sexta-feira, junho 10, 2011

Entrevista: Bruno Safadi

Lançando seu segundo longa, diretor fala sobre a memória do cinema nacional, Rogério Sganzerla e seu ousado projeto: Operação Sônia Silk.

Bruno Safadi: diretor se queixa da má preservação da memória do cinema nacional
No amplo galpão da Cinemateca Brasileira, em uma noite fria do mês de junho, as mesas do café que funciona ali estão quase todas vazias. Exceto uma delas, em que se senta, solitário, o diretor Bruno Safadi. No silêncio do lugar, onde por 40 anos funcionou um matadouro municipal (de 1887 a 1927), a postura de Safadi (pernas juntas, tronco inclinado para frente, braços cruzados diante do corpo) é a típica postura de quem busca se aquecer. À sua frente, pousado na mesa, um pequeno copo com uma bebida de cor âmbar e aroma penetrante.

“É para espantar o frio”, diz ele sorrindo, se referindo à cachaça que o aguarda no copo. Simpático, convida-me a acompanhá-lo. Daí em diante o frio não demora a passar, graças também à boa conversa sobre cinema, memória nacional e projetos de filmes independentes.

Na próxima sexta-feria (10), entra em cartaz o documentário Belair, dirigido por Bruno em parceria com Noa Bressane. O filme resgata a história da produtora de mesmo nome, criada em 1970 por Rogério Sganzerla e Julio Bressane. Esta produtora, que nunca existiu no papel, realizou sete filmes em apenas quatro meses e teve sua duração abreviada pela ditadura.

Os filmes da Belair nunca chegaram a entrar em cartaz e corriam o risco de caírem no esquecimento. Até que em 2000, Bruno e o amigo Leonardo Duarte decidiram recuperar esses filmes e organizar uma mostra para exibi-los. Vendo que também a história por trás desses filmes merecia ser contada, Bruno se juntou a Noa Bressane para fazê-lo. Nasce desse esforço o documentário Belair.

Noa e Bruno não estão ligados a esses filmes e à sua história por acaso. Ela é filha de Júlio Bressane e Bruno começou sua carreira como assistente do diretor. Este é o segundo longa metragem dele, que em 2002 realizou o Meu Nome é Dindi, que tinha no papel principal a atriz Djin Sganzerla, filha do mítico Rogério Sganzerla, morto em 2004. 

Nesta entrevista, Bruno fala sobre o difícil trabalho de realizar o documentário, do descaso com que se trata a memória do cinema nacional e de como foi conhecer pessoalmente Rogério Sganzerla. E fala também de seu próximo projeto, no qual pretende realizar três longas em apenas um mês.

Eu, Cinema: Com apenas 19 anos você foi trabalhar como assistente em um filme do Júlio Bressane, um dos mais sérios diretores do cinema brasileiro. Como vocês se conheceram?

Bruno Safadi: No começo do ano 2000 eu e o Leonardo [Duarte] estávamos começando a organizar a mostra Belair. Eu fiquei responsável por falar com o Rogério [Sganzerla] e ele com o Júlio [Bressane]. Eu não conhecia o Júlio ainda, mas o Leonardo já tinha sido assistente dele. No meio do ano, o Júlio foi fazer o Dias de Nietzsche em Turim e chamou o Leonardo para ser diretor de produção do filme. Como eu já tinha feito um filme com o Leonardo e ele tinha ficado muito agradecido, me convidou para trabalhar também na produção do filme. Chegando lá, o Júlio se aproximou e falou comigo sobre a mostra que eu estava organizando com o Leonardo, falou que achava bacana e foi super receptivo com a ideia. Depois das filmagens, a gente foi ver o copião – naquele tempo ainda se usava copião – e o Júlio me convidou para ser assistente dele na montagem. Foi aí que eu virei assistente dele.
O Júlio Bressane está entre os mais respeitados diretores brasileiros, seus filmes fazem parte de diferentes fases da história do nosso cinema. Como foi trabalhar com um diretor tão experiente e importante sendo você tão jovem?

