Em certa medida, é desconcertante notar o quanto a
improvável história de Ela parece hoje
menos improvável do que pareceria há dez ou 15 anos. Ou o quanto pode vir a
parecer nada improvável em alguns anos.
Comédia, drama, romance ou ficção científica? Qualquer uma
dessas pode servir. Mas é também filme-espelho, aquele tipo de filme que
reflete o humor de um tempo. No seu exagero, Ela evidencia um pouco da vida moderna, cheia de solidão e de gente
desesperada por sentir-se menos só. Alguns, se escondendo atrás da tecnologia.
Num futuro que pode estar perto, Joaquim Phoenix interpreta Theodore Twombly. Ele trabalha numa
empresa que escreve cartas sentimentais para pessoas que querem encantar algum
parente, amor ou amigo, mas não sabem escrever bem.
Se nosso poeta Drummond fosse descrever Theodore, talvez
dissesse: o homem por trás do bigode é melancólico, simples e solitário. Pois
além de introvertido e de ostentar um peculiar bigode, ele está se refazendo de
uma separação.
Mas chega ao mercado um novo sistema operacional com
inteligência artificial. Mais do que permitir acesso à máquina, esse sistema
conversa, desenvolve habilidades sociais e apresenta interações sofisticadas
com o usuário. Na instalação, escolhe-se entre “ele” ou “ela” para a interface.
É assim que, ao escolher “ela”, surge Samantha, cuja voz é empresta de Scarlet
Johansson.
Samantha vai conhecer melhor Theodore. Descobrir suas preferências, entender suas
carências, compreender seu jeito de interagir. Dessa interação entre o homem e
o sistema operacional “mulher”, das conversas que passam a ter, surge a paixão,
correspondida imediatamente pelo outro.
É em torno desta relação que o filme desenvolve não apenas a
ironia, mas também um relato tocante. Disso emergem diversas questões, como a
do sentimento ser possível mesmo na artificialidade de uma inteligência
artificial e, pior, sem corpo.
Ao desdobrar-se, o filme traz algumas questões até
elementares sobre nosso tempo. Além da solidão, trata do fascínio que os
dispositivos eletrônicos exercem sobre nós. Um fascínio que muitas vezes se
aproxima de forma preocupante a certo tipo de relação – não tão complexa quanto
a do filme, mas forte o suficiente para muitas vezes atrapalhar nossa interação
com o mundo real.
Dizer que Ela é um
filme profético seria tolice de futurologia. Mas certamente ele acentua traços
perceptíveis nos dias de hoje. Porém, mais importante que as elementares
conexões com nossos dias, são as propostas mais subjetivas que surgem e se
colocam ao debate ao longo do filme.
Entra-se aí no campo da ética, do conceito de amor, da
filosofia, da dúvida quanto à real necessidade do tangível, do corpo presente
para que haja uma relação real. No debate, a própria “realidade” de uma relação,
seus limites dentro do que é real, sua definição ampla ou restrita. Claro que
nada em subníveis muito densos ou profundos, mas suficientemente instigantes.
Como se quisesse manter sempre em evidência o intangível de
tudo que propõe, Jonze opta por certo minimalismo na concepção visual da vida
de Theodore. A fotografia de
tons pasteis, sem vibração, acentuam o melancólico do personagem, que se
estende a seu tom de voz passivo e retraído.
Esta mesma melancolia e solidão afeta sua amiga – e também
ex-namorada do passado – Amy, vivida por Amy Adams. Uma amizade que cria
paralelos com a questão da proximidade distante, outro aspecto desses tempos em
que certo individualismo deixa o outro translúcido para nossos olhos, sempre focados
em nós mesmos.
O diretor Spike Jonze costuma se dedicar mais a vídeos,
vídeos documentários e curtas-metragens do que ao cinema de longa metragem. Mas
suas incursões no cinema são sempre bem recebidas. No início, foi um pouco
ofuscado pelos roteiros brilhantes e inusitados do roteirista Charlie Kaufman,
como nos ótimos filmes Quero Ser John
Malkovich (1999) e Adaptação
(2002). Voltou em 2009 com uma também elogiada adaptação do clássico infantil Onde Vivem os Monstros.
Agora, em Ela, ele
mesmo assina o roteiro e mostra versatilidade também nisso, mantendo na direção
o mesmo trabalho sensível de seus filmes anteriores. Reforça também o gosto por
histórias inusitadas, por tornar o absurdo razoável e através dele desvendar um
pouco do ser humano.
Com uma atuação excelente de Joaquim Phoenix e uma grande
versatilidade de Scarlet Johansson no uso da voz, Ela propõe, no fundo, uma história de amor como tantas outras,
nascida da solidão, da carência afetiva e da confusão de sentimentos sobre nós
mesmos. Acrescenta apenas aspectos do nosso tempo, e ao fazê-lo amplia seus significados,
o que resulta num filme inteligente e tocante.
--
Her
Spike Jonze
EUA, 2013
126 min.
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