terça-feira, dezembro 28, 2010

Leões e Cordeiros



Lions for Lambs
Robert Redford
EUA, 2007

“Leões e Cordeiros”, novo filme de Robert Redford (depois de sete anos sem filmar), é muito mais um exercício de retórica do que de cinema, mas ainda assim é uma bem construída peça de crítica e reflexão sobre a realidade política, noticiosa e juvenil da América pós Afeganistão/Iraque. E apenas isso já é massa crítica relevante suficiente para compensar a eventual digressão de linguagem, pendendo para retórica o que seria cinema.

A trama de “Leões e Cordeiros” se apresenta em três frentes distintas, aparentemente desconexas, mas que revelam, ao longo da projeção, estarem intimamente relacionadas.

Em Washington, uma jornalista experiente recebe de “presente” uma entrevista exclusiva com um senador republicano em franca ascendência política, onde ele lhe contará sobre uma nova estratégia ofensiva no Afeganistão que poderá, finalmente, pôr fim à guerra e iniciar a reconstrução do país.

Na Califórnia, um jovem e brilhante universitário, desiludido com a política, tem uma conversa intensa com seu professor de Ciência Política, onde este tentará dissuadi-lo de seu desinteresse.

No Afeganistão, dois soldados participam ativamente da nova operação arquitetada por Washington e se vêem, de repente, sob as conseqüências diretas das escolhas que fizeram em suas vidas.

O pilar do filme, mais do que tudo, são os diálogos. Pontos de vistas divergentes se enfrentam afiados, disparando mais que argumentos e contra-argumentos, disparando, sobretudo, farpas contundentes e atordoantes de ambos os lados.

E por “lados”, temos a jornalista opositora ao governo e o senador republicano entusiasta da guerra e da atual política norte-americana; temos o professor de ciência política e seu brilhante e articulado aluno, que iniciam um jogo de armadilhas que logo se transforma em um debate franco.

Já os dois soldados na frente de ação terão sua condição discursiva em flashbacks que os pontuarão na trama como elementos da realidade física, factual, para além do debate e da retórica. Pois os soldados não são discursos, teorias e argumentos; não são pontos de vistas, eles sofrem – e são - a conseqüência direta e real das teorias de gabinete e auditório. Eles são os que sangram, à frente dos que apenas falam.

Assim, entre blefes, dissimulações, atos destemperados e conseqüências trágicas, “Leões e Cordeiros” vai emaranhando uma trama de provocação e debate, mostrando lados distintos de questões pertinentes, entrelaçados entre si e com conseqüências para todos.

Pode-se dizer que o filme não lança luz a nenhuma questão abordada, ou que usa argumentos desgastados e nada originais nas questões sobre engajamento e política.

Mas não é sua intenção dar respostas, sua maior proposição é sacudir o pensamento acomodado do americano médio, desinteressado da realidade política, além de reacender o debate sobre a postura da imprensa norte-americana, questionando quando há notícia e quando há propaganda na divulgação de um fato. E, por fim, exibir a desiludida apatia de uma juventude sem grandes engajamentos ideológicos. 

Se os argumentos são velhos, é porque nada está mudando e a estupidez apenas se repetindo.

Ademais questões de cunho estritamente cinematográfico, o filme conta com uma edição eficiente, capaz de nos contar sua história e seus entrelaces de forma clara, sem apelar para grandes obviedades que ofendam a inteligência do público.

E se nomes como Maryl Streep, Robert Redford (que também atua no filme) e Tom Cruise (desse nunca espero muito) não trazem atuações à altura de seus nomes, tão pouco pecam no equilíbrio de seus personagens e não comprometem em nada o resultado final.

“Leões e Cordeiros” pode não ser um filme memorável ou fundamental, pode não ser genial ou revolucionário, mas conta com a exceção de ser inteligente e bem feito, de ter um roteiro bem montado e de ter a coragem de cutucar feridas velhas e recentes do orgulho americano. Mais do que isso: tem o grande mérito de, em tempos de apatia, ser intenso, franco e contundente.
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segunda-feira, dezembro 27, 2010

Tetro



Tetro
Francis Ford Coppola
Argentina, EUA, Espanha, Inglaterra, 2009

“Tetro”, novo filme de Francis Ford Coppola, não vinga. É como se faltasse alguma liga, um último ingrediente, ou a recombinação dos ingredientes existentes. A sensação que fica é de que o filme chega bem próximo do limiar para se tornar uma obra inesquecível, mas em algum ponto, em algum momento, ou talvez na apreciação do todo, retrocede.