Foi uma experiência incrível. Mas é engraçado pensar nisso agora, porque quando você vive uma época, vive uma idade, você nunca tem essa dimensão, você apenas vive o presente. Naquela época eu achava que já era um adulto, que já estava fazendo as coisas. O Júlio é uma pessoa muito generosa, mas tem uma carga de erudição muito grande e por isso muita gente tem dificuldade de se aproximar dele. Eu lembro que na primeira reunião de produção do Dias de Nietzsche em Turim, quando eu tinha acabado de conhecer o Júlio, no final da reunião eu perguntei: “Júlio, como é que você pensa em fazer a luz do filme?”. Era uma pergunta completamente descabida para a minha posição, que, por inexperiência, soltei ali na hora. Mas como o Júlio é um diretor muito artístico, que não está ligado nessas coisas de mercado, de hierarquia, nessas coisas de “quem é você pra me perguntar o quê?”, ele gostou da pergunta. E respondeu e começou a falar de como seria a luz no filme. Naquela época, por coincidência, o autor que eu mais lia era justamente o Nietzsche. Tinha lido vários livros dele, muito precocemente, talvez nem preparado para ler aquilo. Mas achava que podia ler e lia. Então eu conseguia conversar sobre o Nietzsche com o Júlio e também sobre a Belair, que pra ele foi a grande coisa que ele fez no cinema. Então todo dia, no final da produção, ficávamos conversando. Ele contando histórias da Belair, histórias do Nietzsche e eu adorando aquilo. Eu estava no paraíso. Estava fazendo um filme com Júlio Bressane, ganhando um salário e ouvindo ele me contar histórias da Belair e do Nietzsche.

Depois dessa primeira experiência, como seguiu sua careira no cinema?

Naquele primeiro momento o Júlio já me dava muita força para eu ser diretor. Ele me deu muito impulso pra começar a fazer curtas metragens. Os curtas saíram, foram dando certo, sendo selecionados para festivais importantes aqui e lá fora. Mas eu fiz também uma longa carreira como assistente de direção, que foi o que bancou meus curtas. Fiz quatro filmes como assistente do Júlio, depois trabalhei como assistente do Nelson Pereira dos Santos, fui assistente do Ivan Cardoso. E ia fazendo curtas, até fazer meu primeiro longa, Meu Nome é Dindi (2007). Que é um orgulho pra mim, porque foi um longa totalmente independente. Foi filmado em uma semana, mas com muito rigor. O Lula Carvalho fotografou, a Djin [Sganzerla], que é filha do Rogério e da Ignês [Helena Ignês, viúva de Rogério Sganzerla e atriz de muitos de seus filmes] foi a protagonista.

Como foi sua convivência com o Rogério Sganzerla?
Conheci Rogério em 2000, quando fiquei encarregado de falar com ele para a mostra Belair, enquanto o Leonardo falava com o Júlio Bressane. O Rogério foi maravilhoso, ficou muito entusiasmado. Era diferente do Júlio, que gostava da ideia, colaborava com as informações, mas sem se envolver, sem sair de casa. O Rogério era diferente, ele ia toda sexta-feira comigo na cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo). Desde o primeiro dia que eu telefonei ele se entusiasmou com a mostra e começou a ir comigo atrás dos filmes. A gente passou cerca de dez meses fazendo isso. Claro que com intervalos, mas quase toda sexta-feira a gente ia lá. E achamos os filmes, foi incrível. Assim, acabei conhecendo e convivendo um tempo com o Rogério.

Você também chegou a trabalhar com o Rogério na montagem de uma peça. Conta um pouco dessa experiência.

Eu trabalhei rapidamente na montagem de Savannah Bay, que o Rogério dirigiu. É um texto da Marguerite Duras e a peça era protagonizada pela Helena Ignês e a Djin Sganzerla. Foi na montagem do Rio que eu tive a oportunidade de trabalhar, de ajudá-los ali. Eu nunca tinha visto o Rogério dirigindo e ali eu tive essa experiência. Foi algo muito forte vê-lo trabalhando. Ele era um diretor de palavras muito precisas e isso me impressionou bastante. A escolha das palavras, a direção que ele dava, era de uma precisão que eu nunca tinha visto. E ao mesmo tempo um gênio. Duro, radical. Muito diferente do Júlio, com quem eu estava acostumado e que é um doce, um gentleman, tudo com ele é com muito carinho, muita educação, fala baixo e tal. E o Rogério era como um raio, era uma explosão, mas de uma precisão realmente espantosa. Mas essa experiência foi no teatro, não foi no cinema. Não tive a oportunidade de fazer um filme com ele, infelizmente.

