Já em seu título, Reality
acena com as duas faces da moeda com que pretende construir sua crítica.
Anuncia ali um díptico metafórico em que a realidade entrará em confronto com o
“reality”. Este último entra como termo associado hoje aos reality shows, cuja franquia “Big Brother”
parece ser o maior expoente em vários lugares do mundo.
É também assim na Itália, onde Big Brother vira “Grande
Fratello”, única diferença em relação à fórmula que conhecemos por aqui. O
resto é mais do mesmo, desde cenários até o perfil dos participantes.
Igual também é o anseio que algumas pessoas têm de fazerem
parte dos “escolhidos” do programa, ligando a isso não apenas a fama
instantânea e a chance de mudar de vida. Duas ideias que vão, sorrateiramente, permear
a cabeça de Luciano (Aniello Arena) após ele ter feito um teste para o programa.
Luciano é o dono de uma peixaria numa humilde comunidade da
região de Nápoles. Membro destacado dessa comunidade, ele complementa a renda
que sustenta esposa e três filhos com trambiques armados com a mulher. Seu
destaque na comunidade vem de suas performances em festas, quando se transveste
em personagens que fazem a alegria de todos.
Pois será em uma desses festas, um casamento, que a aparição
programada do vencedor da última edição do “Grande Fratello” desperta em todos
o fascínio pela celebridade. Ele é Enzo (Raffaele Ferrante) e descrever sua
participação como “aparição” não é exagero. Fugaz, sua entrada se resume a
acenos, rápidos cumprimentos e meia dúzia de palavras para os noivos. A saída é
apressada. Precisa dar conta de uma ampla agenda de aparições.
Seu discurso, em todas elas, é um mantra, representativo de
uma atitude de vendas e sucesso: never
give up. Nunca desista. Cântico dos vitoriosos e segredo das celebridades.
Mesmo as mais estéreis, como costumam ser as que são alçadas a esse status pelo
programa.
É esta relação de fascínio e ao mesmo tempo de conquista
possível que o diretor Matteo Garrone trabalha em seu filme. No desenrolar de
eventos casuais, Luciano se envolve na seleção para o programa e à medida que avança
passa a ter certeza que será um dos escolhidos.
Inicia-se aí um descolamento gradual da realidade. Luciano
passa a encarar com obsessão sua entrada no programa e age como se estivesse
sendo observado e avaliado o tempo todo. Uma situação que vai do razoável ao
completo absurdo.
Através da insanidade cômica de Luciano – por trás da qual
habita uma intensa melancolia – vê-se os efeitos viciantes do programa em seu
universo particular de “bolha” vigiada, espécie de paraíso artificial do sonho
moderno e midiático da fama.
Mas a riqueza do filtro que Reality apresenta está em como o filme revela as graves distorções
que pode haver na percepção da realidade. Uma percepção que pode ser contaminada
pela indistinção entre fronteiras do real e do imaginado, à medida que se deixa
contaminar por uma realidade fabricada.
Secundariamente, e com a mesma sutileza, Garrone desembala o
mito da celebridade pré-fabricada. Problematiza a relação desse mito com o real
e expõe seu valor estéril. No passado, as celebridades estavam inacessíveis na
condição de reis e rainhas (e a abertura do filme explora isso dentro de sua
chave fake e irônica). No século 20,
coube à classe artística e ao pop se revestir desse brilho, mas já se fazendo
menos distante da plebe. Então se cumpriu a profecia de Andy Warhol e com isso
deu-se a completa esterilização da fama, na qual é possível ser famoso sem
qualquer atributo além do de ser famoso.
Numa cena de Reality,
a aparição de Enzo será em uma casa noturna, pendurado por cordas, flutuando
sobre os demais. Um voo falso e sem sentido, para lugar algum. Mesmo assim,
enche de fascínio uma plateia hipnotizada. Entre eles estará Luciano, alimentando
seu desejo de também voar. Basta que ele nunca desista. Never give up, insiste o mantra. Tão destituído de significado
quanto todo o resto.
--
Reality
Matteo Garrone
Itália/França, 2012
116 min.
1 comentários:
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