Passado em Buenos Aires, com uma excelente fotografia em preto e branco, o filme conta a história de Tetro (Vincent Gallo), um escritor que abandonou sua obra antes de publicá-la. Afastado da família, casado e totalmente integrado à vida da cidade, recebe a visita de seu irmão caçula, Benjamin (Alden Ehrenreich).


Com a chegada desse último vínculo com a família, Tetro se verá às voltas com o passado, com os segredos de família, confrontado consigo mesmo e com sua obra inacabada.

Coppola opta por impor a seu filme um tratamento de melodrama, no qual a música sempre presente emoldura sentimentos. O filme é sobre rivalidade, mas também sobre ressentimentos insuperáveis.

Na composição dessa história familiar, tema tão caro ao diretor, como atesta sua filmografia, Coppola corre grandes riscos. Cria uma narrativa de andamento irregular, com situações que flertam, muito sutilmente, com o realismo fantástico da literatura latino-americana. Mas mesmo nisso não passa de uma superfície, muito mais de homenagem que de referência.

Com personagens inusitados, seja pela estranheza aparente ou estranheza interna, o filme constrói seu universo sobre esse estranhamento. Apresenta uma realidade muitas vezes pouco ortodoxa. Personagens como a “super” crítica Alone (Carmen Maura), ainda que de pouca participação, exerce sobre a trama uma relevância desconcertante e misteriosa.

No conjunto, “Tetro” se mostra uma obra ingênua, de pouca força dramática, apesar de todo o elenco estar ótimo em seus papeis, com destaque para a atriz Mirabel Verdú, que faz Miranda, esposa de Tetro. Mas isso não basta para levantar o filme.

No entanto, apesar dos bons ingredientes não funcionarem a contento para tornar o filme uma obra concisa, com rosto, corpo e alma (tem bem mais alma que corpo e nenhum rosto), uma coisa não se pode deixar de elogiar e atestar. Aos 70 anos, Coppola, um diretor de obra sedimentada numa qualidade incontestável e que poderia estar acomodado em fórmulas para repetir o mesmo, arrisca-se como um garoto num projeto ousado, tão ingênuo quanto juvenil.

Se “Tetro” não funciona como experiência dramática, nem como abordagem temática, é graças à coragem de seu diretor em correr riscos. Para um gigante do cinema, que já foi tão longe em sua arte, é sempre louvável e digno de aplauso sua disposição em correr riscos, em rejuvenescer-se, em reinventar. Mesmo que não dê certo, vale o risco e a coragem.

“Tetro” ficará com essa marca, a marca de um diretor que quis voltar a ser jovem, errou, mas não desaprendeu. “Tetro”, de forma alguma, ficará esquecido na filmografia do diretor. Mas se não alcança os melhores momentos, certamente não desmerece em nada o conjunto. Falta liga, sim, mas há em suas cores monocromáticas um tom de juventude e ingenuidade que quase o torna bom.
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domingo, dezembro 26, 2010

Top 10 2010

Não gosto de fazer listas de melhores. Acho restritivo, reducionista e simplificador demais. Pior ainda se for para colocar em ordem de importância.

Quase sempre, depois de publicar, a gente se lembra de algo que deveria ter entrado e ficou de fora.

Sem falar do fato de não ter-se visto tudo de bom que foi exibido no ano e assim a lista perde ainda mais significado e razão de existir. Mas o problema é que todo mundo gosta de listas. E eu acabo me rendendo. Abaixo segue minha lista dos 10 melhores filmes que vi em 2010 e uma breve justificativa. Naturalmente, não está em ordem de importância.

A Origem (de Christopher Nolan): a prova de que cinemão pode ser inteligente e bem amarrado. Um filme instigante que não duvida da inteligência do espectador.



O Segredo dos Seus Olhos (de Juan José Campanella): a narrativa clássica em ótimo estado. Um filme de força surpreendente e técnica impecável.



Abutres (de Pablo Trapero): Intenso, duro, agressivo. Trapero nos atinge com socos e pauladas num filme com cenas de fazer você se segurar na poltrona do cinema. Uma história forte e sem perdão.