Na pesquisa para a mostra Belair, como foi esse processo de encontrar os filmes?

Teve momentos lindos e teve momentos muito tristes. A gente contou com a ajuda do Hernani Heffner, que é conservador da Cinemateca do MAM até hoje. O Hernani foi uma pessoa muito importante para o processo. Ele era o cara que realmente metia a mão ali, que ia atrás dos filmes. Um momento triste foi quando a gente descobriu a perda do filme Carnaval na Lama. Quando abrimos a lata, o negativo tinha virado uma gelatina, a prata tinha se soltado. Foi muito triste. Por outro lado, encontramos uma cópia de Copacaban Mon Amour, um filme que estava meio perdido e a cópia estava em bom estado. Se não me engano, é a única cópia que tem dele até hoje.

Quando você e a Noa Bressane resolvem fazer o documentário “Belair”, o material que você já tinha pesquisado para a mostra deve ter ajudado muito, obviamente. Mas, além disso, vocês precisaram levantar muito mais material?

Sim, tivemos que achar muito mais coisa. A mostra foi feita com apenas quatro filmes da Belair, que foi o que a gente achou naquele momento. Foram os filmes Copacabana Mon Amour, Sem Essa, Aranha, A Família do Barulho e Barão Olavo. Passaram-se cinco anos, eu fui fazendo outras coisas. Quando a gente resolveu fazer o filme, com um prêmio que a gente ganhou da Petrobrás para realizar, foi aí que a gente teve que se debruçar pra fazer as coisas. Porque uma coisa é fazer uma mostra, ir lá e exibir os filmes, outra é fazer um filme sobre a história da Belair. Claro que a gente sabia desde o princípio que os filmes é que seriam os protagonistas do nosso filme. Mas quando a gente se aproximou dessa pesquisa da história da Belair a gente viu que não tinha nada.

Então foi quase como começar do zero?

Quase. Tínhamos os filmes, mas precisávamos de mais coisas para contar a história. A gente tinha o Júlio muito próximo, mas precisava mais, até mesmo para a gente. Eu tinha ouvido as histórias durante anos, através do Júlio, mas não dava para fazer um filme só com a voz do Júlio, sem ouvir outras pessoas. Então fomos à cinemateca do MAM, ao arquivo nacional, fomos ao MIS (Museu da Imagem e do Som) e a diversos órgãos de memória e preservação e vimos que não tinha nada sobre a Belair. Nada. Não havia nada. Apenas algumas matérias de jornal, mas que terminavam em 1969 e só voltavam em 1990. O Rogério até escrevia alguns artigos nos jornais, no final dos anos 70, mas também não era sobre a Belair. Sobre a Belair mesmo não tinha nada. Então criamos uma pesquisa. Entrevistamos 40 pessoas, gente que tinha envolvimento direto e indireto com a produtora. Geramos um material enorme de entrevistas. Mas essas entrevistas não tem nenhuma no filme, elas serviram como base para a gente. Foram fundamentais, mas não entraram no filme.

Por que não entraram?

Existia um medo grande nosso. Havia ali uma responsabilidade muito grande. Não se podia fazer um filme sobre a Belair que fosse jornalístico, de entrevistas, careta. Nós tínhamos que fazer um filme que conversasse com a linguagem dos filmes da Belair e esse foi nosso grande desafio.

Foi difícil encontrar o caminho dessa linguagem na hora de montar?

Nós passamos um ano montando. E esse tempo foi fundamental para o filme. Nos primeiros quatro meses a gente só viu as imagens, não montamos nada, só ficamos olhando. Olhando e separando. Então fizemos uma pausa. A Noa foi ter filho e eu fui lançar o Meu Nome é Dindi. Depois, quando voltamos, montamos rápido. Foram quatro meses de montagem, direto.

