quarta-feira, novembro 25, 2015

Mudando de plataforma



Pessoal, estou publicando meus textos sobre cinema e sobre outros temas na plataforma Medium. É só clicar aqui.

Ainda não sei se vou transferir todo o conteúdo do Eu, Cinema para lá. Por enquanto, estou só explorando e vendo qual é a melhor forma de publicar. Então, entrem lá, recomendem, sigam e comentem. Valeu!

domingo, junho 28, 2015

A Lição

Logo na primeira cena, o caráter da protagonista de A Lição ganha um contorno nítido e sublinhado. A sólida e veemente austeridade com que reage diante de uma acusação de roubo na sala de aula onde leciona inglês não deixa dúvida sobre sua rigidez moral. Mais do que o exemplo a ser transmitido para a classe, vemos que sua indignação é autêntica. Um roubo, dentro dos seus valores pessoais, é algo absolutamente inaceitável.

A construção desse pilar moral na forma de uma professora de ensino médio será reforçada no semblante sempre duro e nos passos firmes, sonoros, ritmados por um caminhar obstinado. E também pelo contraste entre ela e toda a iniquidade com que vai deparar ao longo do filme. A começar pelo marido.

Um dia, ao voltar do trabalho, descobre que está a três dias de perder sua casa. As prestações não foram pagas. O marido, desempregado, a quem ela confiava o dinheiro, gastou com outras coisas. Eles e a filha de quatro anos serão despejados.

Começa aí uma descida em espiral ao inferno para tentar conseguir reverter a situação. Cada volta dessa trajetória colocará a professora – e seus princípios – diante de níveis crescentes de sordidez, fraqueza moral, corrupção, leviandade e desespero. Gradativamente, a estrutura sólida dessa mulher-pilar vai receber bombardeios que desafiarão sua resistência e colocarão em xeque a retidão de seu caráter.

O peso desse drama e das convicções abaladas estará presente na fisicalidade da personagem, muito mais do que nos diálogos. Como quando ela se vê obrigada a percorrer a pé vários quilômetros até sua casa. A exaustão da caminhada – assim como a exaustão de sua jornada para não perder a casa e a exaustão de se manter correta frente a tanta corrupção e indolência – estará inteiramente representada no caminhar dessa cena. A forma como a outrora obstinação, o passo firme e a postura altiva dão lugar a um andar manco, curvado e incerto, formam uma comovente metáfora do espírito da professora naquele momento.

Ao mesmo tempo que revela a força do desespero no declínio das convicções do caráter, A Lição traz também um retrato crítico da burocracia do estado, da ineficiência de seus instrumentos e da contaminação de suas estruturas pela ação corrupta e marginal de seus agentes. Acima de tudo, mostra o desamparo do cidadão diante de uma situação anacrônica, que muitas vezes resvala no kafkiano.

Ao encerrar seu ciclo de volta à sala de aula em uma cena final desconcertante, A Lição se revela um filme que desconstrói visões maniqueístas e coloca os princípios éticos em uma dúvida fundamental. Não se trata de justificar desvios morais, mas de mostrar que por trás de cada gesto torto pode existir mais complexidade do que a simples falta de caráter.
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Urok
Kristina Grozeva e Petar Valchanov
Bulgária/Grécia, 2014
105 min.

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segunda-feira, maio 11, 2015

Entre Abelhas

A primeira sensação causada pelo cartaz do filme Entre Abelhas é de estranhamento. Do título que não diz nada à figura do ator Fábio Porchat com expressão grave, quase melancólica, a confusão é imediata. Comédia ou drama?

Nem tanto ao mar, nem tanto á terra, Entre Abelhas se coloca no meio do caminho. Enquadra-se melhor na falta de esquadro. Se gêneros são formas de facilitar a catalogação das coisas (facilidade para explicar, facilidade para entender, facilidade para rotular), a dificuldade de ajustá-las dentro disso gera sempre algum desconforto. Tratando-se de cinema, isso é, no mínimo, bom sinal.

Bruno (Porchat) acaba de se separar da mulher. Na sua “despedida de casado”, cercado de amigos e de mulheres em um puteiro, parece não se divertir tanto assim. Perguntado por uma das prostitutas sobre o que motivou a separação, descobre que não sabe a resposta. Um indício, contudo, pode estar numa cadeira vermelha que o protagonista nota no recinto. É o primeiro passo para o insólito.

Aos poucos, Bruno vai deixando de enxergar as pessoas. Literalmente. Ele simplesmente não as vê. Um skate que corre sem ninguém em cima, um esbarrão aparentemente sem sentido, um ônibus que para no ponto, abre a porta e ninguém desce. Gradativamente, o insólito vai tomando conta da vida de Bruno à medida que sua separação vai se tornando mais sólida, visivelmente sem volta.

Morando com a mãe – uma Irene Ravache na medida para o papel –, experimenta situações cômicas quando ela tenta ajudar. Grande parte da graça do filme vem da troca bem azeitada entre Ravache e Porchat. Outra parte vem de alguns rostos e nomes que ficaram conhecidos a partir do fenômeno Porta dos Fundos. É de onde vem também a direção.