Ilha do Medo (de Martin Scorsese): níveis de realidade se confundem numa história de assassinato e paranóia. Um filme que arrasta o espectador para dentro de uma trama sufocante, cheia de suspense e mistério.





Vincere (de Marco Bellochio): o grande cinema italiano, operístico, grandioso. A história por trás da História e a dúvida por trás da dúvida. Interpretações marcantes, fotografia impressionante  e uma história força arrebatadora.

Tropa de Elite 2 (de José Padilha): um claro amadurecimento, uma produção de qualidade técnica e com um roteiro instigante e agudo. Wagner Moura no ápice de uma interpretação humana, com tudo que o humano tem de ruim ou incerto.




Tudo Pode dar Certo (de Wood Allen): Allen repete-se a si mesmo, mas é dos poucos que pode fazê-lo com um filme acima da média. O retorno à Nova Yorque e ao personagem neurótico, mal-humorado e brilhante. É mais do mesmo, mas é um mesmo sempre muito bom.



Uma Noite em 67 (de Renato Terra e Ricardo Calil): documentário que tem o mérito de conseguir com grande acuidade reconstituir o espírito de um tempo. Depoimentos reveladores e imagens de arquivo inéditas.



O Profeta (de Jacques Audiard): o submundo da máfia num filme de construção do herói ao avesso. A transformação do personagem de um mero ladrãozinho rasteiro num figurão do crime. Audiad nos entrega um filme de gangster como não se via a algum tempo.




Insolação (de Felipe Hirsch e Daniela Thomas): cinema para poucos. A poesia literária em perfeita integração com a poesia da imagem. Desconexo, sentimental, transbordante. Menos uma narrativa, mais uma experiência. Delicado e cruel. Poesia.






E você? Quais os 10 melhores filmes que você viu em 2010?
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sábado, dezembro 25, 2010

O Casamento de Rachel



Rachel Getting Married
Jonathan Demme
EUA, 2008

Todo filme de casamento é igual. Ou ao menos tem uma sequência – a do casamento, claro – que é igual a todas as outras em qualquer filme.

Talvez a coisa mais fácil, a receita mais pronta para agradar ao público seja uma sequência de festa de casamento: tem a música, os personagens dançando, os personagens fazendo declarações de amor, ou de amizade, ou de admiração, ou de votos, entremeadas por piadinhas e coisas do gênero. Fórmula fácil de realizar e certeira em agradar. É por isso que na sequência da festa em “O Casamento de Rache”l nada há de novo. Contudo, as semelhanças entre este filme e um filme qualquer de casamento terminam por aí. 

“O Casamento de Rachel” é um filme sobre casamento, sim; mas neste caso o casamento é só a panela onde fervilhará anos de ressentimentos, culpas e transtornos familiares. Uma panela que ferve por baixo das aparências, das gentilezas, dos sorrisos, mas que está sempre pronta a explodir.

Anne Hathaway interpreta Kym, uma dependente química em reabilitação que recebe alta para ir ao casamento da irmã. Sua chegada, depois de meses internada, gera um disfarçado desconforto e uma constante tensão. Cercada de cuidados e carinhos pelo pai, recebida com afeto pela irmã e descaso pela melhor amiga da irmã (com quem não se dá bem), ela passa a se sentir sufocada e estranha.

É à partir do acúmulo lento de fatores que Kym passa a disputar atenção e querer seu espaço na família. Ela está em franco empenho no programa de 12 passos e busca no momento a reparação por seus erros do passado. Mas não deixa de ser a menina indômita que sempre foi e de sentir que é uma célula estranha naquele organismo familiar. 

Há também no passado dessa família uma tragédia não comentada, que marcou a todos e pela qual Kym se culpa e pela qual todos a culpam. Uma mancha nas relações que quase sempre está oculta por trás dos sorrisos, mas que virá à tona em algum momento.

O diretor Jonathan Demme conduz esse fio de conflito com um olhar quase documental, fazendo com que a câmera siga Kym pela casa. É um olhar quase testemunhal da solidão de Kym, seu estranhamento entre os cômodos, as pessoas e o passado.

O filme também tem o excelente mérito de fugir de estereótipos e definições muito claras sobre cada personagem. Assim, o que em princípio parece óbvio, no decorrer se mostra ambíguo. Há uma dissolução de margens, onde ora nos parece que Kym é vítima do acomodamento familiar conservador, ora a vemos como alguém que precisa chamar a atenção por egoísmo e capricho. Essa dissolução de fronteiras, das definições claras de “inocentes” e “culpados”, dá ao filme uma riqueza de possibilidades.

