Duas camadas seguem paralelas enquanto se desenvolve a
narrativa de O Abutre. A primeira,
mais elementar, traz de forma objetiva um retrato do jornalismo sensacionalista
da televisão, recheado de tragédias, mortes violentas e imagens chocantes. A
segunda, menos óbvia, reflete o discurso estéril que permeia o mundo
corporativo e a voracidade acrítica que impulsiona carreiras. Em ambas, a indiferença
e a amoralidade se tornarão um incômodo reflexo no qual não nos vemos, mas por
trás do qual estamos.
Luis Bloom (Jake Gyllenhaal) inicia o filme como um “ladrão
de galinhas”. Garante seu sustento equilibrista com furtos que vão de cercas de
arame a bicicletas. Mas ele tem o que alguns chamariam de brilho nos olhos:
iniciativa e senso de oportunidade. Descobre que pode ganhar uma grana fazendo
imagens de acidentes para emissoras de televisão. Basta um rádio que capte a
frequência da polícia, uma filmadora e, de preferência, chegar antes dos outros
repórteres que, como ele passará a fazer, vagam na noite à caça de desgraças
para serem exibidas durante o café da manhã das audiências.
Em pouco tempo ganha a confiança da editora de um telejornal
matinal, Nina (Rene Russo), com a qual vai desenvolver uma relação de poder e
fascínio com toques de chantagem e dominação.
É natural que O Abutre
seja facilmente visto como um filme que faz uma reflexão sobre o sensacionalismo
sangrento do qual se alimenta grande parte do jornalismo de hoje. Mas esta
camada óbvia perde um pouco de sua prevalência ao se perceber que Bloom carrega
traços claros de sociopatia. Ou seja, ele é incapaz de demonstrar qualquer
empatia, qualquer sentimento de compaixão pelas pessoas, sejam as vítimas das
tragédias ou as pessoas com as quais interage.
Este traço, construído de forma impecável pela excelente
atuação de Gyllenhaal, faz toda a diferença, porque o transforma em uma figura
absolutamente amoral que em momento algum reflete sobre a ausência de ética no
que faz. Não há culpa, não há conflito interno, não há dúvida ou hesitação. E
se não há conflitos não há limites e sem limites não há margens para delinear
alguma reflexão.
Ao excluir o conflito ético e moral de sua narrativa, Dan
Gilroy – roteirista que com este filme faz uma boa estreia na direção –, esteriliza
a reflexão filosófica. Isso anula parte da primeira camada e, subjetivamente,
deixa que a segunda se sobreponha. Nesta, a sociopatia de Bloom se reveste de
seu espírito empreendedor e a soma desses dois fatores garantem seu sucesso.
Ele tem ensaiado o discurso vazio que tanto encanta os
autômatos do mundo corporativo, que engolem e reproduzem mecanicamente
conceitos motivacionais para uma bem sucedida carreira profissional. Manipulador
por excelência, ao usar esse discurso com sua entonação de fala ensaiada,
programada para surtir um efeito premeditado, deixa também evidente a natureza
falsa e vazia de toda essa cultura que move o mundo das corporações e seus
trabalhadores adestrados e condicionados.
Bloom pronuncia sua filosofia “management” com o mesmo vazio
de sentimento que dedica, no olhar, para as pessoas. É este vazio que deixa
evidente o oco e a amoralidade que também existe no mundo dos grandes conglomerados
e na lógica da ascensão profissional desenfreada que se alimenta da ausência de
sentido, reflexão e senso crítico.
Com esta inversão que alterna camadas, O Abutre explora e revela aspectos que permeiam a realidade. A
reflexão que ele propõe não está nos atos de seu protagonista, mas naquilo e
naqueles que alimentam esses atos. Seja como consumidores das imagens chocantes
de acidentes e tragédias – na televisão ou na internet –, seja como
perpetuadores dessa visão corporativa de voracidade ambiciosa sustentada por um
discurso vazio e pernicioso.
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Nightcrawler
Dan Gilroy
EUA, 2014
117 min.