terça-feira, julho 30, 2013

Fora de Satã






Um homem sem teto e sem nome que vive num descampado entre o mar e um pequeno vilarejo. Sua única companhia é uma jovem que mora ali perto e sofre abusos do padrasto. Para livrá-la do sofrimento, ele mata o padrasto.

Pois é a partir da relação entre a jovem e o homem que o diretor francês Bruno Dumont desenvolve uma obra que dispensa respostas na mesma medida que dispensa perguntas.

Em Fora de Satã, enigma e mistério formam o elemento que sustém a narrativa para que esta se debruce sobre o mal e sua ambiguidade humana ou, possivelmente, divina.

Assim, o sem teto que vive ao relento e que reza com frequência pode tanto ser anjo ou demônio.  

Se anjo, sua existência na terra passa longe da figura de pureza e bem-aventurança, como se ao rastejarem no mesmo patamar humano, aos anjos também se aderisse a sujeira e a vilania.

Por outro lado, se demônio, a inversão se torna igual, e certa beatitude e bondade protetora despem-no do estereotipo maligno. Por trás de sua violência e crueldade estaria a intenção de proteger alguém mais frágil.

Entretanto, por mais que estimule a curiosidade, a indefinida natureza desse personagem pode não ser o que realmente importa. Talvez caiba mais atenção em seu estado de errância ou exílio, como uma maldição inescapável, e a relação entrelaçada que o filme constrói entre seus personagens e o ambiente que os cerca.

Dumont trabalha seus planos longos de forma a diminuir seus personagens diante da paisagem. Entre engolidos por ela e resistentes a ela, eles parecem prisioneiros daquilo que os cerca e da solidão que isso traz. Contudo, também se misturam à paisagem, na mesma medida em que ela talvez se misture a eles.

Não por acaso, o diretor exibe um perfeito apuro na construção dessa paisagem, na qual há uma dose quase irreal em sua constituição – que mistura o ermo, o litorâneo, o campo e o vilarinho – se somando ao mistério sobrenatural que também pontua a trama. Se tomarmos a paisagem como o mundo, não importa se aquele homem com atributos estranhos é anjo ou demônio, o fato é que uma vez no mundo ele se torna parte dele, para o bem e para o mal, indistintamente.

Morte, violência, exorcismo e ressurreição fazem parte dos aparentes atributos desse errante. Sua indefinição é proposta e provocação do filme, que trabalha elementos de um terror fora de esquadro, desfocado entre o religioso e o pagão, em que o medo está presente em camadas muito finas que apenas em alguns momentos ganham corpo.

Fora de Satã termina por ser um filme simbólico sem símbolos. Uma disparidade provocativa talhada com precisão e apuro de ritmo em cada cena, em cada enquadramento montado e persistente na duração certa para nos absorver e envolver sem que percebamos. Um trabalho de quem domina cena e narrativa sem precisar de muletas como diálogos e explicações.
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Hors Satan
Bruno Dumont
França, 2011
110 min.

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segunda-feira, julho 29, 2013

Apenas o Vento





O aviso que abre o filme húngaro Apenas o Vento alerta o espectador para o fato de o filme não ser um documentário, embora seja inspirado em fatos reais. Entre 2008 e 2009, na Hungria, um grupo de extrema-direita teria assassinado seis ciganos, entre eles mulheres e crianças, além de praticar diversos atos de violência contra essa etnia.

É a partir desse fato que o diretor Benedek Fliegauf vai desenvolver sua ótica, ao retratar a rotina na vida de uma família cigana cercada pelo medo das mortes que estão ocorrendo no vilarejo onde vivem. O filme rendeu ao diretor o Urso de Prata no Festival de Berlin, em 2012.

Fliegauf desenvolve uma perspectiva em que revela uma permanente violência subentendida no preconceito atávico que afeta os personagens. Ao mesmo tempo, cria uma atmosfera de tensão, como se a explosão trágica dessa violência subentendida estivesse sempre perto de acontecer.

