Mais do que fonte de prazer carnal, o corpo da
mulher pode ser um templo de veneração e devoção. Em parte, é sobre este
princípio que se constrói o erotismo poético do clássico da literatura japonesa
A Casa das Belas Adormecidas, de
Yasunari Kawabata, publicado em 1961. E é o mesmo princípio que está implícito
na afirmação de que a vagina é um templo, feita no filme Beleza Adormecida, que estreia nesta sexta-feira (30).
No livro de Kawabata, senhores ricos e poderosos pagavam
pequenas fortunas para passar a noite ao lado de jovens adormecidas nuas. Com
as jovens virgens dormindo profundamente sob o efeito de narcóticos, eles
podiam tocá-las, mas nunca penetrá-las. É dessa mesma forma que as coisas se
dão no filme de estreia da escritora australiana Julia Leigh.
Leigh bebe na fonte do livro de Kawabata, mas inverte o foco
narrativo. Se no livro japonês a história é vista sob a perspectiva de um sexagenário
frequentador da casa, em Beleza
Adormecida acompanhamos o dia-a-dia de Lucy (Emily Browning, de Sucker Punch), uma das garotas
adormecidas. Em ambas histórias, a tristeza e o vazio existencial é explorado
sob a pincelada da beleza poética da nudez e a fragilidade do sono – e toda uma
gama de onirismos derivados dessa combinação.
Lucy é uma estudante universitária que se equilibra em dois
empregos, além da prostituição, para pagar suas contas. Solitária, sua única
relação afetiva é com um misterioso sujeito, aparentemente depressivo e
carente, que ela visita regularmente. Um dia ela responde a um anúncio de
jornal para um trabalho inusitado. Na entrevista, descobre que tudo que terá de
fazer é servir à mesa em jantares privados vestindo somente lingerie. Contudo, logo
será cooptada para atuar como bela adormecida, trabalho que aceitará por estar
precisando de dinheiro.
Em sua composição, Beleza
Adormecida quer ser algo provocativo, fazendo de sua narrativa uma
experiência de beleza triste, de vazio existencial. No seu desejo de ser cult, o filme deixa, propositalmente,
grandes lacunas na construção da protagonista e de suas relações pessoais. Não
entrega sua história, apenas dá algumas pistas. O recurso é sempre válido na
construção elíptica de personagens desajustados e misteriosos, mas aqui peca
pelo excesso.
As lacunas prejudicam muito o filme, não apenas por anular
qualquer empatia com a personagem, mas também por transformá-la em algo
indefinido, sem muita substância. Esta pretensão de mistério e enigma que o
filme carrega na sua estilística acaba se transformando numa armadilha para ele
mesmo. A má dosagem desses recursos, a omissão de dados que poderiam ao menos
serem melhor insinuados, esteriliza grande parte da trama e de sua
protagonista.
Resta ao filme a beleza de suas imagens. Sua direção de arte
é equilibrada, tem apuro, e sua composição chega muito próximo de um efeito contemplativo
perturbador. Porém, ao se perder nas elipses estilísticas do roteiro, o filme torna-se
o vazio de si mesmo. É como deveriam ser os personagens e seus sentimentos, não
a narrativa. Fica-se a impressão de um exercício desconexo, desatrelado de
qualquer possibilidade insinuada, redundante na sua concepção visual como um
fim em si mesmo.
No campo das experimentações cinematográficas, muito já se
produziu em autobiografias filmadas. Nenhuma, contudo, com a consistência e
reflexão da obra de David Perlov. Em Diário
1973 - 1983, sua obra máxima, o diretor afirma logo no início: “O cinema profissional
não me interessa mais”. Inicia-se ali uma jornada, um recomeço a partir do
meio. Ao encerrá-la, 10 anos depois, Perlov teria reconfigurando grande parte da
estrutura do cinema documentário.
Se na literatura o gênero da autobiografia sempre foi algo simples
de entender e construir – deixando de lado, claro, questões sobre ego, verdade
e parcialidade –, no cinema o gênero é, por excelência, estruturalmente
problemático. Mais do que a subjetivação ou objetivação da lente de uma câmera,
os efeitos de real podem ser atenuados ou intensificados na edição.
Manipulados, por assim dizer.
Claro que na literatura também existe tal recurso. Mas
quando ele se aplica a questões imagéticas, sabemos, desde as experiências de
Kuleshov, o quanto seu efeito pode ser sugestionante. A realidade, nesse caso, se subverte, se
modifica e nos ilude. Perlov – filho de um ilusionista – talvez não fuja desse
poder da edição. Mas ao invés de usá-lo como ilusão, prefere sintetizar sua
sensibilidade poética, sua visão de cinema e sua busca pela memória do
presente. Renega, portanto, desde o início, qualquer artificialismo, qualquer
truque, apesar de gostar deles, como admite.
Ruptura
Diário 1973 – 1783
é o ponto de partida de uma ruptura. De uma busca por algo diferente, que o
próprio Perlov não sabe o que é. Algo que se pretende construir com o tempo,
experimentando limites, de câmera em punho, através da janela de um apartamento
ou voltando-se para dentro do próprio apartamento. Inaugura ali o enquadramento
da vida íntima, mas logo a inserirá no contexto da vida política do país. Em
seu tatear por uma forma de cinema que intui, não planeja, descobre rápido o
quanto o íntimo pode dizer sobre o público.