No final o que se vê é que as coisas seguem seus rumos e que todos, cada um a sua maneira - e nem sempre da maneira mais fácil –, tem de conviver com suas culpas e lembranças dolorosas. E que nem sempre existe maldade nas ações que machucam, elas às vezes simplesmente machucam e não há nada que se possa fazer depois para que doam menos.
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sexta-feira, dezembro 24, 2010

A Culpa é do Fidel



La Faute à Fidel
Julie Gravas
França, 2006

Em sua estréia na direção, Julie Gravas, filha do cultuado cineasta grego Costa-Gravas, consegue um feito notável: retratar um período da história recente com inteligência e sensibilidade, através de uma abordagem original na perspectiva.

O tempo da narrativa é o final dos anos 60 e começo dos 70. No pano de fundo do filme estão os ideais do socialismo e toda efervescência daqueles anos agitados. Estão presentes no cotidiano dos personagens figuras e fatos como a ditadura de Francisco Franco na Espanha, o pós-maio de 68 na França, a eleição de Salvador Allende no Chile (e sua posterior derrubada e assassinato pelo general Augusto Pinochet), a morte de Charles de Gaule e todo contexto político e ideológico da juventude socialista engajada daquele tempo.

Com isso, o filme poderia facilmente ser apenas mais um retrato de uma época, que a despeito de sua importância histórica e social já foi explorada à exaustão pelo cinema. Ou poderia ser mais um filme-denúncia, impregnado pelo memorialismo documental, panfletário e ideológico. Mas não é o que acontece.

O que Julie Gravas nos apresenta é uma perspectiva diferente, inovada, que dá ao filme graça e beleza pela inocência com que uma época nos é mostrada. E isso tudo se deve à personagem Anna. É pelos olhos de Anna que vemos esse tempo e é através dela que se filtra a realidade, quase sempre com um humor ingênuo, mas não sem alguma reflexão. E quem é Anna?

Anna é uma menina de 9 anos que tem uma vida confortável com seus pais e seu irmão caçula. Seu pai é advogado e sua mãe jornalista. No melhor sentido da palavra, Anna é uma princesinha: delicada, feminina e requintada. Gosta da vida que tem, do colégio de freiras onde estuda, das férias na casa dos avós em Bordeaux, das roupas bonitas que veste e da casa ampla onde vive. Logo no início do filme há uma cena em que Anna, numa festa de casamento, tenta, sem muito sucesso, ensinar seus primos a se portarem à mesa com educação e refinamento. Essa é Anna.

As coisas começam a mudar quando uma tia e sua prima vão morar em sua casa. Elas vêm da Espanha, fugidas da ditadura do General Franco. É à partir desse fato que, pouco a pouco, Anna vê seus pais se engajarem cada vez mais nos movimentos de esquerda e sua vida começar a mudar drasticamente.

Mudam-se para um apartamento pequeno, passam a comer comidas exóticas, trocam de babá freqüentemente (geralmente mulheres fugidas de regimes opressores da época) e mesmo ler os quadrinhos do Mickey Mouse é censurado por seus pais. Mais do que isso, pessoas estranhas passam a freqüentar a casa, homens de barba cerrada, cabelos desgrenhados e roupas estranhas em intermináveis reuniões com seus pais.

Toda essa mudança assusta Anna, que tem uma visão infantil e aterrorizada do que sejam comunistas. Para ela, comunistas são os “barbudos vermelhos” que querem fazer a guerra nuclear e tomar suas coisas. Anna também sente falta de sua vida antiga, se sente discriminada no colégio de freiras, pois foi impedida pelos pais de freqüentar as aulas de catecismo, tendo que se retirar da sala quando as aulas têm início. A reação de Anna, não poderia ser outra senão a rebeldia. Geniosa, determinada e de personalidade forte, ela contesta tudo, se rebela contra tudo, exige ter sua vida de volta.

O que os pais de Anna tentam é passar à filha noções de solidariedade e igualdade, a importância da liberdade e de um mundo mais justo. Esbarram, no entanto, na teimosia da filha, na sua carrancuda expressão que rejeita e contesta qualquer argumento. O que segue é um processo de tentativa e erro, onde Anna terá de aprender a crescer e a aceitar as mudanças, bem como as diferenças. Mas para isso, terá de vivenciar sua própria prova, sua própria experiência de crescimento, apesar de sua rejeição.

