Relembrar os melhores filmes de Martin Scorsese é fazer um
mergulho na violência e na sujeira das ruas de uma grande cidade. Mas também é fazer
um sobrevoo na psique desequilibrada de assassinos, criminosos e paranoicos.
Autor de uma obra consistente, mestre da tensão narrativa, Scorsese nunca
escondeu que o mundo perverso de seus personagens é um exorcismo de sua infância
difícil, da qual muitas vezes escapava através do cinema. E que foi pelo cinema
que se deu algo como uma salvação de sua alma.
Em A Invenção de Hugo
Cabret, a trajetória de seu pequeno protagonista, Hugo (Asa Butterfield),
reflete a mesma lógica por caminhos distintos. De certa forma, será o cinema –
e toda magia dedicada ao olhar deslumbrado da plateia – a salvação de Cabret; do personagem, e também do filme de Scorsese.
Porque ao se voltar pela
primeira vez para o universo infantil, e para a tecnologia 3D, o diretor realiza
um filme visualmente impecável, mas narrativamente problemático. De forma que
apenas quando o cinema entra de vez na história, esta cresce e se desdobra com
força e sentimento. Antes disso, porém, arrasta-se.
Hugo é um órfão que mora em uma estação de trem na Paris dos
anos 30. Seu trabalho consiste em manter os relógios da estação em ordem. Esta
tarefa foi herdada do tio beberrão, com quem foi morar após a morte do pai, um
relojoeiro que passou a Hugo sua paixão por máquinas e engrenagens. O tio, na verdade, desapareceu há algum tempo. Desde então, Hugo vive clandestino, realizando seu trabalho, roubando para sobreviver e tentando consertar um
autômato deixado por seu pai.
Um autômato é como um robô que depois de receber
corda realiza uma tarefa específica. O de Hugo parece ter sido programado para
escrever algo e o garoto alimenta algumas esperanças quanto ao conteúdo dessa
mensagem.
Para repor as peças que faltam, o garoto frequentemente
rouba de uma loja de conserto de brinquedos que há na estação. Uma loja que pertence
a um senhor com ar melancólico, mas que age com dureza quando flagra Hugo em
pleno delito, tomando dele uma caderneta de anotações sobre o autômato. Será na tentativa de recuperar estas anotações que o garoto
descobrirá que a senhor da triste figura é na verdade Georges Méliès, a quem se
julgava morto desde a Primeira Guerra Mundial.
Méliès foi o precursor do cinema como fantasia e imaginação
sem limites. A ele o cinema deve tudo. Realizador de mais de 500 filmes, mágico
ilusionista de profissão, Méliès introduziu no cinema os efeitos especiais,
misturando truques de mágica com efeitos de filme. Criou histórias fantásticas,
mundos incríveis, efeitos que até hoje surpreendem. Seu filme mais famoso é Viagem à Lua, de 1902, um dos poucos que
não se perdeu com o tempo.
O grande problema no filme de Scorsese está no andamento da
narrativa, algo que se oculta em parte por trás do uso extremamente bem
arquitetado do efeito 3D. Tecnicamente impecável, a tecnologia tridimensional é muito bem aproveitada na construção de
um universo rico em textura e profundidade. O efeito é eficaz ao nos introduzir
neste mundo através do olhar de Hugo.
Contudo, há na condução da trama
um arrasto desnecessário, uma certa demora de rodeio sem objetividade durante o
miolo do filme, quando todos os personagens já foram apresentados e a história simplesmente
não anda, dando voltas em torno de si mesma.
Com o carisma bastante limitado de Hugo no propósito de
comover o público com sua busca de menino órfão, a trama se enfraquece com personagens
bastante caricatos, mas que se repetem além do necessário. É o caso do inspetor
da estação que persegue Hugo. Interpretado pelo comediante Sacha Baron Cohen (famoso por seu personagem Borat), o inspetor é o alívio cômico que não funciona
e colabora para o arrasto da narrativa. Mesmo a presença marcante de Christopher
Lee como um livreiro “enciclopédico” pouco contribui para o fluxo do filme.
Quase tudo se perdoa quando chegamos ao terço final da
história e a comovente atuação de Bem Kingsley como Georges Méliès faz o filme
crescer substancialmente. É um prazer para os olhos de qualquer cinéfilo rever
as imagens dos filmes de Méliès retrabalhadas por Martin Scorsese para comporem
quadro junto ao 3D, alterando sua textura, mas preservando sua simplicidade. Assim como Scorsese, Hugo se encontra através do cinema. Encontra
um propósito para si e para todos a quem tocou em sua aventura. E ver no cinema este tipo de cinema, que resgata, que salva e modifica, é sempre um fabuloso deleite.
Não há dúvida que o diretor realizou uma obra de visual
encantador, nem há dúvida de que sua homenagem ao cinema, através da figura de Georges
Méliès – e seu recado sobre a importância da preservação dos filmes –, é de uma
delicadeza imensa. Mas nada disso deveria ocultar o fato de que na tentativa de
construir uma fábula infantil, carismática e de encanto, A Invenção de Hugo Cabret funciona com lacunas e falhas na condução do tempo. Mas nada grave o suficiente para diminuir sua beleza apuro técnico, além das emoções que seu final consegue despertar.
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Hugo
Martin Scorsese
EUA, 2011
126 min.
Trailer
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