O experimento, que se torna projeto, que se torna
obra-prima. Frustrado com a frequente recusa de seus projetos de cinema por
parte do governo israelense, Perlov compra uma câmera. Gesto mínimo para um
diretor de filmes. No início de Diário
1973-1983, suas primeiras palavras encerram com precisão tudo que se
precisa saber sobre o filme: “Maio de 1973. Eu compro uma câmera 16 mm. Eu
começo a filmar por mim mesmo e para mim mesmo. O cinema profissional não me
interessa mais. Eu filmo dia após dia à procura de alguma coisa. Eu procuro,
antes de tudo, o anonimato. É preciso tempo para aprender a fazê-lo”.
Dez anos depois, quando finaliza o projeto, talvez ainda
esteja aprendendo. Sua hesitação diminui, mas nunca termina. Seu filme tem seis
capítulos e um total de cinco horas e meia. O capítulo 1 engloba cinco anos; o
capítulo seis, três meses. O tempo se distende e contrai ao longo de Diário 1973-1983, ganha conotações de
memória, tem sempre algo de melancolia, mas sem o ranço do piegas. Perlov
resgata a si mesmo do presente, a memória não é uma corrente que o aprisiona, é
apenas mais uma janela através da qual observa. Há, claro, sentimento. Mas o
sentimento transporta reflexão, entendimento e pacificação.
Enquadramentos
Todo enquadramento é uma janela, um recorte. Perlov busca
refletir sobre isso filmando outras janelas, outros recortes. É a realidade do
possível, dentro da subtração natural que implica todo enquadramento. Uma
realidade própria, íntima, e por isso mesmo muito mais verdadeira e profunda. E
ela está na janela de um apartamento, na janela de um trem que o leva a Paris (ou
a Belo Horizonte), na janela de uma TV ligada. As verdades e memórias de Perlov
perpassam seu cotidiano íntimo, o cotidiano casual da rua no anonimato dos
passantes, a memória cotidiana, que faz Paris-Belo Horizonte uma simples e
metafísica viagem de trem, ou no factual noticioso da vida do país na TV.
Diário 1973-1983
constrói essa realidade sem pretensões programáticas, ideológicas ou estéticas
pré-concebidas. Sua estética primeira é a vida, as pessoas, o presente. Rejeita
com veemência o cinema de conformação de Israel. Ressalta que não quer filmar
ideias, quer filmar pessoas.
Nesse propósito e afinco, não deixa nunca de dar a dimensão
histórica de seu filme e de seu tempo. Desde a Guerra do Yom Kippur, que eclode
no início do primeiro capítulo, até a guerra com a Líbia a dimensão política
nunca diminui. Mas Perlov não a abstrai ou dilui dentro de um macro universo de
acontecimentos nacionais. Ela a humaniza, ele a personifica no rosto do
manifestante da rua.
Reintera sua concepção de cinema e vida ao filmar a TV que
filma a guerra. Diz que é a primeira vez que os pais podem ver seus filhos na
guerra. Agora há os rostos dos soldados no campo de batalho, transmitidos ao
vivo, diretamente para seus pais que os veem em casa.
Dez Anos
Dez anos de imagens condensadas em cinco horas e meia. O que
poderia facilmente enveredar pela monotonia, redundância ou irrelevância, se
torna um monumento poético, crítico e de uma substância gigantesca. Em tudo, o
que mais salta aos olhos e ao sentimento é a sensibilidade de Perlov, sua
capacidade de capturar o que a vida tem de dignificante na simplicidade e o que
tem de fundamental no registro histórico. Seu paralelo público/privado se
desconstrói e se cruza, se engalfinha com a vida e com sua verdade de beleza,
tristeza, saudade, dor, revolta, indignação, esperança, crescimento e memória.
Nunca é piegas, nunca é dissimulada. É vida, todo o tempo.
Passar pelas mais de cinco horas de Diário 1973-1983 não é uma simples travessia. É adentrar na
experiência da memória e do afetivo. É transpor-se para além de um paradigma
autobiográfico e encontrar uma nova forma e uma nova realidade. Não se trata de
simples revolução, mas uma nova percepção. Uma janela aberta, pela qual olhamos
para descobrir outras janelas. Janelas que nos levam a recortes do real,
capazes de afetar nossa compreensão e nosso sentimento do mundo e da vida.
“É como nos anos 60, mas com menos esperança”, diz Justin
Bond diante da sala repleta de pessoas fazendo sexo em todas as combinações
possíveis. Há nesta frase um toque de melancolia. Não em relação ao sexo e ao
prazer que se busca naquela sala, mas em relação a ter de buscá-lo tão
secretamente. Se nos anos 60 o sexo livre tinha algo de libertário e até de
ingenuidade, nos anos 2000 ele pode ser um refúgio da contraliberdade dos
tempos vigiados, sem ideais de mudar o mundo, mas com a simples proposta de se
sentir livre de verdade.
Isso porque há algo de aprisionamento nos distintos sentimentos
que ligam os personagens desta história. Em uma Nova York moderna, pessoas
buscam a satisfação que as liberte, mas muitas vezes não sabem onde está a
saída para esta liberdade. É essa angústia velada que as levarão a se
encontrarem no Shortbus, um lugar no qual nada é censurado, desde que realizado
com afeto e sinceridade.
Sofia (Sook-Yin Lee) é uma terapeuta sexual casada com Rob
(Raphael Barker), um sujeito pacífico e sintonizado com o modo de vida zen da
esposa. Mas Sofia tem um problema que a atormenta. Ela não consegue ter
orgasmos. Nunca. E teme dizer isso ao marido com receio de ferir seus
sentimentos.