Há no filme uma cena antológica e delicada, quando um dos “barbudos” ensina a Anna, usando uma laranja como metáfora, os princípios de justiça social, concentração de renda e divisão de riquezas. E há, em contrapartida, outra cena onde Ana brinca de lojinha com os “barbudos”, vendendo produtos com lucros exorbitantes. Duas cenas que definem claramente a oposição de idéias, os arraigados preceitos de Anna, na inocência de seus 9 anos.

A pequena atriz Nina Kervel-Bey dá um show como Anna. Empresta à sua personagem uma expressão forte, de cenho quase sempre franzido e olhar penetrante. É, sem dúvida, um dos grandes motivos para se ver o filme. Sua atuação é impecável e representa grande parte de graça e beleza do filme.

A “Culpa é do Fidel” é, portanto, um filme divertido e raro. Mostra com inteligência e delicadeza o processo de aprendizagem e amadurecimento de Ana, que passa da rejeição à aceitação, cumprindo o árido caminho da revolta e da contestação. Ensina que as escolhas têm seu preço e que solidariedade é algo que se forma, não algo que se explica. Ensina, acima de tudo, que crescer pode ser um doloroso aprendizado, difícil e tortuoso. Mas que no fim os ganhos se mostram sempre maiores que as perdas.
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quarta-feira, dezembro 22, 2010

Ano Unha



Año Uña
Jonás Cuarón 
México, 2007

Pode ser precoce afirmar que o jovem Jonas Cuarón herdou de seu pai, Alfonso Cuarón, um talento requintado como diretor de cinema. Mas não é exagero afirmar que seu filme “Ano Unha” é um trabalho que impressiona pela ousadia e pela criatividade. 

“Ano Unha”, logo de cara, subverte a essência do cinema e sua premissa básica: a imagem em movimento. E com esse atrevimento põe de lado mais de um século de história da sétima arte para contar uma história simples a envolvente, tendo como ferramenta apenas diálogos, fluxos de pensamento e imagens estáticas.

Como o próprio Cuarón explicou ao final da exibição, durante um ano ele tirou fotos de tudo e de todos ao seu redor, especialmente de sua família, incluindo aí sua noiva. À partir da organização dessas fotos, Cuarón criou uma história fictícia, na qual as pessoas que aparecem nas fotos tornam-se personagens dessa história.

Assim, o filme é constituído por uma seqüência de fotografias, imagens estáticas, sobre as quais se constrói os dramas dos personagens, com diálogos inteligentes e pensamentos reveladores.

Crítica, envolvente e irônica, a narrativa parte de uma história comum para destilar nas entrelinhas do texto afiado coisas como a estereotipagem do preconceito, as febres da juventude, a busca por um norte na passagem para a vida adulta, as expectativas da paixão adolescente e suas comicidades e desconcertos.

Na história, Molly é uma universitária americana que vai ao México fazer intercâmbio de idioma. Diego é um mexicano imberbe que vive a febre da descoberta da sexualidade na adolescência e passa boa parte de seu tempo em devaneios eróticos protagonizados por sua prima.

Quando Molly e Diego se conhecem, surge uma relação que, num crescente delicado e engraçado, vai explorar os anseios hormonais do jovem mexicano e as fragilidades e inseguranças da universitária americana. E é a tensão superficial dessa química que manterá o expectador envolvido até o fim da película.

O grande mérito de Cuarón, não apenas como diretor, mas também como autor do roteiro, é o de fazer a platéia esquecer-se rapidamente da ausência de movimento das imagens e envolver-se rápida e intensamente com o drama dos personagens. Com isso, o que começa como uma aparentemente monótona sessão de slides com dublagem, logo se torna uma divertida história de amor impossível.

E tão envolvidos ficamos com a trama, que quase não se nota a transição das imagens do monocromático para o colorido, numa interessante alusão à memória das recordações, como explicou o diretor, que são menos nítidas à medida que se distanciam no tempo.

Ao subverter o suposto preceito básico do cinematógrafo - a captação do movimento – e tudo que dele adveio desde sua invenção em 1895, Jonás Cuarón mostra que o verdadeiro preceito básico do cinema é a narrativa. O movimento da imagem e com ele os grandiosos efeitos especiais que as tecnologias digitais trouxeram para o bem e para o mal do cinema de hoje podem ser nada, podem ser pó, sem uma história de verdade.

