“É para espantar o frio”, diz ele sorrindo, se referindo à cachaça que o aguarda no copo. Simpático, convida-me a acompanhá-lo. Daí em diante o frio não demora a passar, graças também à boa conversa sobre cinema, memória nacional e projetos de filmes independentes.
Na próxima sexta-feria (10), entra em cartaz o documentário Belair, dirigido por Bruno em parceria com Noa Bressane. O filme resgata a história da produtora de mesmo nome, criada em 1970 por Rogério Sganzerla e Julio Bressane. Esta produtora, que nunca existiu no papel, realizou sete filmes em apenas quatro meses e teve sua duração abreviada pela ditadura.
Os filmes da Belair nunca chegaram a entrar em cartaz e corriam o risco de caírem no esquecimento. Até que em 2000, Bruno e o amigo Leonardo Duarte decidiram recuperar esses filmes e organizar uma mostra para exibi-los. Vendo que também a história por trás desses filmes merecia ser contada, Bruno se juntou a Noa Bressane para fazê-lo. Nasce desse esforço o documentário Belair.
Nesta entrevista, Bruno fala sobre o difícil trabalho de realizar o documentário, do descaso com que se trata a memória do cinema nacional e de como foi conhecer pessoalmente Rogério Sganzerla. E fala também de seu próximo projeto, no qual pretende realizar três longas em apenas um mês.
Eu, Cinema: Com apenas 19 anos você foi trabalhar
como assistente em um filme do Júlio Bressane, um dos mais sérios diretores do
cinema brasileiro. Como vocês se conheceram?
Bruno Safadi: No começo do ano 2000 eu e o
Leonardo [Duarte] estávamos começando a organizar a mostra Belair. Eu
fiquei responsável por falar com o Rogério [Sganzerla] e ele com o Júlio
[Bressane]. Eu não conhecia o Júlio ainda, mas o Leonardo já tinha sido
assistente dele. No meio do ano, o Júlio foi fazer o Dias de Nietzsche em
Turim e chamou o Leonardo para ser diretor de produção do filme. Como eu já
tinha feito um filme com o Leonardo e ele tinha ficado muito agradecido, me convidou para trabalhar também na produção do filme. Chegando lá, o
Júlio se aproximou e falou comigo sobre a mostra que eu estava organizando com
o Leonardo, falou que achava bacana e foi super receptivo com a ideia. Depois
das filmagens, a gente foi ver o copião – naquele
tempo ainda se usava copião – e o Júlio me convidou para ser assistente dele na
montagem. Foi aí que eu virei assistente dele.
O Júlio Bressane está entre os mais respeitados
diretores brasileiros, seus filmes fazem parte de diferentes fases da história
do nosso cinema. Como foi trabalhar com um diretor tão experiente e importante
sendo você tão jovem?
Foi uma experiência incrível. Mas é engraçado
pensar nisso agora, porque quando você vive uma época, vive uma idade, você
nunca tem essa dimensão, você apenas vive o presente. Naquela época eu achava
que já era um adulto, que já estava fazendo as coisas. O Júlio é uma pessoa muito generosa, mas tem uma carga de
erudição muito grande e por isso muita gente tem dificuldade de se aproximar
dele. Eu lembro que na primeira reunião de produção do Dias de Nietzsche em Turim,
quando eu tinha acabado de conhecer o Júlio, no final da reunião eu perguntei:
“Júlio, como é que você pensa em fazer a luz do filme?”. Era uma pergunta
completamente descabida para a minha posição, que, por inexperiência, soltei ali na hora. Mas como o Júlio é um diretor muito artístico, que não está
ligado nessas coisas de mercado, de hierarquia, nessas coisas de “quem é você
pra me perguntar o quê?”, ele gostou da pergunta. E respondeu e começou a falar
de como seria a luz no filme. Naquela época, por coincidência, o autor que eu
mais lia era justamente o Nietzsche. Tinha lido vários livros dele, muito
precocemente, talvez nem preparado para ler aquilo. Mas achava que podia ler e lia.