Noutro ponto da cidade, James (Paul Dawson) e Jamie (PJ DeBoy)
são, aparentemente, um harmonioso casal gay. Mas James, fechado e melancólico, parece
esconder algo de seu parceiro enquanto faz um filme amador. Além disso, sem que
nenhum dos dois saiba, um vizinho do prédio ao lado tem vigiado e fotografado a
rotina dos dois.
Há ainda a dominatrix Severin (Lindsay Beamish), que atende
clientes ávidos por serem subjugados, espancados e humilhados. Ela, no entanto,
sente dificuldade em se relacionar com pessoas e sua satisfação sexual só
ocorre de forma solitária.
No cruzamento das histórias, que terão no Shostbus seu ponto
em comum e a subsequente irradiação e desdobramento, pode-se prever um filme
esquemático de desfecho óbvio. E embora parte dessa previsão se confirme, o
modo como o diretor John Cameron Mitchell (do ótimo Reencontrando a Felicidade) conduz sua narrativa passa ao largo do
esquemático. Sua fluidez até começa travada, como são seus personagens, mas
logo o filme desliza suavemente, nos proporcionando delicados momentos de catarses
íntimas.
O diretor não evita alguns maneirismos de iluminação para
enfatizar a beleza das descobertas pessoais que os personagens terão, bem como
a dureza dessas descobertas. Mas o faz de forma suficientemente discreta para
não atrapalhar esses momentos de revelações e sentimentos. Em meio a crises
existenciais, sentimentais e sexuais, Shortbus
ainda encontra espaço para aquele tipo de humor hesitante, quando o riso se
mistura a um sentimento de compaixão e estranheza, um tempero que dá ao filme o
sentimento da vida real.
Mesmo que seus dramas sejam dramas superficiais travestidos
de algo mais profundo e que muitas respostas para esses dramas sejam simples e
óbvias, o filme consegue criar uma atmosfera que une perturbação e
sensibilidade. Seus personagens são carismáticos, conectados com o público, de
fácil entendimento e empatia. E isso é algo difícil de se conseguir com
histórias e sexualidades tão diferentes para os padrões caretas do nosso tempo.
Com ares de fábula sexual em alguns momentos, Shortbus encontra nas suas entrelinhas
questões pertinentes para uma discussão aberta sobre sexualidade e liberdade
sexual. Mas não se coloca como provocador – apesar das muitas cenas com
genitálias no quadro, o que pode ser sempre polêmico para os mais intolerantes.
Sua vocação é a da descoberta delicada, do despimento da hipocrisia e aceitação
de si mesmo e de seu prazer. Nesta composição, alcança momentos de grande
beleza e sentimento na construção de um clima cheio de suavidade e cumplicidade.
Se há menos esperança no desafogo da liberação dos
frequentadores do Shortbus, também há menos ingenuidade. É o que revelam as
palavras de um personagem ao afirmar que antes queria mudar o mundo, agora quer
apenas sair dele com alguma dignidade. Esta dignidade talvez não diga respeito
a como os outros nos veem, mas como nos sentimos sobre nós mesmos.
Em
seu romance Estorvo, Chico Buarque se
sai com essa: “E eu me pergunto, quando ela sobe a escada, se não é um corpo
assim dissimulado que as mãos têm maior desejo de tocar, não para encontrar a
carne, mas sonhando apalpar o próprio movimento". A abstração que Chico
cunhou com as palavras não está distante da abstração que o diretor alemão Wim
Wenders cunhou com as imagens tridimensionais de Pina, filme que estreia nesta sexta-feira (23).
Diferente
do que ocorre com boa parte dos filmes em 3D – cujo efeito pouco ou nada
acrescenta à narrativa e à experiência do filme – em Pina ele faz toda diferença. É a delicada conjunção entre efeito
tridimensional e dança que possibilita ao público uma experiência
sensitiva. Uma inusitada e sensorial oportunidade de “apalpar” os movimentos
concebidos pela coreógrafa alemã Pina Bausch, a quem o filme homenageia.
Falecida
em 2009, aos 68 anos, Pina foi por 36 anos diretora artística do Teatro de
Dança de Wuppertal, uma próspera cidade no interior da Alemanha. Nos anos 70,
Pina Bausch rompeu alguns paradigmas da dança ao incorporar elementos de teatro
a suas coreografias. Desde então, se tornou uma das mais reverenciadas coreógrafas
do mundo.
Fugindo
de qualquer didatismo biográfico, o documentário de Wenders prefere falar de
sentimentos e dança. Ao fazê-lo, usa o idioma de sua homenageada, cuja gramática
está no corpo e no movimento, não nas palavras. Assim, o filme alterna breves
depoimentos dos bailarinos de sua companhia com trechos de apresentações em
teatros, ao ar livre e pela muitas vezes insólita cidade de Wuppertal. O que se
vê são imagens belíssimas, cuja riqueza dos movimentos e das cores são amplificados pelo efeito 3D.
Como
uma declaração de amor do diretor para a coreógrafa, o filme expressa os
diversos sentimentos humanos através da dança, exaltando o brilhantismo e
sensibilidade de Pina em conceber suas coreografias. Mesmo nos momentos de palavras,
quando ouvimos os breves depoimentos dos bailarinos, há uma forte imagem que se
constrói dessa sucessão de falas. A imagem da diversidade, do universal da
dança, traçada pelos múltiplos idiomas, pelas diversas etnias presentes no
corpo da companhia de dança desenhada por Pina.
