domingo, outubro 31, 2010

Três em Três

34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Abaixo, três resenhas em três parágrafos de três filmes da Mostra que não valiam três horas na feitura de três críticas completas.


A Graça (Sacràscia)
Bonifacio Angius
Itália, 2010

Tem uma proposta interessante ao flertar com o realismo fantástico. Menino de 10 anos peregrina descalço pelas estradas em busca da igreja do santo que salvou sua vida. Cumpre, assim, uma tradição católica de flagelo pela graça alcançada.

O filme entra numa espiral de cunho fantástico, o crescimento do menino indica que os anos passam enquanto ele prossegue em busca da igreja, sempre com a mesma roupa, sempre descalço, sempre com uma faixa curativa puída na cabeça.

Cruza com personagens bizarros, cíclicos. Apaixona-se, decepciona-se. O filme se torna monótono pela repetição. Pareceu-me um purgatório essa peregrinação, como se a realidade e a vida tivessem ficado noutro plano. Cansativo.
--

Impacto (Bay Rong)
Le Thanh Son
Vietnão, 2009

Filme de ação vietnamita. Vai bem enquanto não se leva a sério. Depois cai na mesmice dos filmes de ação. Varia um pouco ao tentar problematizar as relações dos personagens, mas fica só na superfície. A intenção é boa, o resultado medíocre.

Fala, em sua essência e também na sua mesma inocência, de vingança, redenção e restituição. Nisso é até universal. Mas é filme de ação. Entre uma cena e outra de demorada trilha e longa conversa, cansa.

Contudo, tem boas sequências de lutas, com takes de duração dilatada, o que ressalta a boa coreografia. A câmera acelerada dá um bom efeito em alguns momentos. Perde ao querer dramatizar demais alguns personagens. Tem razoável qualidade técnica, mas se arrasta em algumas partes. Vale só por diversão.
--

Não Tem Mais Majorette em Villalba (Non C'é Più Una Majorette A Villalba)
Giuliano Ricci
Itália, 2010

Fraco documentário sobre uma cidade no interior da Sicília que tende a desaparecer. Formada quase que só por aposentados, a cidade tem apenas 1800 habitantes e se encaminha para um encolhimento.

O diretor se limita a colher depoimentos de moradores e fazer imagens que retratam o bucolismo do lugar. Os personagens não apresentam nada de diferente, contam histórias do passado e falam que não se importam de morarem num lugar tão bucólico.

O mais próximo que se chega de algo intenso é nas reflexões sobre a morte, natural em um lugar só de velhos. Mas mesmo isso fica muito na superfície. O filme tem seu ponto alto no fim, quando duas solteironas que moram juntas afirmam terem já comprado seus caixões numa promoção: compraram dois e levaram três. Ficam guardados em casa.
--

Mamma Gogo

34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
--
Mamma Gogo
Fridrik Thor Fridriksson
Alemanha, Suécia, Reino Unido, Noruega, Islândia, 2010
--

Em seu início Mamma Gogo parece querer falar da velhice e do tempo. Começa com uma metalinguagem: um cineasta islandês faz a exibição de pré-estréia de seu ambicioso projeto, um filme que fala sobre a velhice e o abandono. Na platéia está sua mãe, a quem dedica o filme.

No desenrolar da narrativa sabemos que o filme vai mal nos cinemas. Ninguém parece interessado num filme sobre a velhice. Endividado, o diretor passa a torcer por uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro, o que alavancaria a bilheteria do filme. Em meio às dividas e à crise no casamento, sua mãe começa a ter súbitos esquecimentos, até ser diagnosticada com Alzheimer.

O que parecia ser uma promissora reflexão sobre a terceira idade e a memória, acaba por se perder pela falta de um foco definido. Entre os problemas financeiros e conjugais do protagonista e o aprofundamento da doença de sua mãe, o filme não se coloca numa posição definida e dilui qualquer possibilidade de dramatização.

Essa falta de um objeto definido a ser dramatizado se acentua por uma montagem acidentada. Muitas vezes as cenas parecem mal encadeadas, os cortes não seguem uma fluidez narrativa na construção de algo, causando estranhamento. Esses cortes fora de tempo não funcionam como estética de ruptura, de corte brusco, porque o filme não tem qualquer pretensão de experimento formal. É simplesmente mal editado, fazendo com que as cenas não fluam naturalmente.

Dificulta ainda o “embarque” na história e a empatia com os personagens uma grande impessoalidade no modo de construí-los. Elementos básicos e até triviais numa fórmula de construção de laços entre personagens, como fotografias, lembranças do passado ou diálogos íntimos estão ausentes. Isso torna as relações efetivas entre mão e filho pouco críveis, e trás uma artificialidade para a história. Os personagens carecem, efetivamente, de perspectiva e dimensão.

Agrava ainda mais o péssimo e destituído de emoção trabalho do ator Hilmir Snær Gudnason. Sua atuação é realmente sofrível, incapaz de transmitir qualquer sentimento.

