On Dangerous Ground
Nicholas Ray
EUA, 1952
82 min.
De todos que são chamados pela buzina do carro na rua,
apenas um está só. Já é noite fechada quando ele acaba de comer apressado.
Antes de ir para o trabalho, despeja no lixo as sobras generosas de sua
refeição solitária. Os pratos sujos são colocados na pia estreita. Ele é Jim Wilson
(Robert Ryan), detetive de polícia que trabalha a noite. Quem buzina da rua são
seus parceiros, esperando-o para que possam se apresentar ao serviço. Será mais
uma noite pelas ruas escuras, correndo atrás de tipos rasteiros, mulheres
perdidas e homens iníquos.
Há algo de sintomático nas primeiras cenas de Cinzas que Queimam. Elas mostram os
policiais se preparando para deixar o lar e ir ao trabalho. A todos, a arma é
trazida por mulheres, uma mãe e uma esposa, que os ajuda a se vestirem. Jim, no
entanto, já está pronto quando surge em cena. Seus parceiros deixam em casa
mulheres que dormirão mal na ausência de seus homens. Jim deixa apenas os
pratos sujos na pia estreita.
Nas ruas, ele é durão. Mais do que isso, exerce, na extração
de culpa dos criminosos, um sadismo à beira do descontrole quando os espanca.
Calado, rejeita a escória com a qual tem de lidar diariamente, sente-se
atormentado por ver o mundo sempre escuro, nas noites infestadas de seres
sórdidos, sem escrúpulos, sem limites para sua sordidez.
Imerso em sua solidão, Jim sente-se sufocado. Torna-se
insensível. Atormentado pelo mundo que vê sob as sombras nas noites de trabalho.
Não há conforto nem no exercício da lei, quando ele próprio diz que ninguém
gosta de policiais, nem os criminosos, nem o cidadão honesto. Para os outros,
acredita Jim, a policia é apenas uma escória mais lustrosa.
Por conta de seus frequentes excessos, Jim é enviado a uma
cidade do interior, de rigoroso inverno, para investigar o assassinato de uma
garota, atacada por um maníaco no bosque. Ao chegar ao local conhece o estressado
pai da menina morta, que caça o assassino para matá-lo. O detetive passa a
acompanha-lo no rastro do criminoso e embora represente o braço da lei, não
demonstra qualquer oposição à vingança justiçadora que o pai da vítima pretende
executar.
É em meio a esta caçada humana que o detetive chega à casa
de Mary Malden (Ida Lupino). Ao entrar em sua residência em busca do fugitivo,
encontra o lugar na penumbra. Em meio às sombras, a enigmática Mary. Jim não
demora a perceber que ela é cega e que esconde segredos. Na implacável busca
pelo assassino, ele fará o possível para extrair a verdade de Mary. No processo,
ele descobrirá que de dentro das trevas da cegueira pode emergir a luz que nunca
encontrou em sua vida.
Parte dessa luz vem do abnegado e incondicional amor de Mary
por seu irmão mais jovem. Ele é o assassino que procuram, o qual Jim e o pai da
vítima querem ver morto. Mary vive numa escuridão, metafísica e real, igual à
de Jim. Sua noite é permanente e a aflição de conviver com o mal sob seus
braços, no amor pelo irmão perturbado, faz dela tão infeliz quanto Jim. É nesse
espelho obscuro que o homem da lei atormentado se verá refletido, deixando
despertar em si um sentimento menos ácido, menos corrosivo.
Cinzas que Queimam
reproduz o clássico mito do homem caído, perdido na escuridão, que encontra sua
salvação nas mãos de uma mulher redentora. Na figura angustiada de Mary, o duro
detetive encontra uma catarse devastadora. É a partir dela que seu
embrutecimento desmorona e em meio às sombras uma mão se estende para erguê-lo
da solidão e do desamparo.
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