Com
uma rara riqueza no uso da imagem e graças à aplicação inteligente do efeito
3D, em Pina não estão apenas as imagens,
as cores e os movimentos concebidos pela coreógrafa. Mas também muito de sua
textura e densidade, tão intensas, que é como se pudéssemos apalpá-las.
Ao final da sessão para imprensa de Anderson Silva: Como Água, alguém disse: “Entrei sem saber nada
dele e saio do mesmo jeito”. Neste documentário sobre o lutador brasileiro, a
falta de dados biográficos talvez seja a “guarda baixa” que mais chama atenção.
Mas quem conhece o histórico de lutas de Anderson Silva sabe que guarda baixa
não é um problema para ele, que gosta de baixá-la e exibir sua ágil esquiva. Como Água não se sai tão bem quanto seu
personagem, mas dá conta do recado por outras vias.
Para quem não sabe, Anderson Silva é campeão dos pesos
médios do UFC (Ultimate Fighting Championship), a entidade mais bem sucedida da
história na organização de eventos com lutas de MMA (Mixed Martial Artes).
Dentre todos os contratados do UFC, Silva é um dos que mais se destaca. Ele vem
ganhando aura de lendário por deter o título de campeão desde 2006 e por já
tê-lo defendido em nove ocasiões, todas com vitória; algumas delas
espetaculares; outras, polêmicas.
No documentário dirigido pelo estreante Pablo Croce, a falta
de um aprofundamento na história e personalidade de Anderson Silva pode
decepcionar alguns. Mas Como Água tem
uma proposta clara e específica. Trata-se do registro da preparação de Silva
para uma luta que se tornaria histórica, contra o americano Chael Sonnen, que
aconteceu em agosto de 2010. Não por acaso, o documentário chega às telas
poucos meses antes da revanche entre os mesmos lutadores, que deve ocorrer em
junho deste ano aqui no Brasil.
Caça-níquel ou não, o filme tem ingredientes para fazer a alegria dos fãs do MMA. E mesmo quem pouco conhece desse universo pode
sair da sessão surpreso pelo quanto de cinematográfico houve no desenrolar dos
fatos. A começar pela polêmica luta anterior de Anderson Silva que abre o
documentário. Por apresentar uma postura desdenhosa em relação a seu oponente,
Damian Maia, e por sua atitude pouca combativa, Silva foi duramente criticado
pela imprensa. Mas seu maior crítico foi Dana White, o poderoso presidente do
UFC, que ameaçou cortá-lo da entidade caso perdesse a próxima luta.
A outra polêmica surgiu justamente de seu próximo adversário:
Chael Sonnen. O americano passou a disparar ofensas e provocações contra
Anderson Silva, criando um forte clima de animosidade. É com um apanhado desses
fatores, mais os bastidores da dura rotina de preparação do atleta para a luta,
que se constrói o documentário. E é justamente por ser um “apanhado” que o
resultado é bastante irregular.
O filme abre com algum impacto e emoção. Nos introduz de
imediato ao fenômeno Anderson Silva logo após uma citação na figura de Bruce
Lee, que justifica o título Como Água.
Segundo o mítico lutador de Kung Fu, um praticante de artes marciais deve ser
como a água, sem forma rígida e adaptável a qualquer situação. Começando com
alta voltagem, mostrando nocautes e golpes de Silva. Depois, passa à polêmica,
em seguida à preparação propriamente dita. Então começa a cair.
Na verdade, a irregularidade de Como Água é bastante regular. Isso porque o filme vai
gradativamente caindo no quesito interesse à medida que vão se inserindo
sequências que não acrescentam nada à narrativa e, possivelmente, estão ali
para dar estofo à duração do filme (que tem apenas 76 minutos), evitando que
saísse como um média-metragem.
O desinteresse que resulta desse miolo do filme é justamente
fruto de uma não abordagem mais próxima da figura de Anderson Silva. Uma opção
que poderia dar uma interessante perspectiva à narrativa. Ao invés disso,
seguem-se rodeios que não levam a nada, passagens que chegam ao ponto da
desconexão com o todo do filme. Chegando ao meio, o filme está em baixa, mas
então começa novamente a se erguer ao voltar-se para a luta, para o desafio
iminente.
Mesmo que o resultado final seja conhecido, a forma como os
fatos se deram garantem emoção e têm, sem dúvida, traços de roteiro de cinema.
A luta entre Sonnen e Silva torna-se histórica e sua dramaticidade é bem
aproveitada pela montagem que culmina com o combate. Neste ponto, Como Água empolga e surpreende.
Para os opositores dessa modalidade de luta, o filme será
visto apenas como um pastiche sobre a barbárie dessa competição. Para fãs – ou
mesmo expectadores esporádicos – o filme poderá despertar emoções e mostrar
como a vida real pode parecer cinema. Nada disso oculta seu oportunismo de
momento, nascido da revanche entre os dois oponentes. E também como mais um esforço
para ampliar mitificação em torno de Anderson Silva, que cada vez mais
extrapola o octógono do MMA para se tornar uma celebridade e um fenômeno
midiático.
Não falta material para polêmica em Shame, novo filme do diretor britânico Steve McQueen (que,
registre-se, não tem nada a ver com seu homônimo, o ator norte-americano
falecido em 1980). O McQueen de quem falamos fez sua estreia como
diretor em 2008 com Hunger, um filme
que dividiu a crítica e gerou polêmicas. De forma crua e escatológica, o filme
retratava a greve de fome que Bobby Sands, ativista do IRA (Exército
Republicano Irlandês), realizou nos anos 80 em protesto contra o governo da
primeira ministra britânica Margaret Thatcher.