Então eu conseguia conversar sobre o Nietzsche com o Júlio e também sobre a
Belair, que pra ele foi a grande coisa que ele fez no cinema. Então todo dia,
no final da produção, ficávamos conversando. Ele contando histórias da Belair,
histórias do Nietzsche e eu adorando aquilo. Eu estava no paraíso. Estava
fazendo um filme com Júlio Bressane, ganhando um salário e ouvindo ele me
contar histórias da Belair e do Nietzsche.
Depois dessa primeira experiência, como seguiu sua
careira no cinema?
Naquele primeiro momento o Júlio já me dava muita
força para eu ser diretor. Ele me deu muito impulso pra começar a fazer curtas
metragens. Os curtas saíram, foram dando certo, sendo selecionados para
festivais importantes aqui e lá fora. Mas eu fiz também uma longa carreira como
assistente de direção, que foi o que bancou meus curtas. Fiz quatro filmes como
assistente do Júlio, depois trabalhei como assistente do Nelson Pereira dos Santos,
fui assistente do Ivan Cardoso. E ia fazendo curtas, até fazer meu primeiro
longa, Meu Nome é Dindi (2007). Que é um orgulho pra mim, porque foi um longa
totalmente independente. Foi filmado em uma semana, mas com muito rigor. O Lula
Carvalho fotografou, a Djin [Sganzerla], que é filha do Rogério e da Ignês [Helena
Ignês, viúva de Rogério Sganzerla e atriz de muitos de seus filmes] foi a
protagonista.
Como foi sua
convivência com o Rogério Sganzerla?
Conheci Rogério em 2000, quando fiquei encarregado de
falar com ele para a mostra Belair, enquanto o Leonardo falava com o Júlio
Bressane. O Rogério foi maravilhoso, ficou muito entusiasmado. Era diferente do
Júlio, que gostava da ideia, colaborava com as informações, mas sem se
envolver, sem sair de casa. O Rogério era diferente, ele ia toda
sexta-feira comigo na cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo).
Desde o primeiro dia que eu telefonei ele se entusiasmou com a mostra e começou
a ir comigo atrás dos filmes. A gente passou cerca de dez meses fazendo isso. Claro que com intervalos, mas quase toda sexta-feira a gente ia lá. E achamos
os filmes, foi incrível. Assim, acabei conhecendo e convivendo um tempo com o
Rogério.
Você também chegou a trabalhar com o Rogério na
montagem de uma peça. Conta um pouco dessa experiência.
Eu trabalhei rapidamente na montagem de Savannah
Bay, que o Rogério dirigiu. É um texto da Marguerite Duras e a peça era
protagonizada pela Helena Ignês e a Djin Sganzerla. Foi na montagem do Rio que
eu tive a oportunidade de trabalhar, de ajudá-los ali. Eu nunca tinha visto o
Rogério dirigindo e ali eu tive essa experiência. Foi algo muito forte vê-lo
trabalhando. Ele era um diretor de palavras muito precisas e isso me
impressionou bastante. A escolha das palavras, a direção que ele dava, era de
uma precisão que eu nunca tinha visto. E ao mesmo tempo um gênio. Duro,
radical. Muito diferente do Júlio, com quem eu estava acostumado e que é um
doce, um gentleman, tudo com ele é com muito carinho, muita educação, fala
baixo e tal. E o Rogério era como um raio, era uma explosão, mas de uma precisão
realmente espantosa. Mas essa experiência foi no teatro, não foi no cinema. Não tive a
oportunidade de fazer um filme com ele, infelizmente.
Na pesquisa para a mostra Belair, como foi esse
processo de encontrar os filmes?