Ian Sbf dirige e coassina o roteiro com Porchat. Nesta direção, é possível notar alguns vícios de quem está acostumado a filmar para a internet, como o uso insistente de planos fechados. Mesmo assim, o filme tem um ritmo afinado, sem sobras ou excessos no desenvolvimento da trama. Aproveita ainda o cenário de um Rio de Janeiro longe dos clichês turísticos, mais urbano, concentrado em lugares normais e pessoas comuns. Um espaço adequado para a construção do personagem e seu distúrbio.

Assim, a solidão e a depressão encontram na crescente invisibilidade dos outros uma metáfora óbvia, porém eficiente. Ela serve corretamente para criar uma atmosfera na qual o inusitado da situação equilibra aquilo há de cômico e o que há de triste. Em alguns momentos, o filme alcança uma beleza singular, como nas caminhadas de Bruno pelas ruas, cercado – e tentando não esbarrar – em pessoas que não vê.

A graça, por sua vez, é meio torta. Habita situações cômicas que de tão improváveis resultam em um riso muitas vezes atravessado. Aproxima-se do nonsense, mas uma certa gravidade limita os exageros e isso funciona bem.

Fábio Porchat não decepciona como ator dramático. Mantém seu gestual contido e dosa a veia cômica, sustentando o perfil dramático de seu personagem sem afundá-lo completamente. Por mais contraditório que possa parecer para um filme que tem sua base no improvável, este equilíbrio cria um protagonista mais próximo da realidade. Mais reconhecível, portanto.

Na sua proposta, Entre Abelhas se coloca em um difícil equilíbrio. Porém, com poucos deslizes, consegue sustentar sua trajetória. Se o roteiro apela para algumas facilidades na resolução de conflitos paralelos – que, na verdade, se mostram absolutamente desnecessários para a trama, como o problema extraconjugal do melhor amigo –, seu desfecho permite um sorriso bem resolvido no rosto do espectador.
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Entre Abelhas
Ian Sbf
Brasil, 2015
99 min.

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sexta-feira, abril 24, 2015

Jauja

Parte do conflito sobre o qual se apoia Jauja, filme do argentino Lisandro Alonso, se estabelece logo no primeiro plano. A janela escolhida pelo diretor, de formato quadrado e cantos arredondados, causa estranheza. Não apenas porque está em desuso, mas principalmente pelo modo como ela restringe a amplitude da paisagem, notadamente imensa.

Este formato – que remete ao início do cinema, às fotografias antigas e, para os mais jovens, às fotos no Instagram – será o limitador da vastidão que acompanha a narrativa e envolve os personagens. O conflito está na sensação de aprisionamento que esta janela impõe à paisagem, como se ali existisse uma permanente medição de forças entre a imensidão que quer extravasar o quadro e a determinação do quadro em contê-la.

Um embate que, de uma maneira diversa, também será vivenciado pelo engenheiro militar dinamarquês Gunnar Dinesen (Viggo Mortensen). Na Argentina do século 19, na desértica região da Patagônia, ele e sua filha de 15 anos, Ingeborg (Viilbjørk Malling Agger), iniciam o filme com um diálogo inocente. Falam sobre um cão que ele promete comprar para ela quando regressarem à Dinamarca.

Gunnar está incumbido de supervisionar uma escavação, mas isso só se saberá depois, quando sua filha já tiver sido levada. Antes disso, o embate entre o homem educado e a terra selvagem ganhará os primeiros contornos no contato com os outros homens do grupo. Um desconforto presente no modo como um deles corteja sua filha e no tom desumano com que se refere aos habitantes primitivos da região.

Os diálogos precisos no início ajudam a dar o tom de deslocamento que ocupará quase todo o restante da narrativa, quando o engenheiro inicia sua busca desesperada pela filha.

A terra inóspita, o deserto amplo, a perseguição obstinada, a selvageria aparente dos nativos e o homem civilizado em seu dólmã militar remetem imediatamente a um clássico do cinema: Rastros de Ódio (The Searchers, 1956), de John Ford, que mostra uma situação similar. Ambos trazem, sob perspectivas diferentes, uma representação do homem “branco” imiscuído em terras – e povos e culturas – estranhas, onde não são bem-vindos.

Lisandro, porém, não segue caminhos objetivos. Está mais interessado em outros níveis dessa relação entre conquistado e conquistador. Mas não de forma fácil.

O grande confronto do protagonista será com a paisagem, mais do que com a selvageria. Há ali uma beleza passivamente agressiva, de horizonte largo, sempre restringido pela tela. Em uma das mais belas cenas do filme, vemos Gunnar ser engolido pela noite e pelo céu de estrelas quando se deita sobre uma pedra. Ele é o elemento que será completamente absorvido pela imensidão do deserto, por tudo que ele tem de árido e também de onírico.

Não há exatamente um roteiro ou uma trama. Há apenas o homem e a natureza. O registro é quase documental, realista na forma, na fotografia e no modo de seguir o personagem. Mas nunca se aproxima o suficiente, nunca delineia seu caráter ou nuanças de seu perfil.