No sentido visual, Shame
não causa o mesmo impacto de repulsa que Hunger.
Por outro lado, o drama de seus personagens é suficientemente intenso para nos
fazer sair do cinema atingidos pela força das imagens e dos desdobramentos da
trama. Um efeito que deve à excelente atuação de Michael Fassbender (o Magneto
de X-Men: Primeira Classe) grande
parte de seu poder atordoante.
Já há algum tempo elogiado por seu talento como ator,
Fassbender interpreta aqui Brandon Sullivan, um executivo bem sucedido viciado em sexo. Sem conseguir conter seus impulsos sexuais, ele consome pornografia
diariamente, faz sexo com estranhos, masturba-se no trabalho e frequentemente
contrata prostitutas para satisfazer-se. Mas o que pode parecer um
filme orgiástico, repleto de cenas pornográficas, é na verdade uma trama que
trabalha também a sugestão, o implícito. Não que não tenha cenas de sexo e
nudez, mas a gravidade dos acontecimentos são construídos mais pelas lacunas de
sexo do que pelo explícito dos atos cometidos.
McQueen cria em seu filme um equilíbrio eficaz entre a
sordidez da rotina de um dependente de sexo - com sua contínua degradação - e a psicopatologia que o afeta de forma irreversível e penosa. Neste universo sombrio, o estopim da trama inicia-se com a
chegada da irmã de Brandon, interpretada por Carey Mulligan (de Drive). Ela é Sissy, uma cantora da
noite que está sem ter onde morar depois que terminou com o namorado. Sua
inadvertida aparição na vida de Brandon dá-se inicialmente como um pêndulo que
oscila entre o desconforto e a tensão, passando pelo carinho.
Como seu irmão, Sissy também apresenta desvios emocionais.
Mas os delas se revelam na carência afetiva e nas marcas de lâminas que traz
nos pulsos. Parte da intensidade do filme se dá pela relação
ambígua entre Sissy e Brandon, uma ambiguidade que surge de impacto
desde a primeira aparição dela na tela. Da frieza com que ele a trata à forma
como ele a olha, a premissa do incesto vagueia pela química entre ambos; nos
gestos de afeto dela e nos confrontos exasperados dele.
É a entrada da irmã na vida de Brandon que parece
desencadear uma perturbação maior em seu distúrbio emocional, levando-o
primeiro a uma busca afetiva concreta e depois a uma queda em espiral rumo ao
mais degradante em seu vício. É pungentemente triste perceber sua inaptidão
para as relações sociais afetivas, assim como seu invólucro superficial de
dependência, no qual o prazer imediato parece ser a única forma de escape e
alívio.
Esta complexidade do personagem é explorada de forma
brilhante pelo diretor. Em especial na sequência em que Brandon demonstra toda
sua inabilidade em lidar com afetividade durante um desconfortável jantar com
uma mulher. O desenrolar desse encontro será a constatação da patologia grave
que o afeta, ao mesmo tempo que com outros fatores o levará à espiral
degradação.
Quando arrastado pelo redemoinho de uma noite em busca de
satisfação, será a voz desesperada de sua irmã, gravada na secretária
eletrônica, a única pista do que os fez na vida adulta cair na repetição da
eterna insatisfação e inalcançável plenitude. “Nós não somos pessoas más.
Apenas viemos de um lugar ruim”, diz Sissy, entregando uma tênue
chave para que se compreenda o drama de ambos. Mas esta chave e os
acontecimentos seguintes não se definem como a catarse final necessária à
redenção e ao recomeço. Fica apenas a incógnita do plano final, uma troca de
olhares e a expectativa interrompida entre o desejo e a razão.
Projeto X surgiu
como um filme-incógnita. Não apenas pelo “x” do título, mas pelo conteúdo
estranho que seus trailers exibiam: cenas de uma festa com aquela estética de comercial
de vodka. Mas quando o filme completo se revelou em sua dimensão de absoluto descontrole,
surpreendeu imensamente. E causou risos como há muito tempo eu não via – e não
ria – em uma plateia de cinema.
Não há nada de genial ou original na composição desta
comédia sobre descontrole e ímpeto juvenil. Nem mesmo em sua estrutura, que
recorre ao batido recurso da câmera amadora filmando tudo o tempo todo como
registro de fatos reais. Este recurso, aliás, já serviu como artifício para
impingir às imagens e às histórias uma aura de verdade, de realidade
documentada. Hoje, se apresenta apenas como uma muleta que invariavelmente
apresenta buracos estruturais e não convence ninguém. Mas até isso funciona de
forma integrada em Projeto X, não
como um recurso articulado, mas como um efeito intensificador do absurdo.
Thomas (Thomas Mann) está fazendo aniversário; 17 anos. Seus
pais vão viajar no final de semana e o jovem, fortemente influenciado por seu
amigo Costa (Oliver Cooper) e auxiliado pelo gordo JB (Jonathan Daniel Brown),
pretende dar uma festa em sua casa. É claro que seus pais desconfiam disso, mas
consideram o filho e seus amigos tão pouco descolados que simplesmente não
cogitam que a coisa vá além de algumas pizzas, videogame e meia dúzia de amigos
bobocas.
