No campo das experimentações cinematográficas, muito já se
produziu em autobiografias filmadas. Nenhuma, contudo, com a consistência e
reflexão da obra de David Perlov. Em Diário
1973 - 1983, sua obra máxima, o diretor afirma logo no início: “O cinema profissional
não me interessa mais”. Inicia-se ali uma jornada, um recomeço a partir do
meio. Ao encerrá-la, 10 anos depois, Perlov teria reconfigurando grande parte da
estrutura do cinema documentário.
Se na literatura o gênero da autobiografia sempre foi algo simples
de entender e construir – deixando de lado, claro, questões sobre ego, verdade
e parcialidade –, no cinema o gênero é, por excelência, estruturalmente
problemático. Mais do que a subjetivação ou objetivação da lente de uma câmera,
os efeitos de real podem ser atenuados ou intensificados na edição.
Manipulados, por assim dizer.
Claro que na literatura também existe tal recurso. Mas
quando ele se aplica a questões imagéticas, sabemos, desde as experiências de
Kuleshov, o quanto seu efeito pode ser sugestionante. A realidade, nesse caso, se subverte, se
modifica e nos ilude. Perlov – filho de um ilusionista – talvez não fuja desse
poder da edição. Mas ao invés de usá-lo como ilusão, prefere sintetizar sua
sensibilidade poética, sua visão de cinema e sua busca pela memória do
presente. Renega, portanto, desde o início, qualquer artificialismo, qualquer
truque, apesar de gostar deles, como admite.
Ruptura
Diário 1973 – 1783
é o ponto de partida de uma ruptura. De uma busca por algo diferente, que o
próprio Perlov não sabe o que é. Algo que se pretende construir com o tempo,
experimentando limites, de câmera em punho, através da janela de um apartamento
ou voltando-se para dentro do próprio apartamento. Inaugura ali o enquadramento
da vida íntima, mas logo a inserirá no contexto da vida política do país. Em
seu tatear por uma forma de cinema que intui, não planeja, descobre rápido o
quanto o íntimo pode dizer sobre o público.
O experimento, que se torna projeto, que se torna
obra-prima. Frustrado com a frequente recusa de seus projetos de cinema por
parte do governo israelense, Perlov compra uma câmera. Gesto mínimo para um
diretor de filmes. No início de Diário
1973-1983, suas primeiras palavras encerram com precisão tudo que se
precisa saber sobre o filme: “Maio de 1973. Eu compro uma câmera 16 mm. Eu
começo a filmar por mim mesmo e para mim mesmo. O cinema profissional não me
interessa mais. Eu filmo dia após dia à procura de alguma coisa. Eu procuro,
antes de tudo, o anonimato. É preciso tempo para aprender a fazê-lo”.
Dez anos depois, quando finaliza o projeto, talvez ainda
esteja aprendendo. Sua hesitação diminui, mas nunca termina. Seu filme tem seis
capítulos e um total de cinco horas e meia. O capítulo 1 engloba cinco anos; o
capítulo seis, três meses. O tempo se distende e contrai ao longo de Diário 1973-1983, ganha conotações de
memória, tem sempre algo de melancolia, mas sem o ranço do piegas. Perlov
resgata a si mesmo do presente, a memória não é uma corrente que o aprisiona, é
apenas mais uma janela através da qual observa. Há, claro, sentimento. Mas o
sentimento transporta reflexão, entendimento e pacificação.
Enquadramentos
Todo enquadramento é uma janela, um recorte. Perlov busca
refletir sobre isso filmando outras janelas, outros recortes. É a realidade do
possível, dentro da subtração natural que implica todo enquadramento. Uma
realidade própria, íntima, e por isso mesmo muito mais verdadeira e profunda. E
ela está na janela de um apartamento, na janela de um trem que o leva a Paris (ou
a Belo Horizonte), na janela de uma TV ligada. As verdades e memórias de Perlov
perpassam seu cotidiano íntimo, o cotidiano casual da rua no anonimato dos
passantes, a memória cotidiana, que faz Paris-Belo Horizonte uma simples e
metafísica viagem de trem, ou no factual noticioso da vida do país na TV.
Diário 1973-1983
constrói essa realidade sem pretensões programáticas, ideológicas ou estéticas
pré-concebidas. Sua estética primeira é a vida, as pessoas, o presente. Rejeita
com veemência o cinema de conformação de Israel. Ressalta que não quer filmar
ideias, quer filmar pessoas.
Nesse propósito e afinco, não deixa nunca de dar a dimensão
histórica de seu filme e de seu tempo. Desde a Guerra do Yom Kippur, que eclode
no início do primeiro capítulo, até a guerra com a Líbia a dimensão política
nunca diminui. Mas Perlov não a abstrai ou dilui dentro de um macro universo de
acontecimentos nacionais. Ela a humaniza, ele a personifica no rosto do
manifestante da rua.
Reintera sua concepção de cinema e vida ao filmar a TV que
filma a guerra. Diz que é a primeira vez que os pais podem ver seus filhos na
guerra. Agora há os rostos dos soldados no campo de batalho, transmitidos ao
vivo, diretamente para seus pais que os veem em casa.
Dez Anos
Dez anos de imagens condensadas em cinco horas e meia. O que
poderia facilmente enveredar pela monotonia, redundância ou irrelevância, se
torna um monumento poético, crítico e de uma substância gigantesca. Em tudo, o
que mais salta aos olhos e ao sentimento é a sensibilidade de Perlov, sua
capacidade de capturar o que a vida tem de dignificante na simplicidade e o que
tem de fundamental no registro histórico. Seu paralelo público/privado se
desconstrói e se cruza, se engalfinha com a vida e com sua verdade de beleza,
tristeza, saudade, dor, revolta, indignação, esperança, crescimento e memória.
Nunca é piegas, nunca é dissimulada. É vida, todo o tempo.
Passar pelas mais de cinco horas de Diário 1973-1983 não é uma simples travessia. É adentrar na
experiência da memória e do afetivo. É transpor-se para além de um paradigma
autobiográfico e encontrar uma nova forma e uma nova realidade. Não se trata de
simples revolução, mas uma nova percepção. Uma janela aberta, pela qual olhamos
para descobrir outras janelas. Janelas que nos levam a recortes do real,
capazes de afetar nossa compreensão e nosso sentimento do mundo e da vida.
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