Novo trabalho de Roman Polanski, Deus da Carnificina é a adaptação para o cinema de peça homônima -
e muito premiada - da dramaturga argelina radicada na França Yasmina Reza.
Dois casais se reúnem para tratar de uma briga entre seus
filhos de 11 anos. Uma das crianças, após discussão em um parque, agrediu a
outra com um pedaço de pau, quebrando-lhe dois dentes. Para resolver o assunto,
Alan (Christoph Waltz) e Nancy (Kate Winslet), pais do garoto agressor, vão até
o apartamento de Penelope (Jodie Foster) e Michael (John C. Reily) a fim de,
amistosamente, acertarem-se como adultos educados e civilizados.
Diante da delicada situação, o desconforto é inevitável. Entre sorrisos cordiais e comentários amistosos, ambos casais concordam que a agressão foi uma violência inaceitável e que ambos os jovens devem se acertar, com pedidos de desculpas e reconhecimento do erro. Mas entre as muitas cordialidades, todos deixam escapar, vez por outra, alguma farpa no uso das palavras e no ponto de vista pessoal sobre o assunto. Serão estas farpas que irão aos poucos se acumulando, transformando uma situação educada num teatro de deboche.
Quase toda a ação se passa dentro do apartamento. Um
aprisionamento quase involuntário, engenhosamente construído, e que apesar de
não conter nada de surreal, remete indiretamente ao surrealista O Anjo Exterminador (1962), de Luis
Buñuel. Não apenas pela retenção das pessoas no mesmo ambiente, mas pela
degradação que a permanência dessas pessoas juntas causará nas relações e em
suas posturas civilizadas.
Por ser adaptação de uma peça, Deus da Carnificina não deixa de ser “cinema falado”, que é quando
o texto se sobrepõe à imagem na construção do filme. Polanski não inventa malabarismos
para narrar este texto. Vai pelo simples. Mas nem por isso deixa de nos apresentar
sua veemência irônica e inteligente subjetividade de olhar, utilizando como
mestre o foco, a angulação e a profundidade de campo. Seu jogo de cena é
refinado o suficiente para nos manter dentro da tensão e próximos o suficiente
dos personagens para que suas emoções nos alcancem.
Mas, além do texto excelente, são as atuações o grande trunfo do filme. Desde o início cada personagem deixa clara sua personalidade, criando sutis confrontos, sempre amenizados pela boa educação. No crescente agravamento desses confrontos, é fundamental o modo como cada ator compõe seu personagem. Cabe prestar atenção nas expressões que se alteram, nos olhares atravessados, nas torcidas de lábios; sutis desconfortos revelados pelo rosto, nas feições de quem se sente atingido ou está pouco se lixando. Toda essa nuance é criada com precisão pelos quatro atores, com destaque para Christoph Waltz e Jodie Foster, que protagonizam o melhor embate de personalidades.
Com o decorrer das horas vão se esfoliando as camadas
civilizatórias e o discurso do bom senso vai se desmanchando. Numa espécie de desmascaramento
catártico em grupo, não apenas as relações cordiais de convívio social serão
abaladas (questionadas e desconstruídas), mas também as relações familiares,
fazendo aflorar mágoas, ressentimentos e insatisfações entre os casais.
Mais do que a argúcia com que Deus da Carnificina desmorona as aparências, o mais contundente de
sua destruição é como o humor, nascido do deboche e do ridículo de cada um,
transforma tudo numa experiência de riso e identificação. Uma franqueza ácida e
cômica que traz à tona o que há de latente sob nossa pele supostamente cordata
e civilizada. Um filme para se ver, rir e pensar.
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Carnage
Roman Polanski
França/Alemanha/Polônia/Espanha, 2011
80 min.
Trailer
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