Mas a ideia de Costa é fazer uma festa para mudar a imagem
que ele e seus amigos têm na escola. É a chance de se tornarem populares e
conseguirem ficar com aquelas garotas que nem sabem que eles existem. Contudo,
nenhum deles poderia imaginar que a notícia da festa se espalharia de forma tão
rápida e muito menos a proporção catastrófica que as coisas tomariam.
Abusando de piadas sexistas e dando um dedo médio para o
politicamente correto, Projeto X abre
com uma mensagem se desculpando com as autoridades locais pelo que vai ser
mostrado a seguir. Seus 20 minutos iniciais, que mostram os preparativos para a
festa, causaram mais risos do que a maior parte das comédias lançadas no ano
passado. É besteirol, mas um besteirol que articula e resgata um tipo de
irresponsabilidade e excitação juvenil que qualquer um que tenha sido jovem já
sentiu. Por isso é engraçado, porque é catártico e porque é realizado com
autenticidade, em um tom espontâneo e convincente.
Por ser sexista, pode não agradar ao sexo feminino, que não
compartilha do mesmo tipo de humor desbocado e safado que o filme promove. O
que, como bem lembrou um amigo crítico, não é diferente da relação masculina
com Sex and the City. Talvez para
amenizar a resistência do público feminino o roteiro de Projeto X apresenta seu grande defeito quando em meio à anarquia
coloca uma dose de sentimentalismo. O “alívio romântico” acaba por desvirtuar o
que o filme tem de melhor que é sua anticaretice e total entrega ao anárquico e
irresponsável.
Mesmo com esta falha, Projeto
X se sai muito bem como comédia. Sem grandes pretensões, atualiza um gênero
que tem em sua linhagem filmes como A
Última Festa de Solteiro e Curtindo (1984) a Vida Adoidado (1986). Tem personagens impagáveis e um
desdobramento de proporções absolutamente inesperadas. É de todo absurdo monumental
que vem grande parte de seu humor e talvez um certo fascínio pelo tom lendário
que a festa e os personagens vão tomando. E além de boas gargalhadas, há o
assombro, que cresce cada vez que se percebe o quanto uma simples festa vai se
tornando um evento de descontrole sem precedentes.
A cena final de Habemus
Papam é feita de uma gravidade trágica. Nela, amarra-se de forma brilhante
os laços dispostos ao longo do filme. Levado com o humor cínico e mordaz do
diretor italiano Nanni Moretti, mas cercado de uma melancolia doce e sincera,
seu desfecho – que naturalmente não será revelado aqui – se dá como uma súbita
revelação. É operístico, grandioso e se avoluma dentro dos corações – crentes
ou não – como um peso decididamente insuportável. O peso que carrega um Papa.
O filme abre com o funeral de um Papa. Passados os ritos, é
hora de eleger um novo sumo pontífice. Começa o conclave para a eleição do novo
Papa e desde já o diretor destila seu humor crítico, presente na abordagem das
sutilezas dos cânones católicos e seus fiéis representantes. Mas também desde
já se percebe que a grita silenciosa geral é de prece rumo a Deus: todos pedem
para não ser o escolhido. Na graça cômica da prece está o drama real. Ser Papa
é fardo para poucos.
Quando finalmente o cardeal Melville (Michel Piccoli, em uma
interpretação sensível e comovente) é escolhido novo Papa, todos os demais se sentem
aliviados. Mas na hora de aparecer para os fiéis na sacada da basílica de São
Pedro, o Papa recua e com um grito desesperado foge, deixando todos atônitos.
Diante do peso da responsabilidade, Melville sofre uma crise de estresse.
Com o anúncio do novo Papa em suspenso, resta ao Vaticano
fazer de tudo para convencer o Papa e se anunciar Papa. Sem sucesso, chama-se
um psicanalista renomado, interpretado pelo próprio Moretti. Mas a dificuldade
em uma análise reservada de seu paciente torna impossível seu trabalho. Pior
para o psicanalista, que de repente se vê preso dentro do Vaticano, já que por
saber a identidade do novo Papa, só poderá sair quando este for oficialmente
anunciado.
É para passar o tempo no cárcere eclesiástico que o
psicanalista organiza então um torneio de voleibol entre os cardeais, enquanto
o Papa pede mais tempo para conseguir se apresentar como líder da fé católica.
Moretti equilibra então o miolo de seu filme entre a leveza do humor inesperado
de cardeais para lá de sexagenários em um disputado torneio de vôlei e a
angústia que transborda na figura do Papa.
Tudo se representa pela feição e figura de Melville. Está no
seu rosto o peso todo. Há em seus ombros uma Igreja, toda uma crença com seus
milhões de seguidores. Feito farol desse povo, enverga sobre o peso de tanta
fé. Perde-a de si mesmo, embora não de Deus, e se sente oprimido. Nas coisas
simples da vida mundana, no resgate de um sonho juvenil, reencontra-se. Mas
nada que seja suficiente para leva-lo a um cume verdadeiramente alto e guiar um
povo. Reencontrado de si mesmo, percebe seu destino verdadeiro e finalmente se
dispõe a assumi-lo, mesmo que isso lhe custe muito caro.
A riqueza do filme de Moretti está no leve absurdo dos
eventos e na ironia da situação. Mas também muito se deve à força melancólica da
solidão de Melville. É a partir desses elementos que o diretor constrói um
drama inusitado com grande sensibilidade. Fino, de humor agridoce e com atuações
inspiradas, Habemus Papam se sai como
uma experiência humana acima de tudo. Está aí, imiscuída em uma sutil delicadeza
melancólica, a crítica de Moretti à igreja e ao peso que esta impõe
inadvertidamente a seus fiéis, sacerdotes e a si mesma.