É o que nos revela o jovem Cuarón: que por trás de uma simplicidade criativa, mesmo sem movimento – mas sempre à partir da imagem -, é possível fazer bom cinema.
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Super Size Me – A Dieta do Palhaço



Super Size Me
Morgan Spurlock
USA, 2004

Todo documentário é uma armadilha. Das muitas formas de comunicação existentes, poucas podem se equiparar em poder de persuasão e manipulação da realidade como o audiovisual.  

Uma mostra bem acabada de como os limites entre a verdade e a ficcionalização da verdade podem ser nebulosos e discutíveis, está na nova onde de documentários nacionais que vão na linha de “Jogo de Cena” (Eduardo Coutinho) e “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (Karin Ainöuz e Marcelo Gomes). E a lição primordial que pode tirar de filmes como esses é uma só: desconfie.

Esta introdução não se presta a desqualificar o filme do qual vou falar, mas apenas como uma demonstração de isenção, ou tentativa de tal, na percepção de seu desenvolvimento e na busca de uma distinção entre verdade incontestável, verdade discutível e realidade manipulada. Conceitos que valem e se aplicam a qualquer filme do gênero.

Super Size Me, de Morgan Spurlock é um documentário no qual seu diretor se apresenta como cobaia de um dispositivo experimental que ele mesmo criou. Na tentativa de alertar ao mundo, em especial aos americanos, dos perigos da má alimentação, da obesidade e, principalmente, das redes de fast food, ele se propôs passar um mês sob uma rígida dieta integralmente feita de McDonalds.

As regras:

Durante um mês, fazer todas as refeições com alimentos vendidos nas lanchonetes Mcdonalds, inclusive a água, que deve ser comprada lá;

No período, deve provar ao menos uma vez todos os itens do cardápio;

Sempre que o atendente oferecer a opção tamanho gigante ou porção extra deve aceitá-las;

Durante este a experiência não deve praticar atividade física superior a de um americano médio, o que consiste em caminhar no máximo 5.000 passos por dia;

As conseqüências desse experimento vão sendo exibidas dia a adia, como um diário. Através de exames de sangue e de depoimentos do próprio Spurlock, vai-se acompanhando os efeitos que uma dieta como esta pode causar. Sintomas como depressão, impotência, dores de cabeça e até de dependência.

Mas Spurlock não transforma seu filme em uma peça panfletária pela alimentação saudável, e sim em um alerta contra a alimentação absolutamente não-saudável. Desta maneira, ao vermos o filme, temos uma experiência que nos chama a atenção para a seriedade da questão e como ela está presente na vida de todos nós.

E como já era de se esperar, os resultados finais são alarmantes. Ganho de peso muito rápido, fadiga, redução da libido, apatia, um alarmante desequilíbrio nos componentes sanguíneos e o que mais assombrou os médicos: uma transformação drástica em seu fígado, que praticamente se converteu em pura gordura.

É claro que “Super Size Me” foi planejado e executado para desqualificar a comida vendida nas redes de fast food, com ênfase no McDonalds, a maior e mais poderosa de todas. Não que isso constitua manipulação, pois os fatos nutricionais, a ciência, a nutrologia e o simples bom senso já mostram isso claramente e de forma incontestável. Mas também é evidente que o documentário de Spurlock se propõe a um radicalismo extremo. Radicalismo esse que, por outro lado, não foge tanto à realidade de uma parcela da população norte-americana, que chega a fazer mais de 5 refeições semanais em lanchonetes de fast food.

Além disso, é impossível não se assustar com certos números apresentados, bem como com os efeitos nocivos desse tipo de comida. Positivamente, o documentário não deixa de abordar a questão do sedentarismo, da educação e da mídia na responsabilidade pelo desastre de saúde pública que a obesidade e a má alimentação vêm causando na população dos EUA.

Ainda que ninguém, ou quase ninguém, seja louco o suficiente para fazer todas as suas refeições em redes de fast food, o filme funciona bem como alerta para os perigos desse tipo de alimentação. E ilustra muito bem como as corporações trabalham de forma a nos persuadir - a nós e às nossas crianças - a comer lá. E comer cada vez mais.