Por fim, depois de se perder entre um foco e outro nos 2 primeiros terços de sua duração, Mamma Gogo finalmente se volta para o drama da velhice, do esquecimento e do delírio. A doente Gogo ganha uma dimensão mais humana em seu drama e o filme ganha uma dimensão de drama na figura humana. Cresce nesse final e quase comove. No entanto, é tarde demais para causar alguma comoção verdadeira e intensa no expectador. Quando o filme finalmente se decide, parece tarde demais para isso.

Termina como uma alegoria da morte, da libertação, do encontro póstumo com a vida. Mas as emoções já se perderam no caminho. O que fica no final é só uma promessa perdida do que o filme poderia ter sido e não foi.
--

sexta-feira, outubro 29, 2010

Coluna de Cinema


"O diretor não deposita nesse objeto do sonho um artificialismo dramático. O que há é a grandiosa demanda da aventura humana. A vida em seu estado natural, sem grandes assombros, com todo seu significado de simplicidades. Por isso, a trama não se permite a obviedade de grandes reviravoltas, o que não tira a tensão do filme, presente até mesmo no prosaico gesto de levar uma panela ao fogo."


Está no ar minha coluna de cinema no Guia da Semana. Nesta semana falo sobre O Segredo do Grão. Clique aqui para ler.
--

terça-feira, outubro 26, 2010

O Segredo de Seus Olhos

--
El Secreto de Sus Ojos
Juan José Campanella
Argentina, 2009
--
Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro 2010, O Segredo de Seus Olhos, de Juan José Campanella, conta a história de Benjamin Espólito, um funcionário da justiça aposentado que pretende escrever um romance para ocupar seu tempo livre. Interpretado por Ricardo Darín, o personagem passa então a desenterrar da memória um antigo caso de assassinato, de cuja investigação participou no passado e que nunca conseguiu esquecer totalmente.

O Segredo de Seus Olhos é antes de tudo um filme policial. Os elementos estão todos lá. Um crime mal solucionado no passado, o retorno às investigações, as reviravoltas na trama. Mas o filme tem a virtude de não se prender exclusivamente aos elementos de gênero e abrir possibilidades dentro da trama para o romance e até mesmo para o cômico. Não perde, porém, seu foco policialesco e leva o espectador até um final surpreendente e marcante. Se não tanto pela revelação em si, certamente pelo que nela contém de humano e cruel ao mesmo tempo.

Um filme sobre obsessões. Obsessões que de muitas maneiras - desde as mais inocentes às mais doentias - servem, em última análise, para preencher vidas que se descobrem "cheias de nada". É o tamanho do vazio que determina o tamanho da obsessão. E é assim que Benjamin Espólito se envolve numa trama que o perseguirá por 25 anos, compreendendo que no ser humano tudo é passível de mudança - aparência, endereço, trabalho e até comportamento social. Mas uma coisa nunca muda: suas paixões e obsessões.


Juan José Campanella é imensamente competente na construção de sua trama, no modo como gradualmente faz crescer a tensão na primeira metade do filme. Mesmo recheando o filme com cenas verdadeiramente engraçadas, não perde as rédeas da narrativa. Mantém o suspense em permanente crescendo, culminando em cenas com alta voltagem de tensão. Graças também ao ótimo jogo de cena e às excelentes interpretações dos atores. 

Um destaque a ser notado no filme é a relação dos olhos e dos olhares, que dão sentido ao seu título. Tudo no filme passa pelos olhos dos personagens, pela maneira como eles revelam ou escondem sentimentos, crimes, pecados, culpas e obsessões. E a maneira como Campanella trabalha isso, de forma sutil, sem exageros e obviedades, num jogo discreto, é outro grande mérito do filme.

Contudo, O Segredo de Seus Olhos não é um filme sem defeitos. Embora construído com uma boa escalada de suspense, em alguns momentos perde consistência, especialmente quando faz muitas concessões ao romanesco. Não que a atração subentendida entre dois personagens seja necessariamente ruim, pelo contrario, dá até um certo tempero para a trama e rende ótimas cenas. O problema é que às vezes, por conta de uma certa repetição, esse tempero acaba passando do ponto.

Campanella, entretanto, não é bobo. Embora não enxugue o filme desses defeitos, não perde a chance de transformá-los em piada. Para isso constrói toda uma cena de puro clichê, daqueles bem açucarados, e obviamente improvável. Tudo isso para logo na cena seguinte desconstruí-lo sem piedade, numa auto-ironia refinada. São detalhes como esses que minimizam as falhas do filme e faz de O Segredo de Seus Olhos o melhor trabalho do diretor até então.

E como um bom filme policial algumas reviravoltas acontecerão na trama até o desfecho. Todas muito bem colocadas, sem excessos, sem artificialismos. E tudo a serviço de um final atordoante, agudo, doído, como um dedo no centro de uma ferida aberta por 25 anos. Um arremate que encerra não no ato, mas no teor dele, a máxima de uma obsessão. Uma espécie de justiça que se escreve e se executa de próprio punho, à margem da lei, na solidez de uma sentença perpétua e no quanto pode haver de torto e de doentio em sua execução. Tudo isso faz de O Segredo de Seus Olhos um grande filme.