O que o filme constrói é menos uma narrativa e mais uma travessia em que as camadas do real se transformam, se subvertem, perdem seus contornos sem que o registro mude, sem que haja qualquer indicação de alternância do espaço-tempo. Isso só fica evidente em uma ruptura final, totalmente desconexa do que se via até então. Essa mudança traz dezenas de perguntas que abrem caminhos para múltiplas interpretações. Cabe ao espectador criar a sua.

Sair de um filme com dúvidas é algo que o massivo cinema comercial nos fez desaprender. A segurança de uma compreensão plena e mastigada da narrativa se transformou em uma satisfação de consumo. Jauja não vai atender a essa satisfação. Qualquer certeza que se crie que pode ser facilmente esmagada. Da mesma forma que o quadro do filme esmaga a paisagem e a paisagem esmaga seu intruso personagem.
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Jauja
Lisandro Alonso
Argentina/Dinamarca/França/México/EUA/Alemanha/Brasil/Holanda, 2014
109 min.


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sexta-feira, março 20, 2015

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

Dois elementos se destacam no modo como Birdman apresenta ao espectador sua narrativa: a metalinguagem e o artifício. Duas características que se completam ao longo do filme, mas que, de tão evidentes, acabam por ofuscar sua principal razão de ser, que é nos fazer mergulhar na crise e na transformação de seu protagonista.

Riggan Thomson (Michael Keaton) é um ator que, anos atrás, atuou em uma franquia cinematográfica de super-herói. Agora, longe das telas e dos trajes colantes, tenta sair do ostracismo e, mais importante, ganhar prestígio artístico. Para isso, investe toda sua energia na adaptação para o teatro de um texto do conceituado escritor americano Raymond Carver (1938-1988). Peça que, além de adaptar, vai dirigir e atuar. Uma empreitada ousada, através da qual enfrentará uma crise consigo mesmo e com todos que o cercam.

No desenvolvimento dessa crise, a metalinguagem e o artifício ocuparão papel de destaque. A relação direta entre a história do personagem central e a do ator que o interpreta é a primeira delas. Entre o final dos anos 80 e início dos 90, Keaton estrelou dois filmes do Batman. Depois disso, não se pode dizer que sua carreira tenha caminhado na melhor direção possível. Esta relação metalinguística entre ator e personagem se estende até a óbvia semelhança que há na sonoridade das palavras Batman e Birdman.

Já o artifício, está naquilo que o diretor, o mexicano Alejandro González Iñárritu, leva às últimas consequências: o plano sequência. Uma estrutura narrativa apoiada na intrincada elaboração de um plano único, sem cortes, durante todo o filme. Efeito, claro, de evidente simulacro, uma vez que os cortes existem e muitos deles são perfeitamente perceptíveis, ainda que disfarçados. Nada, entretanto, que diminua a execução impecável de filmar longos minutos sem interrupção, quase sempre com atores em movimento e com mudanças de cenário.

A partir desta estrutura contínua, Iñárritu estabelece uma relação espaço-temporal bem amarrada, em que novamente a metalinguagem chama a atenção. No seu modo de compor a passagem do tempo, o filme, na sua sequencialidade, apresenta saltos temporais dentro do mesmo espaço cênico, criando um efeito que é naturalmente peculiar à narrativa teatral.

O artifício da continuidade temporal cria, assim, uma intensidade e um desconforto, enquanto acompanhamos a descida ao inferno que se torna a vida de Thomson. O modo como a câmera o segue provoca um efeito que transmite um tipo de claustrofobia que se intensifica gradativamente.

Contudo, apesar das qualidades, Birdman sofre do mal da pretensão. No trânsito de seu personagem por uma travessia íntima, exposta também externamente, com seu obsessivo desejo de se tornar algo que ele próprio não está convicto do que seja – e suas inseguranças, incertezas e fragilidades –, o filme resvala em temas diversos, com provocações que querem parecer elaboradas, mas não vão além da superficialidade.

Além da crise de identidade, tenta ainda trazer alfinetadas na crítica cultural, analisar a relação problemática entre pai e filha, traduzir os anseios de personagens secundários, discutir a superficialidade da indústria de entretenimento e ainda expor a dicotomia entre o cinema comercial de Hollywood e a aspiração à uma arte maior do teatro na Broadway. Nesta pretensão, não chega a se perder a ponto de não retomar seu centro narrativo, mas patina mais que o necessário sem alcançar nada de substancial.

Na verdade, sua principal substância fica perto de ser sufocada debaixo de tanto artifício e pretensão. Birdman é um filme sobre a transformação interna de seu personagem, uma transformação traumática que será metaforizada tanto física como fantasticamente, quase de forma esquizofrênica.

Aspectos como morte e renascimento, queda e ascensão, estarão figurados como parte de algo que será interno e grandioso, algo que, tendo sua boa dose de natureza humana, não deixa de trazer na essência o orgulho, a vaidade, o desejo de aceitação, o reconhecimento e a fragilidade inerente a tudo isso. É o que faz de Birdman um bom filme. Mesmo que sustentado por efeitos e aspirações maiores do que ele próprio.
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Birdman: Or (The Unexpected Virtue of Ignorance)
Alejandro González Iñárritu
EUA, 2014
119min.

