Essas transições são um respiro e também uma carta de
princípios. Um tempo para pensar a respeito do que a câmera acabou de mostrar “ali
em cima” e uma reafirmação de que esta mesma câmera está lá apenas para mostrar,
sem juízo de valor. Por entre becos, escadas, vielas, casas pobres e a unidade
de polícia pacificadora, o princípio é muito claro: reproduzir sem filtros ou
intervenções uma realidade cuja complexidade se revela por si própria.
O filme é uma incursão da diretora Maria Augusta Ramos no
cotidiano da comunidade do Morro dos Prazeres e no cotidiano da força policial pacificadora
que o ocupa desde 2011. Vê-se, a partir desta incursão, como brota naturalmente
na tela a relação de forças e tensões entre a população e a presença policial.
É este o objeto de observação do filme, que serve para construir de forma menos
simplista a realidade da questão das UPPs no Rio de Janeiro.
Não se trata, porém, de uma imersão. O olhar do filme mantém
sempre um distanciamento que busca uma imparcialidade objetiva. Retrata ambos
os lados, de moradores e policiais. Daí que Morro
dos Prazeres quer ser um estímulo para a discussão sobre a ação policial e
as relações de tensão com a comunidade, mas sem emitir opinião. Deixa-se,
assim, na conta do espectador qualquer conclusão ou inferência a partir do que
se vê e ouve.
O princípio funciona bem. Mas se por um lado essa
imparcialidade oferece a chance de uma visão crítica livre de artifícios
indutores, por outro lado corre o risco do empobrecendo do registro, que pela
ausência de articulações pode soar como um enfileiramento de situações.
Não é. Vê-lo dessa fora seria um simplismo preguiçoso, uma
covardia do espectador que recusa o ônus de pensar e concluir por si próprio.
No entanto, essa ausência calculada de articulação enfraquece, inevitavelmente,
a riqueza de sentidos e relações profundas expressas nos discursos dos
moradores e dos policiais.
Revelam-se, nestes discursos, raízes profundas de
ressentimentos, obliquidades e barreiras que se aproximam do intransponível. Há
largo material ali, solto no registro, prato cheio para articulações mais
elaboradas. Mas resistir a isso é também mérito do filme.
Maria Augusta Ramos não cede à tentação e se atém ao
registro cru, de planos e enquadramentos com pouca margem para subjetividade,
embora nunca tão distantes que pareçam desinteressados. Há nisso uma harmonia
entre um registro frio e uma aproximação humana, um equilíbrio afinado sem
interferência, mas também sem a frieza mecânica de quem não se importa.
Morro dos Prazeres
torna-se, de qualquer forma, um filme importante de ser visto. Importante para
que se possa de forma menos superficial vivenciar através da tela o caldeirão que
ferve em fogo brando – tanto na superfície quanto no profundo – com as relações
conflituosas que surgem quando há a presença do Estado onde o Estado sempre foi
pouco presente.
A realidade complexa que o filme exibe fica bem acima (e bem
mais dentro) do que a visão midiática e/ou governista da questão da pacificação
nos morros cariocas. Isso porque, se por um lado o olhar do filme busca um
distanciamento que se arrisca na desarticulação, não deixa nunca de ser um
olhar mais verdadeiro e próximo daquilo que é a realidade.
Sem filtros da mídia, sem filtros de nossos preconceitos,
sem filtros até mesmo da articulação que o filme dispensa e que muitas vezes
poderia ser mais filtro do que qualquer outra coisa.
Filmado muito antes do caso Amarildo, Morro do Prazeres não é um prenúncio da tragédia, é apenas a
constatação das coisas e do estado das coisas. Em tempos de mimetismos
superficiais e indutores, de simplismos covardes e apatia documental, seu
registro desarticulado pode articular mais questões do que aparenta sua
distanciada contemplação.
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Morro dos Prazeres
Maria Augusta Ramos
Holanda/Brasil, 2013
90 min.
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