É somente no instante final de sua insólita jornada que O Homem Duplicado entrega a chave de sua
estrutura desconcertante. Um desfecho que faz do filme uma obra de efeito
retroativo, que se remonta na memória logo após o último plano. Não se trata,
porém, de uma resposta definitiva para as tantas incertezas que a narrativa
alimenta. É muito mais a confirmação de uma perspectiva a partir da qual tudo
se reconfigura.
Jake Gyllenhaal interpreta Adam, um pacato professor de
história que um dia, ao ver um filme, nota que um figurante se parece muito com
ele. Ao fazer uma pesquisa com o nome do ator, percebe que não se trata apenas de
uma semelhança: eles são idênticos. Após uma estranha hesitação e usando
caminhos improváveis, o encontro de ambos mostrará que a identicidade entre
eles vai muito além do que a realidade permite como natural.
Baseando-se na obra homônima do escritor português José
Saramago, o diretor canadense Denis Villeneuve dá a seu sexto filme a
consistência do sonho e o tom do desconforto. Longe, contudo, de se diluir no clichê de uma
jornada onírica, faz da singularidade de seus personagens matéria para a
construção de um incômodo crescente, quase exasperante.
Primeiro, porque a ação nunca toma o rumo do senso comum. A
começar pelos personagens, elípticos no seu desenvolvimento e fragmentados nas
suas atitudes. Segundo, porque cria uma atmosfera também desconfortável, com
uma fotografia artificial e opressiva em tons sépia. O efeito é disruptivo. Se,
por um lado, nos mantêm desconectados do protagonista, sem gerar empatia ou
identificação, por outro, a trama insólita nos prende pela curiosidade, pelo
que há de intrigante nos seus desdobramentos. Prende como em uma teia de
aranha.
Não por acaso, a figura do aracnídeo desempenha um papel
enigmático, sendo representado em diversos momentos. Inicialmente, em uma cena fetichista,
dentro do contexto de erotização que permeia o filme, depois, em diversas referências
subjetivas. Sua representação é ao mesmo tempo uma linha condutora e um limiar
da realidade, que no final se transforma em uma ressignificação imprecisa e
fantástica, mas ao mesmo tempo definitiva.
É esta a chave que abre novas possibilidades e nos leva ao
retrospecto da trama. Ao fazê-lo, nos empurra a vivenciar, de certa forma, a
experiência de seu personagem, que terá no cíclico e na repetição um fator
determinante dentro do tipo de aprisionamento que experimenta. Porque é de
aprisionamento, em amplo aspecto, que trata O
Homem Duplicado.
Mais importante do que compreender com exatidão a jornada de
personagens improváveis e o cruzamento de suas personas, é entender que o que
se dá na tela acontece em um nível de realidade que não necessariamente se
enquadra no real. Isto se nota já nas reações de Adam diante da descoberta de
seu suposto duplo. A hesitação e a insegurança de suas ações colocam seu
desconcerto em um patamar de interioridade, sobre o qual está parte das
relações de causa e efeito que o filme propõe.
Toda esta construção que a direção de Villeneuve e a ótima
atuação de Gyllenhaal desempenham se aproximam com sucesso do universo
recorrente na obra de Saramago, que o filme absorve, filtra e trata com
satisfatória dignidade.
O Homem Duplicado
se calca, sobretudo, no desconforto, mas seu grande achado está no efeito
cíclico. A repetição como forma de controle, abordada durante uma aula de
história, mostra-se um tipo de aprisionamento, uma teia envolvente e inescapável.
A duplicação de que trata seu título e que sua trama constrói dentro do
insólito seria uma fuga possível, uma troca ou inversão que poderia funcionar
como escape. Mas seu final é contundente na representação da impossibilidade
dessa fuga.
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Enemy
Denis Villeneuve
Canadá/Espanha, 2013
90 min.
Trailer