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terça-feira, janeiro 06, 2015

O Abutre

Duas camadas seguem paralelas enquanto se desenvolve a narrativa de O Abutre. A primeira, mais elementar, traz de forma objetiva um retrato do jornalismo sensacionalista da televisão, recheado de tragédias, mortes violentas e imagens chocantes. A segunda, menos óbvia, reflete o discurso estéril que permeia o mundo corporativo e a voracidade acrítica que impulsiona carreiras. Em ambas, a indiferença e a amoralidade se tornarão um incômodo reflexo no qual não nos vemos, mas por trás do qual estamos.

Luis Bloom (Jake Gyllenhaal) inicia o filme como um “ladrão de galinhas”. Garante seu sustento equilibrista com furtos que vão de cercas de arame a bicicletas. Mas ele tem o que alguns chamariam de brilho nos olhos: iniciativa e senso de oportunidade. Descobre que pode ganhar uma grana fazendo imagens de acidentes para emissoras de televisão. Basta um rádio que capte a frequência da polícia, uma filmadora e, de preferência, chegar antes dos outros repórteres que, como ele passará a fazer, vagam na noite à caça de desgraças para serem exibidas durante o café da manhã das audiências.

Em pouco tempo ganha a confiança da editora de um telejornal matinal, Nina (Rene Russo), com a qual vai desenvolver uma relação de poder e fascínio com toques de chantagem e dominação.

É natural que O Abutre seja facilmente visto como um filme que faz uma reflexão sobre o sensacionalismo sangrento do qual se alimenta grande parte do jornalismo de hoje. Mas esta camada óbvia perde um pouco de sua prevalência ao se perceber que Bloom carrega traços claros de sociopatia. Ou seja, ele é incapaz de demonstrar qualquer empatia, qualquer sentimento de compaixão pelas pessoas, sejam as vítimas das tragédias ou as pessoas com as quais interage.

Este traço, construído de forma impecável pela excelente atuação de Gyllenhaal, faz toda a diferença, porque o transforma em uma figura absolutamente amoral que em momento algum reflete sobre a ausência de ética no que faz. Não há culpa, não há conflito interno, não há dúvida ou hesitação. E se não há conflitos não há limites e sem limites não há margens para delinear alguma reflexão.

Ao excluir o conflito ético e moral de sua narrativa, Dan Gilroy – roteirista que com este filme faz uma boa estreia na direção –, esteriliza a reflexão filosófica. Isso anula parte da primeira camada e, subjetivamente, deixa que a segunda se sobreponha. Nesta, a sociopatia de Bloom se reveste de seu espírito empreendedor e a soma desses dois fatores garantem seu sucesso.

Ele tem ensaiado o discurso vazio que tanto encanta os autômatos do mundo corporativo, que engolem e reproduzem mecanicamente conceitos motivacionais para uma bem sucedida carreira profissional. Manipulador por excelência, ao usar esse discurso com sua entonação de fala ensaiada, programada para surtir um efeito premeditado, deixa também evidente a natureza falsa e vazia de toda essa cultura que move o mundo das corporações e seus trabalhadores adestrados e condicionados.

Bloom pronuncia sua filosofia “management” com o mesmo vazio de sentimento que dedica, no olhar, para as pessoas. É este vazio que deixa evidente o oco e a amoralidade que também existe no mundo dos grandes conglomerados e na lógica da ascensão profissional desenfreada que se alimenta da ausência de sentido, reflexão e senso crítico.

Com esta inversão que alterna camadas, O Abutre explora e revela aspectos que permeiam a realidade. A reflexão que ele propõe não está nos atos de seu protagonista, mas naquilo e naqueles que alimentam esses atos. Seja como consumidores das imagens chocantes de acidentes e tragédias – na televisão ou na internet –, seja como perpetuadores dessa visão corporativa de voracidade ambiciosa sustentada por um discurso vazio e pernicioso.
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Nightcrawler
Dan Gilroy
EUA, 2014
117 min.

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sábado, dezembro 06, 2014

O Homem Duplicado


É somente no instante final de sua insólita jornada que O Homem Duplicado entrega a chave de sua estrutura desconcertante. Um desfecho que faz do filme uma obra de efeito retroativo, que se remonta na memória logo após o último plano. Não se trata, porém, de uma resposta definitiva para as tantas incertezas que a narrativa alimenta. É muito mais a confirmação de uma perspectiva a partir da qual tudo se reconfigura.

Jake Gyllenhaal interpreta Adam, um pacato professor de história que um dia, ao ver um filme, nota que um figurante se parece muito com ele. Ao fazer uma pesquisa com o nome do ator, percebe que não se trata apenas de uma semelhança: eles são idênticos. Após uma estranha hesitação e usando caminhos improváveis, o encontro de ambos mostrará que a identicidade entre eles vai muito além do que a realidade permite como natural.