O trio do elenco principal é de fazer suspirar moçoilas e
rapazotes: Chris Pine (o capitão Kirk na nova franquia Star Trek), Tom Hardy (de A
Origem) e Reese Witherspoon (de Água
para Elefantes). Contudo, apesar de tanto charme e simpatia, não sobra
muita coisa de interessante nesta comédia de ação feita com pouca ação e quase
sem comédia.
Tuck (Hardy) e FDR Foster (Pine) são dois agentes especiais
da CIA. O primeiro é separado da esposa e tem um filho de 8 anos. O segundo é
solteiro e leva uma vida de playboy sofisticado quando não está a serviço do
governo. Ambos se sentem solitários, pois não encontram mulheres que os
completem em um relacionamento. A solidão sentimental também afeta Lauren (Witherspoon),
que trabalha testando a resistência e funcionalidade de produtos domésticos.
O caminho dos três se cruza após uma amiga de Lauren, sem
que esta saiba, fazer um perfil bastante ousado da amiga em um site de
relacionamentos. Por uma série de acasos, os dois agentes, temporariamente suspensos
depois de uma ação desastrada, passarão a sair com Lauren ao mesmo tempo.
Quando descobrem que estão interessados na mesma garota, começam uma competição
para ver quem fica com Lauren.
Com um roteiro inexpressivo – que passa tempo demais andando
em círculos sem avançar –, o filme traz os exageros típicos do gênero. Como quando
ambos agentes colocam o aparato tecnológico da agência do governo para
atrapalhar um ao outro e impressionar a garota. As cenas de ação que se poderia
esperar ficam restritas ao início e ao final do filme. Já as piadas, dentre as
poucas que há, perdem qualquer graça pelo tamanho do clichê de que são
carregadas.
Em uma trama monótona em que nem o charme e beleza dos
atores segura a atenção, sobressai-se apenas as participações na trama da amiga
de Lauren, Trish (Chelsea Handler). É de sua atitude politicamente incorreta e
desbocada que sai algumas piadas capazes de produzir alguma graça. Na verdade,
parece vir do politicamente incorreto as boas partes do filme. Como na cena em
que um dos agentes, para impressionar a garota, entra ensandecido em uma
amistosa arena de paintball.
Do restante do filme, não sai nada muito engraçado ou
divertido. Apenas a repetição e a monotonia.
Arrisca-se, pela segunda vez, a cantora Madonna na direção
de um longa-metragem. A primeira, em 2008, foi com a comédia Filth and Wisdom, que nem chegou a ser
lançada por aqui e não obteve sucesso nas bilheterias. Desta vez, a pop star ataca com uma história verídica
narrada em paralelo com outra ficcional; duas histórias que se passam em épocas
totalmente diferentes.
A primeira, se passa nos anos 30 do século passado. Madonna recria
à sua maneira o romance que levou um rei a abdicar de seu trono. É a história
de Edward, (James D'Arcy), Príncipe de Gales, herdeiro do trono da Grã Bretanha,
e Wallis Simpson (Andrea Riseborough), uma mulher duas vezes divorciada. Após
assumir o trono, em 1936, Edward não abre mão de se casar com Wallis, algo que
a Igreja Anglicana e a família real nunca tolerariam. Sofrendo pressões de
diversos lados, o rei abdica do trono em favor de seu irmão George - o rei gago
cuja história foi contada em O Discurso
do Rei (2010).
A segunda história se passa nos anos 90, quando conhecemos Wally
Winthrop (Abbie Cornish), uma mulher sofisticada cujo casamento com um renomado
médico de Nova York não vai bem. Infeliz com o marido sempre ausente e com a
dificuldade em conseguir engravidar, todos os dias ela passa horas em uma
exposição para leilão de objetos pertencentes à Wallis e Edward. Fascinada pela
história do casal e fragilizada por suas insatisfações pessoais, ela conhece o
charmoso segurança da exposição Evgeni (Oscar Isaac), com quem passa a
conversar frequentemente.
Ao contrário do que ocorre em filmes que usam o recurso de
contar histórias paralelas no tempo, o filme de Madonna é exemplar em seguir a
definição do termo paralelo. Isso porque em nenhum momento as histórias ganham
algum ponto de contato ou aproximação, exceto pelo expediente forçado da
obcessão de uma das protagonistas uma com a história da outra.
A transferência por identificação que ocorre da mulher dos
anos 90 para a mulher que ela imagina ter sido a Wallis dos anos 30 é um ponto
frágil demais para sustentar o contato entre as histórias, que nunca se
conectam de verdade. Dessa forma, o recurso soa artificial e forçado, criando
um ruído toda vez que a narrativa se alterna.
Isoladas, ambas histórias são também frágeis. Madonna
romantiza em excesso a relação de Edward e Wallis. Distorce fatos históricos
para criar um drama no qual a figura feminina é a grande vítima, aquela que
carrega o maior peso de toda a renúncia do casal. Mas é a segunda história o
elo verdadeiramente fraco da narrativa. Sua protagonista e seu drama carecem de
um conflito construído de forma convincente. Na forma como é apresentado, a
inconsistência das situações revela a fraca sustentação dramática, necessária
para convencer como drama e criar empatia.