--

segunda-feira, outubro 25, 2010

Viridiana

--
Viridiana
Luis Buñel
Espanha, 1961
--

Luis Buñel foi um dos grandes diretores do cinema espanhol. Durante a ditadura do General Franco na Espanha exilou-se no México, onde realizou muitos de seus grandes filmes, como Los Olvidados (1950), El Bruto (1952) e Él (1952). Em 1960 foi convidado amigavelmente pelo governo de Franco para retornar a seu país e realizar o filme que quisesse, sem interferência do governo. Realizou Viridiana. Filme que depois de pronto e exibido causou tamanha ira em Franco e na Igreja Católica que muitas de suas cópias foram queimadas e o filme foi banido. Permaneceu proibido na Espanha até dois anos após a morte do ditador, em 1977.

Viridiana conta a história de uma freira de fé inabalável, que cultiva hábitos penitentes, como fazer suas preces usando uma coroa de espinhos e dormir sempre no chão. Antes de se encerrar numa clausura definitiva dedicada à igreja, Viridiana tem de visitar seu tio, um próspero e solitário viúvo. Atormentado com a beleza de sua sobrinha, ele fará o possível para adiar seu retorno ao convento e tentará, por fim, convencê-la a casar-se com ele.

Para alcançar seus objetivos obscenos, o velho homem não medirá esforços chegando ao mais baixo dos recursos. Sem sucesso e consumido pela culpa, suicida-se, deixando sua propriedade como herança para Viridiana e para um filho bastardo que tivera fora de seu casamento e que mal conhecera.

Após a morte do tio e diante dos acontecimentos recentes, Viridiana não se sente honrada o suficiente para retornar ao convento e decide ficar. Enquanto seu primo, Jorge, passa a administrar a fazenda e viver no Casarão, Viridiana passa a usar uma parte da propriedade para dar abrigo a um grupo de desafortunados: mendigos, aleijados, cegos e miseráveis.

Ela acredita estar cumprindo uma missão e ao mesmo tempo um expurgo, que a livrará das máculas causadas pelo tio falecido. Acredita que sua bondade redimirá aquelas pobres criaturas, tornado-as pessoas melhores, cristãos melhores, que em troca de sua generosa boa vontade exibirão como gratidão um melhor caráter, uma melhor índole. Mas o tempo se encarregará de mostrar-lhe o que sua fé obtusa não permite.

Buñel é implacável. Com seu filme ele demonstra um intenso ceticismo com a religião católica e com as questões da fé e da redenção. O diretor vai desconstruindo gradativamente e com rica sutileza a bondade nos gestos de Viridiana, deixando entrever que na sua caridade muitas vezes oculta-se um profundo egoísmo. É a visão de Buñel sobre a bondade cristã.

Assim, o altruísmo de Viridiana não é totalmente sincero, pois ele existe apenas enquanto obrigação de uma devoção particular e não no desinteressado benefício do próximo. Isso fica claro porque Viridiana busca a redenção por pecados que não cometeu. É o desajuste que a ignorância, a fé e a necessidade de martírio podem levar.

Por isso a bondade da personagem é muito mais um ofício do que uma questão de humanidade. Na busca de sua própria e egoísta redenção, Viridiana não se importa se o bem que faz é o melhor bem a ser feito.

Na construção de sua exortação ao ceticismo e à nulidade de toda religião como ação “transformadora” do mundo, Buñel compõe duas cenas muito representativas.

A primeira é uma oração no campo, onde se alternam imagens dos mendigos rezando com Viridiana e de homens trabalhando numa construção. Os que trabalham constroem algo, enquanto os que rezam não fazem mais que rezar. Nesta cena Buñel recria com a montagem paralela (e nela estão explicitados os princípios da montagem dialética do russo Serguei Eisenstein) o adágio de que duas mãos trabalhando valem mais que mil rezando.

A outra cena é emblemática de uma ironia iconoclasta e polêmica, pois reproduz o famoso quadro da santa ceia tendo como protagonistas os ingratos mendigos, que desdenham da generosidade de Viridiana entregando-se a uma vergonhosa e desmoralizante orgia de mesa farta e copos cheios.

É o choque final entre a fé idealizada e a dura realidade da natureza do homem que põe em ruínas as crenças pelas quais Viridiana dedicou sua vida. Percebe que viveu fechada numa devoção cujo sentido nunca alcançou de fato. Desestabilizada, ela reaparece na cena final, compondo um quadro emblemático e provocativo. Um desfecho que transpira um sutil erotismo, recendendo a lascívia e pecado.

Em sua genialidade, Buñel nos deixa entrever a verdade do final de Viridiana, pois é com sua entrega ao erótico, ao pecado antes rechaçado, que ela encontra sua verdadeira e máxima redenção. Ao abrir mão de uma hipocrisia auto-imposta encontra sua liberdade no desejo e na entrega. Sabe que é um fim melancólico para seus castelos etéreos, mas compreende talvez que há mais verdade nessa melancolia do que na felicidade que representava.
--

sábado, outubro 23, 2010

O Sussurro dos Deuses

--
Gerumaniumu no Yoru
Tatsushi Ômori
Japão, 2006
--
Rou é um jovem que vaga pelo mundo e que carrega sobre os ombros o peso do hediondo. Sua marcha errante é causa e conseqüência de um crime cometido com a crueldade desumana do vazio existencial. Rou tem em si o ódio, o não-pertencimento, o sarcasmo contra a fé, contra Deus e contra si mesmo. E ele torna-se, nos descaminhos da vida, a diluição de sua própria bestialidade, vítima de si e do crime que carrega.