Baseando-se na obra homônima do escritor português José Saramago, o diretor canadense Denis Villeneuve dá a seu sexto filme a consistência do sonho e o tom do desconforto.  Longe, contudo, de se diluir no clichê de uma jornada onírica, faz da singularidade de seus personagens matéria para a construção de um incômodo crescente, quase exasperante.

Primeiro, porque a ação nunca toma o rumo do senso comum. A começar pelos personagens, elípticos no seu desenvolvimento e fragmentados nas suas atitudes. Segundo, porque cria uma atmosfera também desconfortável, com uma fotografia artificial e opressiva em tons sépia. O efeito é disruptivo. Se, por um lado, nos mantêm desconectados do protagonista, sem gerar empatia ou identificação, por outro, a trama insólita nos prende pela curiosidade, pelo que há de intrigante nos seus desdobramentos. Prende como em uma teia de aranha.

Não por acaso, a figura do aracnídeo desempenha um papel enigmático, sendo representado em diversos momentos. Inicialmente, em uma cena fetichista, dentro do contexto de erotização que permeia o filme, depois, em diversas referências subjetivas. Sua representação é ao mesmo tempo uma linha condutora e um limiar da realidade, que no final se transforma em uma ressignificação imprecisa e fantástica, mas ao mesmo tempo definitiva.

É esta a chave que abre novas possibilidades e nos leva ao retrospecto da trama. Ao fazê-lo, nos empurra a vivenciar, de certa forma, a experiência de seu personagem, que terá no cíclico e na repetição um fator determinante dentro do tipo de aprisionamento que experimenta. Porque é de aprisionamento, em amplo aspecto, que trata O Homem Duplicado.

Mais importante do que compreender com exatidão a jornada de personagens improváveis e o cruzamento de suas personas, é entender que o que se dá na tela acontece em um nível de realidade que não necessariamente se enquadra no real. Isto se nota já nas reações de Adam diante da descoberta de seu suposto duplo. A hesitação e a insegurança de suas ações colocam seu desconcerto em um patamar de interioridade, sobre o qual está parte das relações de causa e efeito que o filme propõe.

Toda esta construção que a direção de Villeneuve e a ótima atuação de Gyllenhaal desempenham se aproximam com sucesso do universo recorrente na obra de Saramago, que o filme absorve, filtra e trata com satisfatória dignidade.

O Homem Duplicado se calca, sobretudo, no desconforto, mas seu grande achado está no efeito cíclico. A repetição como forma de controle, abordada durante uma aula de história, mostra-se um tipo de aprisionamento, uma teia envolvente e inescapável. A duplicação de que trata seu título e que sua trama constrói dentro do insólito seria uma fuga possível, uma troca ou inversão que poderia funcionar como escape. Mas seu final é contundente na representação da impossibilidade dessa fuga.
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Enemy
Denis Villeneuve
Canadá/Espanha, 2013
90 min.

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segunda-feira, dezembro 01, 2014

Quando Eu Era Vivo

Em Quando Eu Era Vivo, notas e ecos de O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski, fazem-se audíveis. Primeiro, pela semelhança de certa melodia; segundo, pela cooptação que a trama estabelece a certa altura entre personagens; e, terceiro, pelo apartamento como espaço para o desenvolvimento da tensão e do terror. Um mesmo apartamento que, em outra chave de referência, pode ser colocado como gatilho da insanidade, a exemplo do hotel Overloock em O Iluminado, de Stanley Kubrick.

Falar em referências, contudo, não é comparar obras; é tão somente situá-las. As proporções ficam devidamente guardadas. Mas, a julgar pelas influências – e mesmo sendo este apenas seu segundo longa metragem –, parece certo afirmar que o diretor Marco Dutra caminha na direção do terror psicológico.

Já em sua estreia em longas, em parceria com Juliana Rojas, Trabalhar Cansa flertava com o sobrenatural e o insólito. Não apenas na figura inexplicável de uma monstruosa carcaça emparedada, mas no registro tenso e gélido que ambientava um pequeno mercadinho de bairro.

Contudo, naquele primeiro filme sentia-se a força de aspectos sociais, que iam das relações de classe às psiconeuroses de classe média (um indício, em termos de cinema nacional, do que seria posteriormente decupado com mais profundidade em O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho). Já em Quando Eu Era Vivo, saem os elementos sócio-desconstrutivos para ficar apenas o mal-estar crescente e perturbador.

Júnior (Marat Descartes), separado da mulher, vai passar um tempo no apartamento de seu pai, Sênior (Antônio Fagundes), que aluga um quarto para a jovem estudante de música Bruna (Sandy Leah, da extinta dupla Sandy e Júnior).

Já de início, notamos um constrangido estranhamento entre pai e filho. Uma situação que vai se agravar à medida que Júnior recoloca na casa objetos do passado que seu pai mantinha trancados. Resgata-se, cada vez com mais força, a memória da mãe falecida, que era praticante de ocultismo. Especialmente uma fita VHS, a partir da qual surgem memórias que se confundem com sonhos que se confundem com o vídeo.

