinada vontade de um médico em não deixá-la morrer. Nasce disso uma relação que mostra o médico, assim como a ciência, mais interessado em salvar quem pode ser salvo, e deixar que descanse em paz quem já não pode.
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Bella Addormentata
Marco Bellocchio
Itália/França, 2012
115 min.

Trailer

1 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o post,
me deu até vontade de ver o filme
(apesar de odiar filmes políticos)
:D

 

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