No final do filme, ao contrário do que se disse por aí, não fiquei com nojo de ir ao McDonalds, mas certamente fiquei muito mais restritivo quanto à minha freqüência mensal nesse tipo de estabelecimento. Se mais pessoas passarem a pensar duas ou mais vezes antes de se afundarem em toda aquela gordura e açúcar, melhor para a saúde de todos.

Fica então a dica de um filme que serve como alerta (sem o ranço do didático) e que mostra de maneira descontraída, mas sem perder a seriedade, o mal a que estamos todos sujeitos e sobre o qual quase nunca paramos para pensar, assim como quase nunca pensamos em recusar.
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terça-feira, dezembro 21, 2010

Os Indomáveis



3:10 To Yuma
James Mangold
EUA, 2007

“Os Indomáveis” (2007), refilmagem de “Galante e Sanguinário”, de 1957, é um filme sobre o embate de princípios. Um filme sobre a fé de um homem no caminho que decidiu trilhar e até onde está disposto a ir para chegar lá.

De um lado temos Dan Evans (Christian Bale), um fazendeiro endividado que corre o risco de perder suas terras. Embora tenha lutado na guerra e seja um exímio atirador, Evans é uma pessoa pacífica, que não acredita na violência. Mesmo quando seus credores incendeiam seu estábulo no meio da noite, ele se mantém firme em seus princípios. Do outro lado, temos Ben Wade (Russell Crowe), o temido líder de um bando que rouba, mata e aterroriza sem qualquer piedade.

Os caminhos de ambos se cruzam quando Wade é capturado e Evans, precisando de dinheiro, aceita receber uma boa quantia para ajudar a escoltar o bandido até a próxima cidade, onde ele será colocado num trem para a prisão de Yuma. Evans sabe que a tarefa é perigosa, pois o bando de Wade está solto e fará de tudo para resgatá-lo.

O embate entre Evans e Wade não se dá por armas, mas com palavras e gestos. O primeiro acredita em seus princípios e se preocupa em repassá-los aos dois filhos, de 14 e 8 anos. Contudo, sente brutalmente o peso de seu descrédito diante da família, que o julga covarde. Isso fica claro através da esposa, que evita olhá-lo nos olhos, e no desprezo que sente no olhar dos filhos. Já Wade representa o oposto. Ladrão e assassino frio, ele se mostra implacável mesmo entre seus homens, não hesitando em executar qualquer um que, por descuido, ponha em risco as ações do grupo.

Mas Wade não é um vilão caricato e estereotipado. Ele é galante, irônico, oblíquo e, mais que tudo, carismático. Sua crueldade confunde-se com seu charme, sarcasmo e cinismo. Mais uma vez, o oposto de Evans, que é um homem sisudo, quieto, introspectivo. Ambos, veladamente, defenderão suas posições, tendo como pêndulo que oscila entre um e outro o filho mais velho de Evans, dividido entre o fascínio pelo criminoso e o amor que resta por seu pai.

Entre tentativas de fuga e perseguições desenfreadas, entre demonstrações de crueldade e de retidão de princípios, o desfecho desse confronto se dá não no clichê de um longo tiroteio, mas num pequeno quarto de hotel. Ambos, desprezando o caráter um do outro, colocam suas cartas na mesa e seus princípios como aposta. Duas linhas divergentes, mas sempre muito próximas, para dispor seus argumentos, mostrando até onde se sustenta um ideal; seja pela convicção num credo particular, seja pela total ausência de credo.

Ainda que o diálogo no quarto de hotel, pouco antes do fim, seja o ponto alto do filme, é na sequência final que se mostra claramente quem venceu o embate. E essa demonstração virá num simbólico gesto de ira implacável, que poderá também significar a tomada de um outro rumo, ou a impossibilidade dele.

Esta surpresa final, sua dubiedade marcante, encerra com perfeição um filme que se susteve sempre no campo do ideal e do caráter. Um filme sobre as decisões que marcaram as vidas de dois homens e definiram seus destinos, para o bem ou para o mal, de maneira incontornável.
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Assista ao trailer de Os Indomáveis

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Um Pouco Mais Sobre A Rede Social


No que tenho lido sobre o filme “A Rede Social”, poucos parecem ter percebido o amargor do final de Mark Zuckerberg no filme. Sim, ele se tornou o mais jovem bilionário da história ao criar o Facebook. Mas no filme de David Fincher, seu final é sintomático do que ele criou para si mesmo e também do que ele é de fato: um silencioso vazio.