Marco Dutra assume nesta obra o sobrenatural e o cinema de gênero, mas se vale de sutileza e personalidade na construção do terror. Acha um bom equilíbrio entre aquilo que explica e aquilo que fica em suspenso e utiliza muito bem os elementos clássicos do terror moderno. Efeitos sonoros precisos, imagens antigas e uma cenografia e iluminação que se transformam ao longo do filme dão o tom da transformação pela qual o protagonista vai passando.

É essa transformação um dos aspectos em que o filme se sai melhor, porque trabalha sempre no desenvolvimento de uma atmosfera que fica cada vez mais sombria e perturbadora. É como se o apartamento transformasse Júnior à medida que este transforma o apartamento, mas tudo conduzido com sutileza e ritmo, evocando ao mesmo tempo a tensão, o medo e o fascínio.

O gatilho definitivo é uma partitura encontrada com uma mensagem cifrada no verso. Esse é outro clichê de gênero, mas que aqui funciona como catalisador de um fenômeno que o filme já construiu com suavidade. Por isso, a partitura é muito mais um elo do que um eixo. Assim, o melhor de Quando Eu Era Vivo não está na solução do mistério, mas na sua construção.

Marat Descartes encarna muito bem esse personagem que se perturba ao cavoucar o passado e sustenta na interpretação a sutileza que o filme propõe. Antônio Fagundes, que há nove anos não fazia cinema, compõe um personagem que traz uma leve ambiguidade com tons de fragilidade. Já Sandy, na contracena com os dois atores experientes, não desaponta, embora na (sempre injusta, mas inevitável) comparação, destoe sensivelmente, sem que isso, afinal, prejudique qualquer aspecto do filme.

No entanto, sem qualquer responsabilidade da atriz, é em Bruna que o filme tem seu ponto narrativo mais frágil. O desenvolvimento dessa personagem carece de elementos que sustentem a guinada que ela dá a partir de certo momento. Essa superficialidade e má definição de seu caráter tira parte da força da participação que ela tem no desfecho da história. Se ela deveria representar a inocência que também se transforma, faltou ao filme dar espaço para que essa personalidade se desenvolvesse.

Baseado no livro A Arte de Produzir Efeito Sem Causa, de Lourenço Mutarelli, Quando Eu Era Vivo utiliza clichês do gênero terror para construir uma trama que provoca seu efeito mais básico – medo e tensão – com muita eficiência. Mas o faz sem se valer de facilidades e estabelece uma ralação mais profunda entre causa e efeito. Aqui, o sobrenatural não é um mal que se encerra puramente na maldade, mas um fator que evoca, acima de tudo, os internos aspectos humanos.
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Quando Eu Era Vivo
Marco Dutra
Brasil, 2014
108 min.

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terça-feira, novembro 25, 2014

Interestelar


Diferentemente do que pode parecer em uma primeira análise, Interestelar não é um filme pretensioso. Portanto, comparações com 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, e Solaris, de Andrei Tarkovsky, soam como aproximações preguiçosas. Estes filmes apresentam uma reflexão profunda e colocam o espectador na incerteza provocativa sem respostas definitivas.

Já o filme de Christopher Nolan permanece no campo que ele conhece bem: a superfície de princípios complexos mantidos dentro de razoável inteligibilidade para satisfação do grande público. Não há pretensão nisso. Até porque, no final, todas as respostas estão lá, mastigadas. As que não estão se deve menos a uma intenção reflexiva e muito mais à incapacidade do filme em amarrar os elementos do roteiro.

Em um futuro próximo, Cooper (Matthew McConaughey) é um engenheiro e ex-piloto da NASA, viúvo e pai de dois filhos. Como a maioria das pessoas na Terra, teve de abandonar sua carreira para se tornar fazendeiro e ajudar a suprir um colapso global de abastecimento de alimentos. Mas a ameaça da fome se junta agora a uma iminente extinção da vida humana no planeta, provocada por mudanças climáticas. É quando Cooper descobre que a NASA, que se pensava estar desativada, mantém um programa secreto para encontrar outro planeta capaz de abrigar vida humana. Cooper, então, é convidado a comandar a missão exploratória.

É neste momento que o filme joga fora grande parte de seu potencial. Porque se a ficção de um modo geral se baseia muitas vezes na suspensão da descrença, é sabido que esse efeito não nasce do nada: é preciso construí-lo. Mas aqui não se trata de acreditar na história, na viagem, na tecnologia ou nos fenômenos quânticos da física, trata-se de acreditar no protagonista.

Do momento em que Cooper descobre a missão – fato que vem acompanhado por uma típica sequência de explicações didáticas no estilo “visita monitorada a museu” – até sua decisão de deixar filhos, vida, fazenda, planeta e galáxia para trás, não há tempo nem construção narrativa suficiente para dar a dimensão de sua escolha. Essa falha é mais grave quando se percebe que todo o desenvolvimento dramático de seu personagem será ancorado exatamente nessa escolha, na perda e riscos que ela impõe.