Depois de todo esse processo, tanto na organização da mostra, quanto na pesquisa de material para o filme, como você vê a preservação da memória do cinema brasileiro?

Muito mal. O que se faz com a memória do cinema nacional é um crime. Até há algumas iniciativas, com patrocínio da Petrobrás, com a Unesco, mas não sei se ainda continua. A verdade é que não há memória do cinema no Brasil. O que se perde de filmes é absurdo. A própria obra do Rogério é um exemplo de descaso. Foi enviado por cinco anos consecutivos o pedido de restauração para a Petrobrás e foi negado todas as vezes. Agora imagina, um dos três maiores diretores do cinema brasileiro! O Copacabana, Mon Amour, a gente levou para um laboratório para escanear os negativos e os negativos estavam totalmente apodrecidos, do primeiro ao último fotograma. Tiramos fotos do estado da película e mandamos para a Sinai [Sinai Sganzerla, primeira filha de Rogério Sganzerla com Helena Ignês]. Ela novamente mandou pedido de restauro para a Petrobrás e mandou as fotos junto. Acho que as fotos foram fundamentais, porque aí eles aceitaram fazer restauro desse filme.

Em São Paulo, Belair entra em cartaz dia 10, certo?

Sim, no Reserva Cultural. Eles pediram exclusividade na exibição do filme, pra poder manter mais tempo. É bom, acho que vão tratar o filme com carinho.

Para você, que conviveu com dois ícones do que ficou conhecido como cinema marginal, olhando agora para a atual configuração do nosso cinema, quem hoje é marginal no cinema brasileiro?

A ideia de marginal mudou muito nesses 40 anos. A ideia de se classificar como marginal, naquela época, foi para marginalizar mesmo. Foi uma nomenclatura muito pejorativa. Imagina, vivendo a ditadura mais feroz, você chamar um artista de marginal. Era pra ficar fora de tudo, para não ter acesso ao dinheiro, foi uma coisa muito negativa. Mas o termo marginal, nesses 40 anos, virou até uma coisa boa e hoje a margem cresceu tanto que virou centro. Hoje é o centro que está indo atrás da margem.

Seu próximo filme vai se chamar Éden e fala sobre os evangélicos. Como está esse projeto?

Está complicado. Você sabe como é difícil fazer cinema aqui no Brasil, no sentido de fazer um filme um pouco mais “oficial”. Para o Éden, eu ganhei um prêmio da Petrobrás pra fazer, de seiscentos mil. E eu preciso de mais quatrocentos mil pra filmar. Faz um ano que estou tentado conseguir esses quatrocentos e até agora não consegui. Mas estou aí, querendo filmar esse ano ainda. Estou tentando conseguir verba de distribuidor, verba de editais. Mas, por incrível que pareça, ainda há uma desconfiança muito grande com esse tipo de filme mais artístico. Principalmente nesse meio do cinema mais “oficial”. Ninguém acredita. Hoje a mentalidade desses agentes de mercado é só dinheiro. Acabou esse negócio de cinema autoral, de acreditar nisso. E o Éden é um filme que vai falar de igreja evangélica, o que poderia trazer público. Mas tem um projeto para fazer antes, esse sim mais radical.

Que projeto é esse?

Chama-se Operação Sônia Silk. Como você sabe, Sônia Silk é o nome da personagem protagonista de Copacabana Mon Amour. Inspirados pelos filmes da Belair, nós vamos fazer três longas em um mês. Eu, o Felipe Bragança e o Ricardo Pretti. É um projeto, assim, pra fazer com nada. Nosso orçamento está cada vez menor. Ontem eu estava com o Ricardo e a gente está pensando em fazer com 40 mil, os três filmes. Pensamos assim: a gente vende pro Canal Brasil por 10 mil cada filme, faz um rateio, cada um coloca mais 3 mil do bolso e faz. Vai ser um filme de cada um, a gente já tem uns roteirinhos. Mas estou achando que vamos ter que enxugar ainda mais, talvez fazer com 30 mil. É muito pouco, mas eu acho que quando você tem pouco dinheiro acaba sendo mais criativo. E a gente tem que radicalizar de alguma forma, porque senão fica essa média que está aí, inexpressiva.
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