Pode ser difícil de acreditar, mas os personagens de O Ato de Matar são reais. Embora fique
sempre claro se trata de um documentário, esta é uma obviedade que precisa ser
lembrada. Um reforço que se justifica pelo choque do terrível que o filme
constrói, a ponto de nos fazer duvidar.
Isso acontece porque no seu mecanismo se trabalha o “real” em
um patamar distinto da normalidade. Seus personagens, ao representarem para a
câmera a reconstituição de atos que eles mesmos executaram, tonam-se reais em
uma dimensão incomum: são o artifício da figuração, mas também são a verdade
factual dentro dessa figuração. Pois é neste jogo de significados que habita o
horror que nos surpreende.
Na Indonésia, em 1965, os militares assumiram o poder após
um golpe de estado. O motivo do golpe, apoiado por países ocidentais, seria
barrar o avanço do comunismo. Segundo informa o documentário, a partir de
então, qualquer opositor ao regime poderia ser acusado de ser comunista e morto
por isso. Em menos de um ano, milhares desses “comunistas” foram assassinados
por grupos paramilitares, sob a anuência do governo.
Foi diante desse orgulho assassínio que o diretor
norte-americano Joshua Oppenheimer propôs a esses homens uma representação do
real: que reconstituíssem, do modo como quisessem, algumas de suas histórias em
frente à câmera. Esse é o dispositivo de O
Ato de Matar.
Ao criar esse arranjo formal e improvisado de
reconstituição, em que o sujeito representa o próprio sujeito, o filme se
insere em uma vertente do documentário conhecida como filme-dispositivo. Nesse
tipo de filme, as relações do que é mostrado ganham contornos subjetivos por
meio de dispositivos específicos.
Filmes como Super Size
Me, de Morgan Spurlock, no qual o diretor se propõe a passar 30 dias se
alimentando exclusivamente no McDonald’s e registrar os efeitos nocivos dessa
dieta; ou Jogo de Cena, de Eduardo
Coutinho, no qual o diretor convida mulheres para contarem suas histórias de
vida e embaralha relatos autênticos e representados para discutir os limites
entre documento e ficção, são alguns exemplos de filmes-dispositivos.
Em O Ato de Matar,
o dispositivo acaba por revelar o absurdo e nos levar ao desconcerto. O que se
vê na tela são homens sorridentes e brincalhões. Falam e representam seus
assassinatos com a espontaneidade que ultrapassa o orgulho, mergulha no banal e
revela uma assustadora ausência de culpa ou noção de gravidade.
Revelam ainda uma perturbadora influência do cinema de Hollywood
em seus atos e na banalidade de toda violência que impuseram a suas vítimas.
Para aumentar o desconcerto, o diretor acrescenta a seu
dispositivo representativo toques surreais. Bastidores de videoclipes em que os
assassinos são as estrelas compõem o horror bizarro que o filme constitui com
uma força que confronta a lógica comum para ressaltar a lógica desse mal. Uma
lógica menos incomum do que gostaríamos.
Nesse processo, o diretor Oppenheimer pouco interfere. Não aplica,
contudo, o distanciamento formal. Sustenta uma posição em que, através de
poucos estímulos, permite revelar para o público o absurdo proposto, totalmente
encampado pelos personagens. Assim, obtém uma naturalidade na qual seus
personagens se deixam desdobrar espontaneamente, aprofundam-se no surreal que
representam (e são) e revelam sua indiferença ante o horror da tortura e da
morte.
Na articulação desse dispositivo, O Ato de Matar traz à tona uma assustadora disposição humana em banalizar
o mal quando o pratica. Mas aqui não se trata das inferências que a filósofa
Hannah Arendt traçou ao dissecar o nazismo e o mal banalizado por ele. O
patamar aqui é diferente, e mesmo o sadismo – uma simplificação sempre pronta a
entrar em discussões desse tipo – ganha contornos distintos e perturbadores.
O Ato de Matar, como
documentário e dispositivo, atinge um patamar de significações ricas. É
alimento farto para quem quer debater aspectos formais e intrínsecos como jogo
de espelhos, sujeito significante ou o significado do sujeito. Mas à parte
formalismos acadêmicos, o filme é um retrato de dimensões múltiplas sobre a
natureza do mal na natureza humana. Nesse aspecto, funciona de forma simples,
direta e perturbadora. A ponto de nos fazer (querer) duvidar de que o que se vê
representado seja, ou tenha sido, alguma vez realidade.
--
The Act of Killing
Joshua Oppenheimer
Dinamarca/Noruega/Reino
Unido, 2012
115 min.
Trailer
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