Rou é síntese. Ele sintetiza a insolvência do ódio, da ira e do desamparo diante da fé corrompida; a fé que não resiste à sordidez intrínseca dos homens que a difundem e defendem. E no absoluto pragmatismo da insolvência de sua existência, o que resta são os meios de extravasar todo esse acúmulo existencial, todo o mal religioso dentro do si. E sua válvula é a perversão, a violência e a sordidez. Uma sordidez que somente certos tipos de inocência são capazes de criar. Porque entre o maltrato a um dócil animal, o estupro e a subjugação do semelhante, Rou trás no rosto, e até nos gestos, uma inocência inviolável.

Assim, o diretor Tatsushi Ômori conduz seu arquétipo de ronin às avessas, entre um choque e outro, diante da devassidão de seu meio.

Rou é um regressado à escola de padres católicos onde estudou. Foragido do crime que cometeu, encontra lá trabalho e abrigo. Logo no início temos o cenário vil em que se dá a trama. Vemos o ato grotesco de abuso sexual no qual um padre é masturbado por uma criança enquanto lê trechos da Bíblia em latim.

A sordidez desse mundo esmaga Rou. É o estopim de sua indissolúvel ira, de seu indissolúvel ódio e da vazão que essa indissolubilidade necessita. O convívio entre o sacro e o santo, os limites vagos entre o divino e o avesso, o cinismo covarde, opressor. Tudo é a razão de ser do ódio de Rou, que o transforma também em sordidez, também em vilania.

Como quando Rou se confessa e admite um estupro. Diz que desse estupro nascerá uma criança e que ela se chamará Emanuel. Recebe como penitência três orações. Mais tarde, enquanto coloca seu confessor –um velho paraplégico - na cama, afirma que o pecado que confessou e do qual já foi perdoado é um pecado futuro, ainda não cometido. Argumenta que uma vez que o pecado foi confessado e perdoado antes de ser cometido, ele agora tem a anuência divina para cometê-lo, caso contrário se quebraria a lógica do sagrado sacramento da confissão e do perdão. Agora não é mais um pecado, é uma profecia. Por isso a criança que vier desse estupro deverá se chamar Emanuel.

É em meio a essa lógica absurda que Ômori nos envereda por seus caminhos silenciosos. Seu filme vai além da religião e se fixa, talvez, no âmago da consciência do homem, naquilo que pode ou não ser chamado de sua natureza e sua envergadura humana. A perversão não é um fim em si mesma, ela é uma intrínseca amargura que afeta doentiamente seus personagens, fazendo-os conviver e vagar entre a culpa esquecida, o ato repulsivo e a irrelevância do após. Consolam-se a si mesmos, vingam-se a si mesmos. E preservam em sua violência degradante a inocência das criaturas de Deus.
--

De "Baby Face" a "Bad Guy"

O amigo Ronaldo Junior comentou no post do filme A Origem a respeito do ator Leonardo DiCaprio, lembrando muito bem a excelente evolução que este ator teve nos últimos anos. Com isso me deu um ótimo gancho para o texto abaixo.

DiCaprio conseguiu algo relativamente difícil na carreira de um ator: quebrar um paradigma de imagem; tanto de aparência como também de qualidade de interpretação. Embora seu primeiro papel marcante tenha sido de boa qualidade no filme Diário de um Adolescente (1995), a sequência em trabalhos como Romeu + Julieta (1996), As Filhas de Marvin (1996) e seu ápice no dramalhão Titanic (1997) serviram apenas para reforçar sua fama de ator baby face e de qualidade discutível.

Mesmo uma participação num filme de Wood Allen (Celebridades, de 1998) não o salvaria dessa fama. Em O Home da Máscara de Ferro (1998), DiCaprio parace ensaiar uma melhora, mas também ao lado de John Malkovich, Jeremy Irons e Gérard Depardieu qualquer um fica bem na foto. Em A Praia (2000), nada de diferente. Mas em Gangues de Nova York (2002) surge uma promessa. Se não pelo trabalho em si - menos ainda pelo filme, bem sofrível -, certamente por ser seu primeiro trabalho com o diretor Martin Scorsese, uma parceria que resultaria em ótimos papeis no futuro e que mudaria a “cara” de DiCaprio.

Em Prenda-me Se For Capaz (2002) DiCaprio exibe uma melhor versatilidade no papel de um lendário falsário dos anos 60. Mas é em O Aviador (2004), nova parceria com Scorsese, que ele realmente começa a interpretar. Na pele do magnata Howard Hughes, DiCaprio tem a melhor atuação de sua carreira. Consegue matizar toda a complexidade do personagem de forma convincente.

Mas é com seu trabalho em Diamantes de Sangue (2006) que começa a se desmitificar como “carinha bonita”. No papel do amoral Danny Archer, um contrabandista de diamantes em Serra Leoa, DiCaprio convence como um personagem durão, insensível e preocupado apenas com sua própria sobrevivência.

