O inteiro e o fragmentado funcionam como jogo e contrapontos
em Azul é a Cor Mais Quente. Através
deles, o diretor tunisiano Abdellatif Kechiche nos conta a vida de Adèle (La Vie d’Adèle, no título original em
francês), no filme que foi ganhador da Palma de Ouro do último Festival de Cannes.
Um filme que também despertou antigas (e sempre maçantes e
sempre caretas) polêmicas, todas nascidas das cenas de sexo entre duas garotas,
mostradas com empenho convincente pelas atrizes e pelo diretor.
Na sua duração de quase três horas, acompanharemos Adèle (Adèle
Exarchopoulos) de sua adolescência até a vida adulta. Um período que sempre
traz grandes descobertas (e também grandes ilusões) sobre quem somos e o que
queremos e o que desejamos.
Assim é com Adèle, que descobre e explora o que esta fase
tem de mais fascinante e, não raro, doloroso. Mas no seu caso, a óbvia “dor e
delícia” de sempre virá com a intensidade do desconcerto que Emma (Léa Seydoux)
causará na sua vida e no seu desejo. É com Emma que Adèle se descobrirá
inteira, mas para isso terá que se desdobrar por fragmentos, partes que
perdemos para descobrir o inteiro.
Logo no início, durante uma aula,
discute-se a sensação de se deixar uma parte de si numa simples troca de
olhares na rua entre dois desconhecidos. Adiante, é o que ocorre entre Adèle e
Emma. Desdobra-se a partir daí o desejo e a descoberta do prazer homossexual em
Adèle. Antes dele, afirma ela após fazer sexo com um garoto, é como se faltasse
algo. Não se sentia completa.
Este desejo e esta completude vai se desabrochar na cama e
no corpo de Emma. Daí as tais cenas polemicas, daí a classificação indicativa
no Brasil de 18 anos, daí grande parte da beleza do filme em uma autenticidade
rara no cinema.
Na elaboração desse jogo entre o inteiro e a parte, Kechiche
mantém a câmera próxima aos rostos na maior parte do filme. São primeiros
planos significativos e ambíguos na medida em que esta proximidade do rosto
revela o íntimo e daí o todo, mas ainda assim é só parte, só o rosto. O corpo
vem depois, e na sua inteireza no quadro revela-se fragmento, como se dependesse
de algo que se encaixe nele.
Neste jogo há uma síntese sentimental a partir da qual se
constrói o sentimento de Adèle, sua passagem pela descoberta não apenas da
sexualidade e do prazer completo, mas também de si mesma diante do mundo.
Nisto, Kechiche ataca sem muita sutileza na questão das classes sociais. Adèle,
de família mais simples e sem propósitos artísticos, e Emma, de família
sofisticada, com aspirações ligadas à arte.
Essa distinção é trabalhada à mesa, em algumas refeições (e
quem assistiu ao O Segredo do Grão e
a cena do almoço em família sabe como Kechiche domina a arte de filmar pessoas
comendo e falando) e no claro desconforto de Adèle frente aos amigos afetados
de Emma.
Mas se as questões sociais frequentam o cinema do diretor,
aqui elas são apenas mais parte de um processo do que o foco da narrativa.
Servem para texturizar a vida, contrapor personagens e matizar por meio de
contrastes a passagem de Adèle na transição da vida.
Nessa passagem, vai da
escola como aluna até a escola como professora; amigos, a vida em comum a dois,
a falência que fada as relações duradouras, a solidão e seu desconcerto.
O plano final mostra-a inteira, mas como quem – e isso se
nota nos tons azuis que pontuam o filme e a revestem no fim – alcançou uma
certa inteireza a partir de partes daquilo que perdeu e ganhou, daquilo que
deixou de si e do que leva de outros. É o fim da transição, da educação
sentimental e sua recolocação no mundo.
Assim, Kechiche reafirma em sua obra a dimensão do humano,
uma dimensão em que o comum e a grande aventura da vida caminham juntos, do
sobressalto à normalidade, da atração dos corpos ao distanciamento dos mesmos.
Azul é a Cor Mais
Quente é um filme sobre se encontrar no mundo, sobre passagem e descoberta,
mas nunca sobre certezas. Adèle nunca perde seu ar de certa fragilidade, de
lábios entreabertos entre a ingenuidade e o desejo, tão bem filmados pelo
diretor. Mas caminha firme no fim, se afastando da câmera. De azul, sem que
vejamos seu rosto, apenas seu corpo inteiro.
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La Vie d’Adèle
Abdellatif Kechiche
França/Bélgica/Espanha, 2013
179 min.
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