domingo, agosto 24, 2014

O Mercado de Notícias


O grande achado de Jorge Furtado em seu novo filme não é apenas a fina ironia que se costura na tela, mas principalmente o modo como esta ironia revela a espantosa atualidade de uma peça de teatro escrita no século 17, encenada pela primeira vez na Londres de 1626.

Escrita pelo dramaturgo inglês Ben Jonson (1572-1637), a peça faz uma crítica aguda e irônica a uma novidade que começava a surgir naquele tempo: os primeiros jornais.

É a partir do texto de Jonson que Furtado costura seu documentário, entrelaçando trechos de uma montagem da peça - feita exclusivamente para o filme - e entrevistas com 13 jornalistas renomados. O assunto das entrevistas é o jornalismo, sempre sob o viés de seus vícios inerentes, mecanismos obscuros e desvios de princípios.

Mas a opção de traçar um paralelo entre uma obra de quase 400 anos e a realidade do jornalismo vai além do espanto causado pela pertinência que a peça sustenta até os dias de hoje. O fino desta sutileza está no intrínseco arranjo entre o que há de real nas entrevistas e o que há de ficção na representação da peça. Porque é justamente a ficção dentro do noticiário a questão mais contundente abordada em O Mercado de Notícias.

O exemplo que mais salta aos olhos é o caso do “Picasso” do INSS, que, exposto no filme, levou o jornal Folha de S.Paulo a se retratar com dez anos de atraso. Em 2004, o jornal deu primeira página para uma foto que mostrava um quadro de Pablo Picasso decorando uma sala do prédio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) em Brasília.

A matéria afirmava que o quadro era autêntico. Tratava-se, contudo, de um pôster, desses que se compra por US$ 20,00 na loja do Museu Metropolitan, em Nova York, onde está o quadro verdadeiro. O tamanho e a gravidade do erro levam, inevitavelmente, à pergunta: engano ou má fé?

Este e outros casos de “erros” mostrados pelo documentário revelam não apenas o que eles podem ter de má apuração jornalística, mas o que talvez tenham de ficção deliberada, publicada com a intenção de semear no leitor uma ideia. No caso do falso Picasso, reforçar no leitor a ideia de uma generalizada ignorância e desconhecimento de arte em todos os níveis do governo, reflexo de se ter na presidência um ignorante mal alfabetizado - no caso, o presidente Lula.

A partir deste viés “ficcional”, O Mercado de Notícias revela com inteligência e sofisticação o que de mais grave ocorre (talvez com mais frequência do que imaginemos) nos chamados veículos de imprensa. Justamente aqueles que têm (ou deveriam ter) como princípio pétreo a reprodução da verdade e do factual.

Porém, mesmo esta costura bem executa não impede que boa parte do filme gire em torno de mais do mesmo. É que os depoimentos dos entrevistados, em sua maior parte, trazem as mesmas questões de sempre e as mesmas observações de sempre quando se coloca a imprensa no divã.

Algumas dessas questões são desde sempre inerentes ao jornalismo, como a utopia da imparcialidade e a sempre relativa verdade. Outras questões nascem da crise desencadeada pela era digital, como os novos meios de se consumir notícia e o surgimento dos blogs jornalísticos. Em quase todas as abordagens, nada de realmente novo é dito.
Mesmo assim, o espectador poderá se surpreender com o que de mais claro o filme constrói, que é um tipo de cinismo que permeia, quase que obrigatoriamente, o exercício da profissão de jornalista. O que fica evidente tanto na peça do século 17 quanto em boa parte dos depoimentos.

Independente do novo ou do velho que traga o filme, a honestidade com que Jorge Furtado mergulha no assunto já é mérito mais que o suficiente para assisti-lo. Esta honestidade e este mergulho extrapolam o aspecto meramente fílmico e se espalha pela internet, no site www.omercadodenoticias.com.br. Neste endereço, pode-se saber dos bastidores da produção, acessar mais detalhes dos casos reais levantados pelo filme e assistir na íntegra as entrevistas realizadas.

Sem pessimismo nem ingenuidade, O Mercado de Notícias não é uma crítica à imprensa e ao jornalismo, mas uma tentativa de reflexão que não deixa de expor a vertente mais desonrosa da profissão, que é quando se deixa de lado o fato para ceder à tentação (e aos interesses) do ficcional.

Assim, com sua estrutura bem arquitetada, o documentário reconstrói com fatos e exemplos aquilo que já em 1962 John Ford arrematava na cena final de seu clássico O Homem que Matou o Facínora: “Quando a lenda se torna fato, publique-se a lenda”.
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O Mercado de Notícias
Jorge Furtado
Brasil, 2014
94 min.

Trailer

domingo, agosto 10, 2014

The Rover - A Caçada

The Rover pode parecer num primeiro momento um filme pós-apocalíptico. Mas não é. Ao menos não no sentido mais comum do gênero. Isso fica claro na mensagem que abre e situa sua história: “Dez anos após o colapso”. Mas qual colapso? A resposta não vem mastigada. Pistas ao longo do filme salpicam referências. O colapso, podemos deduzir, foi econômico. O efeito, devastador.

É assim que surge na paisagem árida o rosto de Eric (Guy Pierce). Nele há a mesma aridez, e nos olhos o traço da leve insanidade de quem já não guarda ilusões. Quando seu carro é roubado por três sujeitos em fuga, começa a caçada, que ele empreende com uma violência e obstinação que não entendemos logo.

No caminho, a coincidência. Esbarra em Rey (Robert Pattinson). Ferido a bala e deixado para trás por seu irmão, Rey se torna refém de Eric quando este descobre que o irmão que o deixou para trás é um dos sujeitos que roubou seu carro. E Rey sabe para onde eles foram.

Se os filmes pós-apocalípticos surgiram como reflexo do medo causado pelo horror da guerra nuclear, numa representação do risco da degeneração da sociedade organizada causada pelo caos, o diretor australiano David Michôd apresenta o medo do horror econômico.

Mas neste horror criado por Michôd não há qualquer articulação ou discurso. Tudo é apenas efeito e a causa importa pouco. Resta somente o grande nada, um deserto moral tão vasto quanto o físico e tão violento quanto o vazio humano.

Assim, a trama é menos que um fio de lógica e o único arco dramático é a rarefeita relação entre Eric e Rey. E se neste embate dramático Guy Pierce atua intensamente fazendo de seu personagem um dique sempre prestes a romper, Robert Pattinson surpreende em uma atuação impressionante de violenta fragilidade.

Pattinson consegue dar corpo, voz, olhar e retardo mental a seu personagem de forma a realizar algo que muitos apostavam que não conseguiria: apagar inteiramente a imagem do “vampiro caviar” da Saga Crepúsculo. Sua atuação é simplesmente desconcertante e parte do efeito que o filme nos causa vem do que Pattinson realiza na tela.

Em um cenário em que a desesperança é o elemento principal, The Rover é marcado por cenas capazes de conectar o público a uma forte tensão, daquelas que nos gruda à tela. Violento e direto, o filme cria parte de sua narrativa na paisagem desolada e em figuras igualmente desoladas. No seu desenrolar, gera um tipo de desconforto que nos invade e não se resolve com o desfecho.

Na travessia que se constrói na tela, a mensagem final não é de esperança ou de transformação. É o mesmo vazio árido de sempre, é a sensação permanente de cavar em chão pedregoso e não encontrar sentido em nada. É o grande deserto do ser humano, aquilo que resta quando toda fachada sucumbe ante algum colapso, seja econômico ou não.
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The Rover
David Michôd
Austrália/EUA, 2014
103 min.

Trailer
 

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