Chega-se então ao divisor de águas: Os Infiltrados (2006), terceira parceria com Martin Scorsese. Neste filme, a atuação de DiCaprio é impressionante, visceral, intensa. Foi o papel que definitivamente livrou-o da fama de baby face e o transformou em inquestionável bad guy. Não que seu personagem no filme seja  um vilão, mas este papel exigiu de DiCaprio um verdadeiro mergulho no sangue (um sangue diferente das firulas estetizadas de Gangues de Nova York) e na sujeira do submundo do crime. Contracena com Jack Nicholson, e embora este quase sempre roube a cena, DiCaprio não chega a ficar tão distante.

À partir daí, Leonoardo Di Caprio parece ter encontrado sua maturidade como ator e se livrado do esteriótipo de bom moço bonitinho. Em Rede de Mentiras (2008), um Ridley Scott menor, se mantém correto. Em Foi Apenas um Sonho (2008) volta a contracenar com Kate Winslet, seu par em Titanic. Interpretam um casal dos anos 60 que acreditam que sua vida de casados será diferente da mesmice dos casais de seu tempo. Mais uma vez DiCaprio mostra competência na construção matizada de um personagem que gradualmente vai se afundando na rotina contra a qual se acreditava imune.

Em Ilha do Medo (2010), mais uma vez sob a batuta de Martin Scorsese, o ator encarna com competência e credibilidade um detetive atormentado pelo passado, que investiga um misterioso desaparecimento em um manicômio. De clima asfixiante, o filme arrasta o expectador para um universo claustrofóbico onde realidade e delírio se misturam.

Em seu mais recente trabalho lançado por aqui, A Origem (2010), DiCaprio não chega a se superar, mas está correto no papel.

Depois desse breve sobrevôo na carreira desse ator, fica evidente que foi o trabalho com o grande diretor Martin Scorsese que o levou a um patamar inesperado para quem parecia que iria calcar sua carreira no rostinho bonito de bom moço. DiCaprio provou ser um ator com razoável versatilidade e capaz de encarnar tipos violentos e durões, apesar de seu rosto de traços delicados. Começou sua carreira com jeito de esteriótipo e parecia fadado à mesmice, mas conseguiu se impor e se livrar do rótulo. Merece por isso respeito.
--

quinta-feira, outubro 21, 2010

Mostra Internacional de Cinema

Começa hoje a 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. É filme que não acaba mais. Para ver a programação completa e maiores informações, clique aqui.

No post seguinte, reproduzo o texto de minha última coluna de cinema no Guia da Semana em que falo justamente da Mostra.
--

Mostra de Cinema

Começa no dia 22 de outubro a 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Serão duas semanas de muitos filmes, até seu encerramento no dia 4 de novembro. Duas semanas de muito cinema.

A Mostra é um evento de números impressionantes. Como acontece todos os anos, seus organizadores trouxeram mais de 400 filmes para serem exibidos nas mais de 20 salas que participarão do evento. Nesse volume assombroso de filmes estão desde diretores conhecidos do grande público, cujos filmes ainda não entraram em cartaz, diretores conhecidos só dos cinéfilos de carteirinha, que garantem filas nas sessões, até diretores absolutamente desconhecidos, mas cujos filmes podem surpreender quem se aventurar a vê-los.

Talvez a Mostra seja o maior e mais movimentado acontecimento de cinema da cidade de São Paulo. Uma verdadeira festa para os cinéfilos, que se alvoroçam nas filas das sessões mais badaladas, o que nem sempre quer dizer lançamentos. Um exemplo disso é a aguardada exibição de um filme de 1927: Metrópolis, de Fritz Lang.

O filme é um dos ícones da história do cinema, um marco na estética futurista e que influenciou várias gerações de cineastas. A cópia que será exibida na Mostra é uma versão restaurada e acrescida de 25 minutos inéditos. Esses rolos de filme a mais estavam desaparecidos e foram recentemente encontrados no Museu de Cinema de Buenos Aires. A sessão de exibição desta preciosa cópia acontecerá no dia 24 de outubro, às 20h, no gramado do auditório do Ibirapuera. Para enriquecer mais ainda a experiência de rever essa obra magnífica do cinema mudo, a exibição contará com acompanhamento da orquestra Jazz Sinfônica.

Como todos os anos, o evento também organiza programas especiais, que se tornam verdadeiras “mostras dentro da Mostra”. Tratam-se de programas exclusivos com retrospectivas e homenagens a diretores, atores e filmografias históricas ou de gênero. Nesse ano os programas especiais incluirão retrospectivas de obras do francês F. J. Ossang e do armênio Serge Avedikina. Também fazem parte dos programas especiais homenagens ao norueguês Bent Hamer e à atriz e diretora alemã Hanna Schygulla.

Esse é o espírito da mostra, a diversidade e a oportunidade de exibir e fazer conhecer cinematografias longínquas, de países muitas vezes até desconhecidos, mostrando que o cinema e sua verve libertária, criativa, artística e documental, vive, brota e existe nos mais distantes cantos desse planeta, um mundo de imagens e sons diversos.

Para assistir aos filmes da Mostra pode-se adquirir ingressos direto nas bilheterias das salas exibidoras ou comprar antecipadamente pacotes de ingressos válidos para quaisquer sessões. Outra boa coisa nesse evento é que algumas das salas que fazem parte do circuito da Mostra tem todas suas sessões gratuitas ou a preços bem populares, variando de R$ 1,00 a R$ 4,00.