Teve momentos lindos e teve momentos
muito tristes. A gente contou com a ajuda do Hernani Heffner, que é
conservador da Cinemateca do MAM até hoje. O Hernani foi uma pessoa muito
importante para o processo. Ele era o cara que realmente metia a mão ali, que
ia atrás dos filmes. Um momento triste foi quando a gente descobriu a perda do filme Carnaval na Lama. Quando abrimos a lata, o negativo tinha virado uma gelatina,
a prata tinha se soltado. Foi muito triste. Por outro lado, encontramos uma
cópia de Copacaban Mon Amour, um filme que estava meio perdido e a cópia
estava em bom estado. Se não me engano, é a única cópia que tem dele até hoje.
Quando você e a Noa
Bressane resolvem fazer o documentário “Belair”, o material que você já tinha
pesquisado para a mostra deve ter ajudado muito, obviamente. Mas, além disso,
vocês precisaram levantar muito mais material?
Sim, tivemos que achar muito mais coisa. A mostra
foi feita com apenas quatro filmes da Belair, que foi o que a gente achou
naquele momento. Foram os filmes Copacabana Mon Amour, Sem Essa, Aranha, A
Família do Barulho e Barão Olavo. Passaram-se cinco anos, eu fui fazendo
outras coisas. Quando a gente resolveu fazer o filme, com um prêmio que a gente
ganhou da Petrobrás para realizar, foi aí que a gente teve que se debruçar pra
fazer as coisas. Porque uma coisa é fazer uma mostra, ir lá e exibir os filmes,
outra é fazer um filme sobre a história da Belair. Claro que a gente sabia
desde o princípio que os filmes é que seriam os protagonistas do nosso filme.
Mas quando a gente se aproximou dessa pesquisa da história da Belair a gente
viu que não tinha nada.
Então foi quase como começar do zero?
Quase. Tínhamos os filmes, mas precisávamos de mais
coisas para contar a história. A gente tinha o Júlio muito próximo, mas
precisava mais, até mesmo para a gente. Eu tinha ouvido as histórias durante
anos, através do Júlio, mas não dava para fazer um filme só com a voz do Júlio,
sem ouvir outras pessoas. Então fomos à cinemateca do MAM, ao arquivo nacional,
fomos ao MIS (Museu da Imagem e do Som) e a diversos órgãos de memória e
preservação e vimos que não tinha nada sobre a Belair. Nada. Não havia nada. Apenas
algumas matérias de jornal, mas que terminavam em 1969 e só voltavam em 1990. O
Rogério até escrevia alguns artigos nos jornais, no final dos anos 70, mas
também não era sobre a Belair. Sobre a Belair mesmo não tinha nada. Então
criamos uma pesquisa. Entrevistamos 40 pessoas, gente que tinha envolvimento
direto e indireto com a produtora. Geramos um material enorme de entrevistas. Mas
essas entrevistas não tem nenhuma no filme, elas serviram como base para a
gente. Foram fundamentais, mas não entraram no filme.
Existia um medo grande nosso. Havia ali uma
responsabilidade muito grande. Não se podia fazer um filme sobre a Belair que
fosse jornalístico, de entrevistas, careta. Nós tínhamos que fazer um filme que
conversasse com a linguagem dos filmes da Belair e esse foi nosso grande desafio.
Foi difícil encontrar o caminho dessa linguagem na
hora de montar?
Nós passamos um ano montando. E esse tempo foi
fundamental para o filme. Nos primeiros quatro meses a gente só viu as imagens,
não montamos nada, só ficamos olhando. Olhando e separando. Então fizemos uma
pausa. A Noa foi ter filho e eu fui lançar o Meu Nome é Dindi. Depois, quando
voltamos, montamos rápido. Foram quatro meses de montagem, direto.
Depois de todo esse processo, tanto na organização
da mostra, quanto na pesquisa de material para o filme, como você vê a
preservação da memória do cinema brasileiro?