Por deixar de lado essa amarração tão básica, o filme esteriliza ainda mais o que já nasce sob o risco do estéril. Se não há na sua travessia pretensões filosóficas ou grandes temas humanos (ao menos não tratados com o mínimo de seriedade e perspectiva), diante do didatismo de suas explicações o que sobra é o exibicionismo visual.

O resultado só não é totalmente ruim porque nesse quesito Nolan costuma se sair bem. No caso, sai-se melhor ainda por ter sido fiel na representação de alguns fenômenos comprovados pela ciência, como buracos negros giratórios, distorção do espaço-tempo pela ação gravitacional e o ainda polêmico, mas sempre discutido, buraco de minhoca.

Em sua composição visual, o filme impressiona. Não é difícil deslumbrar-se com o desenvolvimento de seu segundo ato, quando mergulhamos na viagem e nos deparamos com o desconhecido. Ali, o diretor mostra competência na criação de uma atmosfera angustiante, fazendo bom uso da montagem paralela para estabelecer uma conexão forte entre os acontecimentos da missão e os acontecimentos na Terra. É quando se tem a melhor fruição do filme, apesar do exagerado falatório explicativo dos personagens.

Contudo, falta silêncio em Interestelar. Perdem-se, assim, grandes oportunidades de não falar nada. Como na irritante tentativa de qualificar o Amor como um elemento que faz parte do enlace quântico do espaço-tempo. Isso é piorado pela solução imaginativa para resolver o último embaraço da trama, quando o filme culmina em uma experiência multidimensional que soa estimulante e fabulosa no início, mas diluída e sem nexo sob um segundo olhar.

Com suas fragilidades – entre as quais está a atuação de todo elenco, com exceção de Jessica Chastain, única capaz de transmitir alguma emoção –, Interestelar fica como uma boa sinfonia sem alma. Isso porque tenta impor um sentimentalismo que se pretende tão grande quanto a distância intergaláctica que percorre o filme. Todo esse sentimento só evidencia a esterilidade de seu conjunto, que se mostra imenso e justo ao tratar do cosmo, mas decepcionante quando se trata da dimensão humana.
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Interstellar
Christopher Nolan
EUA/Reino Unido, 2014
169 min.

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segunda-feira, outubro 20, 2014

O Retorno de Antígona

Uma série de imagens pontua as transições da narrativa de O Retorno de Antígona. Em quase todas, paisagens imóveis. A mais sintomática revela as hélices paradas em uma usina de energia eólica, como se nem o vendo se movesse naquela parte do interior da Grécia. É esta estagnação a metáfora que o filme utiliza para nos antecipar o que logo se percebe no desenrolar da história.

Antígona (Marina Symeou) é essa mulher que volta à sua cidade depois de anos vivendo na capital Atenas. Ao descer do trem, um velho, única figura humana na plataforma deserta, pergunta se ela não cometeu um engano ao desembarcar ali. Ninguém desembarca naquela cidade, diz ele, pouco depois de avisar que uma tempestade estava a caminho. O velho, aqui, faz as vezes de oráculo.

Do nome da protagonista aos elementos que logo se apresentam, incluindo o fato elementar de ser um filme grego, não há dúvida sobre como a obra quer dialogar com a figura de Antígona, personagem da clássica mitologia grega cuja tragédia foi interpretada na peça escrita pelo por Sófocles, há 2.500 anos.

Entre as muitas interpretações desse mito, pode-se dizer que Antígona representa uma força feminina que se rebela contra o poder dos homens. Este é um paralelo que o filme faz, numa tentativa de sutileza para construir sua tragédia, mas que não oferece nada de muito sutil.

A sociedade que a Antígona do filme encontra não está simplesmente estagnada. Vive em num limbo de cinismo, covardia, omissão, acomodação e submissão. Um estado de letargia que é estranho à protagonista, tanto pela sua natureza contestadora como pela sua vivência cosmopolita.

Neste contexto, ela se vê incomodada com arbitrariedades e violências presentes na postura dos homens que detém algum poder na cidade. Um incômodo que ela estende sobre os outros que vivem lá, acomodados na inanição que permite o exercício desse poder machista e misógino.

Não se trata, contudo, de um choque o que ela experimenta em seu retorno. Ao menos não de imediato. Se o principal problema do filme é trabalhar com metáforas pobres em sutilezas, sua qualidade está em não promover o choque logo de partida. A construção desse enfrentamento leva tempo para surgir, e as relações que o filme estabelece já prenunciam a tensão.

Contudo, é na costura dessa tensão que mais se fragiliza a narrativa. Ao optar por uma montagem que adia informações na tentativa de criar suspense e curiosidade, o que se consegue é apenas desperdiçar o bom material explosivo presente na trama. Isso faz com que o crescente do agravamento da situação dos personagens só ganhe a dimensão de sua gravidade e perigo perto do fim.

Como não é incomum no cinema grego construir-se em torno do conflito velado entre o arcaico e o moderno, O Retorno de Antígona estabelece este conflito na independência que a protagonista exercita e no contraste disso com a quase nula independência dos demais personagens.