“A Rede Social” exibe Zuckerberg como um personagem amoral, embora não maléfico. Ele apenas age, aparentemente, sem a consciência de culpa, de ética ou de caráter. É quase um autômato. E a cena final, no meu entendimento, mostra que seus bilhões não foram suficientes para lhe dar o que de fato não custa nada: amigos.

Fincher não o condena a uma queda sem retorno por sua amoralidade, mas deixa uma dose de espinhos no final melancólico de Zuckerberg.

Sua cena final, esperando para ser aceito como amigo no site que ele mesmo criou, por uma pessoa que acabou de sair da sala onde ele estava, me parece triste e sintomático de sua solidão e de sua incapacidade de se relacionar com as pessoas no mundo real.

Agravante disso é o fato de o vermos dar um “refresh” na página regularmente, revelando uma expectativa que não corresponde à expressão em seu rosto. Aquilo, em essência, é Zuckerberg (o do filme, claro): um ser solitário, esperando ser aceito, mas sem demonstrar no rosto sua auto-desconhecida tragédia íntima.
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Platoon



Platoon
Oliver Stone
EUA, 1986

O cinema americano dos anos 80 foi recheado de filmes sobre a guerra do Vietnã. Entre o desconsolo e o ultra-patriotismo, os EUA pareciam querer tentar desvelar para si mesmo seu trauma pela guerra perdida e tentar entendê-la.

Contudo, poucos filmes buscaram um mergulho realista, pois quando não eram ufanistas e banais, exaltando o heroísmo dos soldados americanos por trás de uma vilania fabricada do inimigo, buscavam o choque pelo absurdo dentro do absurdo, como na excelente epopéia de Francis Ford Coppola: “Apocalypse Now”.

Mas é em “Platoon”, de Oliver Stone, que se vai muito além de tudo isso, justamente porque não se vai tão longe.

Lançado em 1986, “Platoon” trouxe para o cinema talvez a mais verdadeira história de guerra de seu tempo. Sem maquiar o conflito e nos jogando para dentro de sua mais franca objetividade: a falta de sentido. Se em “Apocalypse Now” Coppola já pincelava o absurdo da ausência de sentido com as cores fortes da esquizofrenia da guerra e seu lado mais lisérgico, em “Platoon” Oliver Stone a revela inteiramente real e desnorteante.

A percepção dessa banalidade bélica é mostrada pela “queda” de Chris (Charlie Sheen), o novato que chega ao pelotão de combate. Vindo de uma família abastada, larga os estudos para se alistar como voluntário, porque acredita em seu dever de defender os ideais de seu país. Sua “queda” inevitável será uma descida sem volta ao inferno. Nessa jornada de despertar, pouco a pouco irá perder sua inocência e tomar consciência da realidade da guerra. Seus ideais se esfacelarão frente a vivência do combate, através do qual percebe que a verdade vive dentro da completa ausência de verdades.

E quanto mais fundo Chris desce na lama da humanidade, mais se vê como parte dela, chafurdando junto aos companheiros, sem mais distinguir humanos de bestas, sem mais distinguir o certo do errado. Ali o que há é o horror. Horror que se manifesta na violência, no ódio, no abuso e na explosão da bestialidade humana. O que ocorre frente aos olhos de Chris é a desmistificação de qualquer ilusão. É a secura da realidade, da natureza humana e de sua animalidade latente vindo à tona em atos de covardia e sadismo.

O filme conta com atuações marcantes de Willem Dafoe e Tom Berenger como dois sargentos antagônicos em métodos e perspectiva de guerra, além da atuação excelente do próprio Charlie Sheen.

No final, “Platoon’ explica-se naquilo que não tem explicação, justamente por explorar a visão de dentro do combate e do dia-a-dia da guerra, transpondo para o expectador a mesma impressão dos soldados: a de absoluta falta de sentido. Não sem propriedade, já que o próprio Stone, também autor do roteiro, combateu no Vietnã e vivenciou a guerra e sua banalidade animalesca.

Em seu filme não nos poupa do horror, mas deixa claro, mesmo sem palavras, muito mais do que o final de “Apocalypse Now” de Coppola, onde as palavras “o horror, o horror” ressoam no desfecho como síntese da guerra. Em “Platoon”, as palavras finais não dizem, mas o que ouvimos de dentro do filme é também a síntese de qualquer guerra: o vazio, o vazio...
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