Reserve alguns dias na sua agenda, veja a programação. Quer você goste daquele cinema mais convencional, quer goste de um cinema mais exótico, a Mostra tem para todos os gostos. Mas é preciso, acima de tudo, um pouco de espírito aventureiro. As recompensas serão muitas. Nessas duas semanas de ebulição cinematográfica e cinefílica, anote aí as salas que fazem parte do circuito:

UNIBANCO ARTEPLEX 1, 2, 3, 4 e 5;
CEU PERUS
CINE LIVRARIA CULTURA 1 e 2;
CINESESC; 
CINE SABESP; 
ESPAÇO UNIBANCO DE CINEMA POMPEIA;
ESPAÇO UNIBANCO DE CINEMA AUGUSTA;
CINEMATECA – Sala BNDES e Sala Petrobrás; 
CENTRO CULTURAL SÃO PAULO; 
CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL – CCBB
CINEMARK ELDORADO;
CINEMARK CIDADE JARDIM; 
CINE TAM MORUMBISHOPPING; 
CINE OLIDO; 
RESERVA CULTURAL;
MIS – MUSEU DA IMAGEM E DO SOM;
MATILHA CULTURAL; 
FAAP – FUNDAÇÃO ARMANDO ÁLVARES PENTEADO;
VÃO LIVRE DO MASP
TERREIRO A PELE DO INVÍSIVEL, NA 29ª BIENAL - Bienal de São Paulo

 Mais informações: www.mostra.org
--

terça-feira, outubro 19, 2010

Irreversível

--
Irréversible
Gaspar Noe
França, 2002
--

É difícil enxergar os limites entre o aceitável e o inaceitável dentro de uma proposta artística de ruptura ou de choque. Os limites do bom gosto, os limites da tolerância, os limites da liberdade de se fazer o que se quer, do jeito que se quer. Tudo se torna cinzento á partir de certo ponto. Quem, entre crítica, realizadores, estetas ou público em geral pode se arvorar a dizer e definir o que pode e o que não pode?

Apresentado no Festival de Cannes de 2002, Irreversível, filme do diretor franco-argentino Gaspar Noe, causou reações violentas na platéia. Mais da metade da sala saiu no meio da projeção. As pessoas, ao se retirarem e passarem pelo diretor, faziam questão de chamá-lo de doente, ou coisas piores. Gaspar Noe apenas sorria.

Irreversível é uma história de vingança e violência contada de trás para frente. Começa com a execução do ato vingativo e vai regredindo. Mostra, inversamente, como as coisas foram dar num fim tão violento. Caminha-se para trás como meio, paradoxal, de acentuar a irreversibilidade do tempo. E para que o efeito seja melhor percebido usa-se o recurso do plano-sequência.

Impossível não se incomodar com o realismo e o absurdo que o diretor quis impingir ao filme. Desde o desconforto da câmera balançando nas primeiras tomadas, até o esmagamento de um rosto numa boate gay, passando pelo mais que polêmico estupro em tempo real protagonizado por Monica Belucci, tudo na primeira metade do filme causa mal estar.

A pergunta que se faz – e essa tem uma relevância fundamental como pergunta – é se aquelas cenas, da maneira como foram mostradas, seriam mesmo necessárias. Seriam, de fato, indispensáveis para a proposta do diretor? Outros, mais azedos com o filme, vão mais além e perguntam, já com a resposta pré-fabricada em suas mentes: existe alguma proposta no filme?

O Tempo destrói tudo. A chave para entender Irreversível é dada antes mesmo da violência começar, mas só fará sentido quando se chega no fim, ou ao começo, da história. O próprio conceito de “chegar ao começo” já é um indicativo de que o caminho do tempo é o atuador final da tragédia e que uma vez consumada no início da narrativa, só nos resta investigar o caminho do tempo até onde tudo começou. A dimensão do sentido do adágio “o tempo destrói tudo” só pode ser alcançado depois de se retroceder no tempo, aquele que é, inevitavelmente, irreversível.

Talvez seja impossível justificar plenamente uma cena de estupro filmada sem cortes e com a angustiante e torturante duração de mais de 9 minutos. O ato, as palavras ditas, o espancamento final, o ódio gratuito, o doentio da cena, tudo é elevado a um nível quase insuportável. Ali se testou os limites do tolerável. A maior parte do público e da crítica não tolerou.

Passada a violência da primeira metade, o filme segue sua regressão no tempo e o que vemos é a definição, através de diálogos, das relações entre os personagens. De uma neurótica conversa no metro, até um despertar repleto de uma delicada beleza de promessa do dia. Uma última cena rica em sensualidade, em luminosidade, onde tudo parece ser a garantia de que o dia, a noite e a vida serão bons.

O que se ganha com o retrocesso temporal da narrativa é uma perspectiva inversa, através da qual se pode ter a noção da felicidade casual, cotidiana e sua real importância de momento, uma vez que já se sabe como terminará. A força das imagens que ilustram o fim daquele dia - e talvez o fim daquelas vidas, ao menos como eram no início do dia – servem para contrapor tudo, para explicitar a forma como o tempo destrói tudo. Se a voltagem das imagens excedeu o parâmetro do bom gosto, eu pergunto qual é o parâmetro. Acho que ninguém sabe. Gaspar Noe arriscou, conquistou inimigos, mas fez o filme que queria fazer.