Muito mal. O que se faz com a memória do cinema
nacional é um crime. Até há algumas iniciativas, com patrocínio da Petrobrás, com a Unesco, mas não sei se ainda continua. A verdade é que não há memória
do cinema no Brasil. O que se perde de filmes é absurdo. A própria obra do
Rogério é um exemplo de descaso. Foi enviado por cinco anos consecutivos o
pedido de restauração para a Petrobrás e foi negado todas as vezes. Agora
imagina, um dos três maiores diretores do cinema brasileiro! O Copacabana, Mon
Amour, a gente levou para um laboratório para escanear os negativos e os
negativos estavam totalmente apodrecidos, do primeiro ao último fotograma.
Tiramos fotos do estado da película e mandamos para a Sinai [Sinai Sganzerla,
primeira filha de Rogério Sganzerla com Helena Ignês]. Ela novamente mandou
pedido de restauro para a Petrobrás e mandou as fotos junto. Acho que as fotos
foram fundamentais, porque aí eles aceitaram fazer restauro desse filme.
Em São Paulo, Belair entra em cartaz dia 10, certo?
Sim, no Reserva Cultural. Eles pediram
exclusividade na exibição do filme, pra poder manter mais tempo. É bom, acho
que vão tratar o filme com carinho.
Para você, que conviveu com dois ícones do que
ficou conhecido como cinema marginal, olhando agora para a atual configuração
do nosso cinema, quem hoje é marginal no cinema brasileiro?
A ideia de marginal mudou muito nesses 40 anos. A
ideia de se classificar como marginal, naquela época, foi para marginalizar
mesmo. Foi uma nomenclatura muito pejorativa. Imagina, vivendo a ditadura mais
feroz, você chamar um artista de marginal. Era pra ficar fora de tudo, para não
ter acesso ao dinheiro, foi uma coisa muito negativa. Mas o termo marginal,
nesses 40 anos, virou até uma coisa boa e hoje a margem cresceu tanto que virou
centro. Hoje é o centro que está indo atrás da margem.
Seu próximo filme vai se chamar Éden e fala sobre
os evangélicos. Como está esse projeto?
Está complicado. Você sabe como é difícil fazer
cinema aqui no Brasil, no sentido de fazer um filme um pouco mais “oficial”.
Para o Éden, eu ganhei um prêmio da Petrobrás pra fazer, de seiscentos mil. E
eu preciso de mais quatrocentos mil pra filmar. Faz um ano que estou tentado
conseguir esses quatrocentos e até agora não consegui. Mas estou aí, querendo
filmar esse ano ainda. Estou tentando conseguir verba de distribuidor, verba de
editais. Mas, por incrível que pareça, ainda há uma desconfiança muito grande
com esse tipo de filme mais artístico. Principalmente nesse meio do cinema mais
“oficial”. Ninguém acredita. Hoje a mentalidade desses agentes de mercado é só
dinheiro. Acabou esse negócio de cinema autoral, de acreditar nisso. E o Éden é um filme que vai falar de igreja evangélica, o que poderia trazer público.
Mas tem um projeto para fazer antes, esse sim mais radical.
Chama-se Operação Sônia Silk. Como você sabe, Sônia
Silk é o nome da personagem protagonista de Copacabana Mon Amour. Inspirados
pelos filmes da Belair, nós vamos fazer três longas em um mês. Eu, o Felipe
Bragança e o Ricardo Pretti. É um projeto, assim, pra fazer com nada. Nosso
orçamento está cada vez menor. Ontem eu estava com o Ricardo e a gente está
pensando em fazer com 40 mil, os três filmes. Pensamos assim: a gente vende pro
Canal Brasil por 10 mil cada filme, faz um rateio, cada um coloca mais 3 mil do
bolso e faz. Vai ser um filme de cada um, a gente já tem uns roteirinhos. Mas
estou achando que vamos ter que enxugar ainda mais, talvez fazer com 30 mil. É
muito pouco, mas eu acho que quando você tem pouco dinheiro acaba sendo mais
criativo. E a gente tem que radicalizar de alguma forma, porque senão fica essa
média que está aí, inexpressiva.