Ir para a rua e morder um cachorro. Esta é a promessa que o jornalista Chuck Tatum (Kirk Douglas) faz a seu editor para o caso de não haver notícia. Mas ao brincar com uma ancestral lição do jornalismo (de que notícia não é um cachorro morder um homem, mas um homem morder um cachorro), o inescrupuloso Tatum revela sua natureza logo nos primeiros momentos desse clássico dirigido por Billy Wilder em 1951.
Depois de perder sucessivos empregos nos grandes jornais das
grandes cidades, Tatum vai parar na pequena cidade de Albuquerque, pedindo
emprego para o editor do Albuquerque Sun Bulletin. Seu papo de repórter
experiente, capaz de fazer tudo e conseguir grandes matérias convence o editor,
cujo lema que reforça sua fé na profissão está exposto na parede do jornal: diga
a verdade.
Mas Tatum está mais interessado em fazer fama, em conseguir
a grande história que o fará voltar à grande imprensa, de preferência em Nova
York. Depois de um ano “preso” no jornal sem grandes reportagens, cai em seu
colo um acontecimento inusitado. Um homem preso num deslizamento, dentro de uma
escavação, sob a tal Montanha dos Sete Abutres.
Está ali o personagem da grande matéria de Tatum: Leo Minosa
(Richard Benedict), com quem o repórter consegue falar e ver através de um
estreito buraco. Loe está com as pernas presas, mas consciente e sem dores.
Tatum aciona o jornal, a polícia e todo serviço de auxílio que pode. Mas a cada
um deles o repórter manipula a seu modo, seduzindo-os pela vaidade e pela ganância.
Desse modo, uma operação de resgate que poderia ser
realizada em pouco mais de 24 horas, é articulada por Tatum para durar uma
semana. A intenção é vender mais jornal e Tatum tem então a chance de refazer seu
nome na grande imprensa. Um desejo de grandeza do personagem de Kirk
Douglas que joga à lama toda ética jornalística.
O diretor Billy Wilder expõe de forma muito clara as engrenagens obscuras
que podem fazer girar as relações nem sempre transparentes entre imprensa e
poder. Assim como atribui também responsabilidade a quem consome notícias para
dar vazão a baixos instintos de mórbida curiosidade sensacionalista.
Na composição dessa representação da realidade até hoje em vigor, há o xerife como figura política, que aceita as imposições do repórter
em troca de destaque elogioso nas matérias; há o empreiteiro que planeja o
resgate do modo mais demorado e ineficaz em troca da publicidade gratuita que
terá; há o público comum, que se mobiliza para o local, transformado um resgate
da vida humana em um aglomerado de curiosos sedentos pela última novidade.
O circo armado é a representação máxima de até onde o jogo
entre imprensa, poder e “espetacularização” da notícia pode chegar.
Além das referências mais evidentes, Wilder também trabalha de
forma sutil o perfil da consciência de Tatum diante de sua falta de escrúpulos.
Isso é construído através da relação que ele tem com a esposa do homem
soterrado. Indiferente ao sofrimento do marido, ansiosa por deixar aquele
lugarejo no meio do nada e ainda lucrando com a iminente tragédia, ela se dispõe a seduzir
o repórter para que ele a leve com ele.Torna-se, no início aliada dele.
Ao mesmo tempo, essa mulher e sua má índole funcionam como um
espelho e o reflexo de si mesmo para Tatum. O que ele vê nela (como um espelho indesejado) claramente o perturba. Daí
seu desprezo por ela e por sua indiferente ganância. Um desprezo pelo próprio reflexo, um desprezo pelas próprias atitudes, que Wilder trabalha de forma inteligente.
Para que se crie uma referência de oposição, representação
do que é o bom jornalista, há o honesto editor do jornal da pequena cidade.
Como jornalista que busca apenas a verdade, há na sua figura um curioso
elemento, que "ressignifica" uma das bases da profissão. Ao se apresentar como um
homem que usa ao mesmo tempo cinto e suspensórios, a figura desse editor denota
o princípio da checagem e rechecagem dos fatos, um pilar do jornalismo desde
sempre, mas muitas vezes posto de lado em nome da vendagem da notícia.
Referência como um filme que desmistifica de forma
pessimista uma profissão que sempre se arvorou de nobre, A Montanha dos Sete Abutres é um filme que revela sintomas de uma
doença chamada sensacionalismo e que contamina até os dias atuais quase todo
veículo de informação. Um filme de 1951 que continua atual em pleno ano de
2012.
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Ace in the Hole
Billy Wilder
EUA, 1951
111 min.
Trailer
1 comentários:
Ótima crítica!
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