Não é fácil gostar de Irreversível, menos ainda defendê-lo. Em sua construção, no modo como foi realizado, cabem discussões diversas, investigações de limites, fronteiras, abismos. É polêmico propositalmente, mas não encontro razão para classificá-lo como ruim. Tem uma proposta e se os meios para expô-la ultrapassaram alguma linha invisível do aceitável, não serei eu a dizer onde estava a linha.

Sim, deixou-me incomodado, intranquilo, atordoado. Mas no final se mostrou um filme ousado, arriscado, singular. Divide opiniões de forma acirrada, visceral. É filme para se gostar ou não, em definitivo, de forma irreversível.
--

segunda-feira, outubro 18, 2010

Luiz Zanin

Extraordinária reflexão feita pelo crítico de cinema Luiz Zanin sobre o filme Tropa de Elite 2. Clique aqui para ler.
--

A Origem

--
Christopher Nolan
Inception
EUA, 2010
--

Seria ingenuidade achar que Hollywood, ao beber da fonte de Borges, um dos mais inventivos escritores da história, criaria um filme de densidade similar ao universo borgiano. Há sempre que se guardar as devidas proporções entre a realidade e o sonho. Da mesma forma, seria ignorância não enxergar o quanto A Origem, de Christopher Nolan, tem no universo da literatura de Borges grande parte de sua inspiração.

Mas que não se animem os sérios, nem se entristeçam os tolos. A Origem é, antes de tudo, um filme de ação. O que não o desqualifica como um ótimo filme, que transporta para a ação elementos e idéias de uma das mentes mais inventivas da literatura.

A Origem é um filme que se passa dentro do mundo dos sonhos. Leonardo Di Caprio é Dom Cobb, um agente a serviço de uma misteriosa corporação, especialista em invadir os sonhos de pessoas poderosas para roubar segredos de seu subconsciente. A premissa é simples, a realização intrincada. E o resultado surpreendente.

Christopher Nolan talvez tenha encontrando o melhor meio-termo entre uma Hollywood de blockbusters e um cinema autoral com aspirações à reflexão e à complexidade. Foi assim que realizou Batman – O Cavaleiro das Trevas, o único filme de toda franquia Batman que de fato explora o universo cinzento e complexo do personagem, com inversões de papéis, questionamentos éticos e sua permanente experiência de solidão.

Somados a um desfecho perfeito na mitologia do personagem, Nolan realiza no filme do Homem Morcego a completa catarse do personagem e de sua intensa contenda interna sobre justiceiros de capa e capuz.

Talvez em A Origem Nolan não tenha ido tão fundo, mas certamente explora com bastante habilidade algumas questões do imaginário do sonho. E tudo a partir da fonte de Borges.

Não é à toa que uma das personagens se chama Ariadne. Referência clara ao mito do Minotauro e ao labirinto de Creta, figuras tão caras a Borges, como se pode ler no conto A Casa de Astérion, presente na coletânea O Aleph (favor não confundir com o livro homônimo que Paulo Coelho está lançando, comparar Borges a Coelho é como comparar Stephen Hawking à Mulher Melancia).

O mesmo se pode dizer dos diversos níveis do sonho, onde os personagens entram, tentando ir mais fundo na mente de sua vítima. O conceito do sonho dentro do sonho remete ao conto As Ruínas Circulares, da coletânea Ficções: “Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.”

Labirintos, espelhos, sonhos, paradoxos. Qualquer definição da literatura de Borges passará por esses termos. E estão todos lá, no filme de Nolan. Claro que longe da magnitude filosófica, literária e fantástica de Borges. Contudo, apenas o fato de estarem presentes e tão claramente fazendo referência a um gênio como ele e sua obra incrível, já dá ao filme e a Nolan um status um pouco acima de média do cinema industrial americano.

É verdade que a trama e a premissa do filme poderiam dispensar as perseguições, os tiroteios, as explosões e toda ação vazia que preenche o não-essencial do filme. Tudo isso poderia ser transformado em outra coisa menos banal e mais intrincada. Mas seria esperar muito de uma indústria. Afinal, se mesmo com uma história levemente intrincada, já foi preciso que alguns veículos de imprensa “explicassem” o filme para seus leitores, certamente um aprofundamento no universo borgiano “mataria” o filme e suas chances de bilheteria.

Nolan, consegue um equilíbrio perfeito entre a ação – necessidade de um tipo de público – e a referência inteligente e complexa – necessidade de um outro tipo de público. Com isso, o diretor parece querer provar ser possível um cinema de autor feito com os recursos e o formato dos grandes sucessos do “cinemão”.

Ao misturar Borges, ação desenfreada, concepção visual apurada (ainda que um pouco tímida diante das possibilidades visuais do sonho) e uma trama que exige um mínimo de atenção do público, Christopher Nolan prova sua habilidade como um diretor que não abre mão da bilheteria, mas faz questão de ser autoral num universo tão estéril quanto o do cinema comercial.

