quinta-feira, abril 18, 2013

Hoje

A ditadura militar no Brasil, um dos períodos mais sombrios da nossa história, deixou fantasmas sem fim na memória de quem viveu aqueles anos de terror. Sobre esses fantasmas, o cinema nacional já realizou diversos exercícios de expurgo, denúncia e reflexão. Porém, a despeito da indiscutível relevância de sempre lembrar o horror desse período, tornou-se inevitável que o tema fosse se desgastando à medida que a originalidade de abordagens escasseava. Hoje, de Tata Amaral, renova parte dessa originalidade diluída, trazendo sensibilidade e delicadeza no aparo de espinhos que nunca cessam de ferir.

O filme foi o grande vencedor do Festival de Cinema de Brasília de 2011, levando, entre outros, o prêmio de melhor filme e melhor atriz para Denise Fraga. Na história, baseada no livro Prova Contrária, de Fernando Bonassi, Denise é Vera, uma mulher de meia idade que está se mudando para um novo apartamento no centro de São Paulo. Ela acaba de comprar o imóvel e não esconde sua felicidade ao chegar sozinha no local e estourar um espumante.

Logo em seguida chega a mudança, trazida por dois carregadores contratados, que passam a subir os móveis da nova casa. Com exceção de uma torneira vazando, tudo vai bem, até que aparece Luiz (o ator uruguaio César Troncoso).

A aparição desse personagem diante de Vera causará uma profunda perturbação no seu dia, trazendo à tona lembranças, traumas e versões terríveis de um passado marcado pela incerteza. Uma incerteza que oscila entre a culpa e o ressentimento plantados no horror da tortura.

Dessa avalanche de sentimentos, enterrados em uma memória que reluta em ficar no passado, surge a catarse, tão difícil de ser aceita e encarada.

Com seu filme, a diretora Tata Amaral reconstrói a memória do horror se utilizando de uma intensa dramaturgia, desenvolvida exclusivamente dentro do apartamento. Para isso, entrega a seus atores a difícil tarefa de segurar o filme apenas com o jogo de cena e a intensidade de suas atuações. Ambos respondem à altura. Fazem do olhar, do contato físico e da expressão, o elemento que transpõe a tela e toca o espectador. Concentram no gesto o que precisa ser dito, interpretam com intensidade uma ampla gama de sentimentos, muitas vezes contraditórios.

Nessa densidade de microcosmo - nos cômodos de um apartamento como escaninhos da memória, no desfiado de ressentimentos que fagulham do embate entre os protagonistas -, o filme trabalha a culpa remoída dos que sobreviveram. Uma culpa espelhada na lembrança dos que ficaram no passado: mortos, desaparecidos, arrancados da vida.

Nasce daí a originalidade iluminada do filme, ao trazer para o presente o desdobramento do passado, mas sem a muleta da reconstituição. Esta, quando ocorre, se pauta nas atuações. É objetiva, dura e comovente, mas nunca um recurso fácil.

Mas é a complexa culpa de Vera o pilar do filme. Uma culpa que é depurada em cada cômodo do apartamento, como se o imóvel representasse o limiar entre se ter ou não o direito de ser feliz às custas de um passado tão traumático. É a dúvida do mérito, do direito de seguir adiante quando tantos ficaram para trás. A chave que desencadeia esta crise vem do apartamento e de como foi possível sua aquisição e se revela na figura de Luiz.

Mais do que resgatar o passado, Hoje fala do presente. Ainda que este "hoje" seja uma consequência direta da luta e das fissuras na alma provocadas pelo "ontem". Seu ponto de interrogação está no drama de seguir adiante, de merecer ou não a benesse de guardar o passado em seu lugar de memória e viver o hoje sem culpa.
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Hoje
Tata Amaral
Brasil, 2011
90 min.

Trailer



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