Nesta construção, o filme cresce nos minutos finais, quando a tragédia se aproxima. Mas é um efeito que não deixa de se apresentar diluído pelo caminho frágil que conduziu as coisas até ali, o que afeta não apenas o resultado final, mas a própria experiência da narrativa.
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Na kathesai kai na koitas
Giorgos Servetas
Grécia, 2013
98 min.

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domingo, agosto 24, 2014

O Mercado de Notícias


O grande achado de Jorge Furtado em seu novo filme não é apenas a fina ironia que se costura na tela, mas principalmente o modo como esta ironia revela a espantosa atualidade de uma peça de teatro escrita no século 17, encenada pela primeira vez na Londres de 1626.

Escrita pelo dramaturgo inglês Ben Jonson (1572-1637), a peça faz uma crítica aguda e irônica a uma novidade que começava a surgir naquele tempo: os primeiros jornais.

É a partir do texto de Jonson que Furtado costura seu documentário, entrelaçando trechos de uma montagem da peça - feita exclusivamente para o filme - e entrevistas com 13 jornalistas renomados. O assunto das entrevistas é o jornalismo, sempre sob o viés de seus vícios inerentes, mecanismos obscuros e desvios de princípios.

Mas a opção de traçar um paralelo entre uma obra de quase 400 anos e a realidade do jornalismo vai além do espanto causado pela pertinência que a peça sustenta até os dias de hoje. O fino desta sutileza está no intrínseco arranjo entre o que há de real nas entrevistas e o que há de ficção na representação da peça. Porque é justamente a ficção dentro do noticiário a questão mais contundente abordada em O Mercado de Notícias.

O exemplo que mais salta aos olhos é o caso do “Picasso” do INSS, que, exposto no filme, levou o jornal Folha de S.Paulo a se retratar com dez anos de atraso. Em 2004, o jornal deu primeira página para uma foto que mostrava um quadro de Pablo Picasso decorando uma sala do prédio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) em Brasília.

A matéria afirmava que o quadro era autêntico. Tratava-se, contudo, de um pôster, desses que se compra por US$ 20,00 na loja do Museu Metropolitan, em Nova York, onde está o quadro verdadeiro. O tamanho e a gravidade do erro levam, inevitavelmente, à pergunta: engano ou má fé?

Este e outros casos de “erros” mostrados pelo documentário revelam não apenas o que eles podem ter de má apuração jornalística, mas o que talvez tenham de ficção deliberada, publicada com a intenção de semear no leitor uma ideia. No caso do falso Picasso, reforçar no leitor a ideia de uma generalizada ignorância e desconhecimento de arte em todos os níveis do governo, reflexo de se ter na presidência um ignorante mal alfabetizado - no caso, o presidente Lula.

A partir deste viés “ficcional”, O Mercado de Notícias revela com inteligência e sofisticação o que de mais grave ocorre (talvez com mais frequência do que imaginemos) nos chamados veículos de imprensa. Justamente aqueles que têm (ou deveriam ter) como princípio pétreo a reprodução da verdade e do factual.

Porém, mesmo esta costura bem executa não impede que boa parte do filme gire em torno de mais do mesmo. É que os depoimentos dos entrevistados, em sua maior parte, trazem as mesmas questões de sempre e as mesmas observações de sempre quando se coloca a imprensa no divã.

Algumas dessas questões são desde sempre inerentes ao jornalismo, como a utopia da imparcialidade e a sempre relativa verdade. Outras questões nascem da crise desencadeada pela era digital, como os novos meios de se consumir notícia e o surgimento dos blogs jornalísticos. Em quase todas as abordagens, nada de realmente novo é dito.
Mesmo assim, o espectador poderá se surpreender com o que de mais claro o filme constrói, que é um tipo de cinismo que permeia, quase que obrigatoriamente, o exercício da profissão de jornalista. O que fica evidente tanto na peça do século 17 quanto em boa parte dos depoimentos.

Independente do novo ou do velho que traga o filme, a honestidade com que Jorge Furtado mergulha no assunto já é mérito mais que o suficiente para assisti-lo. Esta honestidade e este mergulho extrapolam o aspecto meramente fílmico e se espalha pela internet, no site www.omercadodenoticias.com.br. Neste endereço, pode-se saber dos bastidores da produção, acessar mais detalhes dos casos reais levantados pelo filme e assistir na íntegra as entrevistas realizadas.

Sem pessimismo nem ingenuidade, O Mercado de Notícias não é uma crítica à imprensa e ao jornalismo, mas uma tentativa de reflexão que não deixa de expor a vertente mais desonrosa da profissão, que é quando se deixa de lado o fato para ceder à tentação (e aos interesses) do ficcional.

Assim, com sua estrutura bem arquitetada, o documentário reconstrói com fatos e exemplos aquilo que já em 1962 John Ford arrematava na cena final de seu clássico O Homem que Matou o Facínora: “Quando a lenda se torna fato, publique-se a lenda”.
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O Mercado de Notícias
Jorge Furtado
Brasil, 2014
94 min.

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