Impossível não olhar com otimismo e com bons olhos essa postura do diretor.

A Origem vem comprovar esse viés de seu realizador, por criar uma ficção de ação inspirada em obra tão singular como a do escritor argentino. É um filme que prende, que intriga e instiga, que faz querer mais. Tem, acima de tudo, qualidades inesperadas em uma produção desse porte, chega quase a ser ousado e só não o é por completo devido a desnecessárias e burocráticas sequências de ação. Descontando-se isso é um filme imperdível. Não vai, certamente, levar ninguém a ler Borges (uma pena), mas certamente proporcionará uma estimulante experiência dentro do cinema.
--

domingo, outubro 17, 2010

A Doce Vida

--
La Dolce Vita
Federico Fellini
Itália,1960
--

Em A Doce Vida, Fellini não economiza no cinismo e na ironia para demonstrar o vazio e a futilidade de uma classe social, montando um mosaico de esquetes que afunda os personagens que o compõe numa indistinta vaguidão de sentido nulo.

Não é à toa – nem deixa de ser um sinal para o nosso tempo – que o termo “paparazzi”, tão usual nos dias de hoje, tenha surgido desse filme: uma referência ao personagem Paparazzo, um fotógrafo que persegue as celebridades com sua câmera oportunista, sempre à procura de escândalo ou tragédia.

O filme possui uma linha narrativa fragmentada, é composto de diversos quadros, passagens onde surgem e desaparecem figuras emblemáticas de um universo afetado e estéril. Atravessando todas essas passagens está Marcello Rubini (Marcello Matroianni), um repórter boa vida que circula livremente pelo mundo dos ricos e famosos.

Mas ao contrário das pessoas que freqüentam as festas e orgias em mansões e castelos, ou a vida noturna de uma Roma desmistificada e às vezes sombria e suja, Marcello parece ter uma vaga noção do ridículo e da falta de significado daquela vida. Porém, ele não se entrega a uma verdadeira reflexão, se limita apenas a ver com algum desprezo e indiferença o grotesco de um mundo do qual não consegue se desvencilhar.

Mas esta visão de Marcello, essa auto-crítica ensaiada, não surge de imediato, ainda que já se a note desde o princípio do filme. Ela se desenvolve e se agrava na percepção do protagonista através do que se pode chamar de epifanias, momentos chaves, muitas vezes insólitos, que se sucedem ao longo do filme.

O termo “epifania” pode ter muitos significados, mas representa, numa acepção mais formal, a aparição de algo divino. Numa interpretação mais usual, simboliza a súbita percepção de algo, a compreensão definitiva de um conceito ou uma idéia, como o encaixe da última peça de um quebra-cabeça.

E o que Marcello vivencia, ao longo de quase todas as passagens do filme, são pequenas epifanias, que vão aos poucos lhe dando uma dimensão mais ou menos nítida, mais ou menos montada, do vazio em que ele vive e dentro do qual se vê preso. Serão estas pequenas e quase sempre sutis epifanias, que lhe darão uma dimensão mais apurada do universo sem sentido das vidas que o cercam.

Como, por exemplo, na passagem das duas crianças que afirmam ver e falar com Nossa Senhora e no modo como seus pais exploram isso. Ou ainda, e essa é mais sutil, a figura melancólica do palhaço da boate Cha Cha Cha, um dos momentos mais tocante do filme. Ou num diálogo surreal entre Marcelo e Madalena em salas separadas, ou no filicídio seguido de suicídio de um intelectual. Ou, por fim, numa das mais antológicas cenas da história do cinema, quando a atriz sueca Sylvia Rank (Anita Ekberg) entra vestida na Fonte de Trevi e languidamente pede que Marcello entre com ela.

É através dessas “visões” que Marcello vai tomando consciência de sua condição e da condição dos que vivem num mundo de hedonismo e vazio existencial. Isso o torna cada vez mais cínico, na medida que não consegue se ver fora desse mecanismo que o arrasta sempre para os mesmos lugares e pessoas.

Fellini constrói com A Doce Vida não apenas um mosaico crítico da burguesia hedonista, expondo suas afetações ridículas, suas conversas irrelevantes, seus prazeres fáceis, suas tentativas tolas de preenchimento do vazio. Revela também, através de seus personagens, uma visão da sociedade e de seu mal maior: a impossibilidade de entendimento, a dificuldade das pessoas em se comunicarem umas com as outras. Com isso Fellini aponta para um futuro de total desentendimento, de busca incessante da saciedade no insaciável; um futuro de uma babilônia bizarra e sem rumo.

E é na epifania final de Marcello que isso é melhor simbolizado, diante do mar ruidoso e da aparição de um espécime marinho que olha interrogativo a todos, estático e grotesco. E no surgimento de um “anjo”, que tenta dizer algo a Marcello, mas que, por estarem em margens diferentes e distantes demais, não se podem ouvir e seus gestos tornam-se tentativas inúteis de entendimento. Então Marcello, impotente, desiste e volta-se para os notívagos de mais um amanhecer pós-orgia, juntando-se a eles, vencido, de volta para sua doce vida. Ao “anjo”, só resta acenar.
--
 

Eu, Cinema Copyright © 2011 -- Powered by Blogger