Na direção, Madonna abusa de alguns maneirismos que não
acrescentam nada ao filme e servem apenas como um exercício estético cafona.
Isto transforma W. E. – O Romance do
Século em um filme pretensioso, cuja fotografia e direção de arte bem
trabalhados tentam esconder a falta de substância da narrativa. Falta conflito,
falta construção de personagem, falta convencer.
Em vez disso, o que se vê é uma produção arrastada, com uma
total falta de ritmo, cheia de passagens que não levam a narrativa adiante,
tornando a experiência monótona e cansativa. Longo demais, é excessivo na
resolução das tramas, acrescentando, perto do fim, uma série de camadas
enfadonhas para amarrar o desfecho. Para quem já foi casada com um diretor
bastante bom (Guy Ritchie), Madonna parece longe de um amadurecimento como
diretora.
Roteiro e pé-na-jaca são os dois grandes problemas de Billi Pig, filme nacional que estreia
nesta sexta e traz no elenco Selton Mello, Grazi Massafera e o veterano Milton
Gonçalves. O filme é a primeira incursão do diretor José Eduardo Belmonte na
comédia e em uma grande produção. Conhecido – e até cultuado – por fazer um
cinema independente, que explora dramas existenciais e personagens deslocados
no mundo – como em Meu Mundo em Perigo (2007)
e Se Nada Mais der Certo (2008) –
Belmonte dá uma guinada e arrisca uma homenagem às antigas chanchadas de
Oscarito e Grande Otelo. Mas com um roteiro frágil e alguma hesitação em atolar
de vez o pé na jaca, o filme fica no meio do caminho, sem alcançar a graça e o
escracho indispensáveis ao riso.
Billi Pig é o nome do porquinho de brinquedo de Marivalda
(Grazi Massafera). Ele a acompanha desde a infância e é seu maior confidente e
também voz de sua consciência, com quem ela conversa regularmente. Casada com
Wanderley (Selton Mello), ela sonha em se tornar atriz e ter uma vida de
glamour e estrelato, embora não tenha nenhum talento para atuar. Seu marido, um
fracassado e gaiato vendedor de seguros que monta um escritório na garagem de
casa, não sabe o que fazer para dar à esposa a vida que ela sonha. É quando ele
vê em um falso padre milagreiro (Milton Gonçalves) a possibilidade de aplicar
um golpe em um desequilibrado e desesperado traficante local, interpretado por
Otávio Muller.
A falta de um roteiro consistente, indispensável mesmo em
uma comédia popular que se pretende anárquica, como é o caso de Billi Pig, está na base dos problemas do
filme. No apanhado, Billi Pig parece
uma colagem de situações, tão fraca é a amarração que liga as cenas e os personagens.
É pelas brechas dessa falta de consistência que qualquer tentativa de humor se
esvai. O clássico timing, tão
indispensável ao riso, dilui-se justamente porque a trama não se constrói com
firmeza suficiente para sustentá-lo. É por isso que talentos como Milton
Gonçalves, Selton Mello e, sim, Grazi Massafera (que embora esteja visivelmente
em processo de amadurecimento se mostra com brilho suficiente para surgir como
promessa de boa atriz, nem que seja pelo extraordinário carisma que carrega),
não funcionam dentro da trama.
Agrava esse quadro a presença inteiramente deslocada de
alguns personagens, que não apenas se apresentam completamente fora de contexto,
num paralelo absolutamente desconectado do todo, como também não criam qualquer
situação digna de riso ou escracho. É o caso dos personagens de Preta Gil e Milhem
Cortaz. Ela, dona de uma funerária quase falida; ele, seu funcionário. Suas inserções
na trama não acrescentam nada ao enredo. Eles surgem e desaparecem do filme sem
qualquer explicação e sem que qualquer de suas ações influam no desenrolar dos
fatos. Há também as secretárias da seguradora de fundo de quintal de Wanderley.
Duas personagens que estão ali como tentativa de um humor arriscado por brincar
com aspectos físicos. Um humor que quando não funciona pode caminhar para algo
ofensivo. Não chega a ser o caso em Billi
Pig, mas o risco está ali, latente.
Mesmo com toda essa engrenagem funcionando mal, com peças
girando em falso, o filme apresenta alguns lampejos que, se explorados melhor,
poderiam salvá-lo da falta de graça. É onde faltou enfiar o pé na jaca e assumir
o nonsense total. Alguns desses lampejos estão nas duas sequências de musical. Ao
introduzir na narrativa o elemento inesperado, a desconexão total com o
plausível, ao menos se tem a chance de justificar todas as coisas entregando-se
a uma anarquia verdadeira e plena. Com mais números musicais, embora estes serviriam
apenas como muleta para manter de pé uma trama sem sustentação, haveria uma
saída agradável, divertida e sempre aceitavelmente desorientadora. Daí se
extrairia, provavelmente, alguma graça pontual no decorrer do filme e também se
abririam novas possibilidades para que a colagem de mais elementos funcionassem
em favor do riso. Como está, Billi Pig
soa disfuncional demais. Recortes mal tramados de situações cuja possibilidade
do riso se dilui numa tentativa de escracho que nunca se realiza inteiramente.
Repórter, redator e crítico de cinema. | Tem trabalhos publicados no jornal Folha de S.Paulo e nas revistas Brasileiros e Época São Paulo, e em sites especializados em cinema como Cineclick, Pipoca Moderna e Cinequanon. | Desde 2010 mantém o blog Eu, Cinema.