Feito uma ironia ante o aviso que abre o filme, a câmera do diretor está sempre próxima de seus personagens. Com isso, além do efeito natural de uma atmosfera sufocante em um cotidiano árido, essa proximidade da câmera gera uma perspectiva de “documento”, de registro fiel não aos acontecimentos reais, mas a uma realidade que na ficção encontra sua voz de denúncia e de real.

É sob essa ótica de proximidade quase íntima que seguimos o dia de três personagens. Mari (Katalin Toldi) vive numa aldeia com o pai inválido e seus dois filhos: a adolescente Anna (Gyöngyi Lendvai) e o menino Rió (Lajos Sárkány).

Com a notícia do assassinato de uma família de ciganos da mesma aldeia em que vivem, o filme acompanhará o dia desses três personagens, da manhã até a noite. Enquanto Mari se desdobra em dois empregos, as crianças devem ir à escola.

É no seio dessa rotina que o preconceito contra ciganos vai se definir em detalhes que vão do simbólico – como um ônibus que para depois do ponto – até o ostensivo, como o diálogo entre dois policiais.

Em toda essa trama de subtexto, a violência também subentendida – seja nos pequenos abusos, seja na condição precária de vida – serve de anteparo à violência real que está prenunciada no medo, nos gestos e nos anseios dos personagens por algo melhor.

A relação entre esses elementos é estabelecida ao longo do dia pela câmera sempre próxima, como se o espaço desses personagens no mundo fosse menor que o de outras pessoas. É uma proximidade que não apenas sufoca, mas restringe, apequena no sentido espacial e humano a dignidade que deveria ser universal e ampla. Mas não é.

Fliegauf se mostra muito feliz na construção dessa atmosfera que traduz sentimento e medo. Seu filme tem como propósito mostrar. Não faz juízo do que revela e arma sua ficção com filtro de realidade. Num jogo de desconstrução entre o que afirma (o alerta do início do filme) e o que mostra, exime-se do rótulo de documento, para à sua maneira ficcional melhor documentar.
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Csak a szél
Benedek Fliegauf
Hungria/Alemanha/França, 2012
86 min.


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sábado, julho 27, 2013

O Homem de Aço

Este texto contém spoilers.

Se fecharmos os olhos para as inconsistências pontuais presentes no roteiro de O Homem de Aço, o filme pode até se sair bem como reinício do super-herói no cinema. Ainda que, mesmo assim, falte muita substância no final.

A questão de se fechar ou não os olhos para seus problemas pontuais trata-se apenas de uma opção entre não abrir mão de alguma coerência ou assumir que ela pouco importa em filmes desse gênero.

Seja como for, parece que Hollywood ou assume uma imensa preguiça na hora de escrever cenas que sejam coesas com o todo ou nem se preocupam com isso, talvez achando que a inteligência média do espectador vem caindo ao longo dos últimos anos.

O diretor Zack Snyder assumiu nesta empreitada a responsabilidade de recontar a origem do Superman nos cinemas. Tarefa difícil, levando-se em conta o quase inacreditável peso mitológico que os dois filmes dirigidos por Richard Donner têm ainda hoje no imaginário dos fãs.

Superman – O Filme (1978) e Superman II (1980) formam uma sombra que sempre pode ofuscar novas produções. Já Superman – O Retorno (2006), tentativa dirigida por Bryian Singer de dar uma continuidade ao mito de Donner, não deu muito certo.

Snyder acerta em fugir a todo custo da sombra de Donner. Com boa concisão, apresenta Kripton em guerra civil, com a rebelião do general Zod (Michael Shannon) estourando. Neste ponto, Russell Crowe como Jor-El e Shannon como Zod se mostram um excelente acerto de elenco. Mas já daí o filme desafina, promovendo uma ação de confronto entre Jor-El e Zod que não se encaixa no personagem de Crowe.

Tão grave quanto isso é a aparente pressa em construir cenas de ação antes mesmo de se ter contado alguma história, deixando toda essa ação fora de lugar e sem propósito. Nada contra cenas de ação em um filme de ação, mas para que seja um bom filme essas cenas devem fazer parte de uma costura da narrativa, coisa que as do início de O Homem de Aço não fazem.

Apesar do início afobado em termos de som e fúria, o filme faz uma boa construção da infância de Clark Kent (Henry Cavill) por meio de flashbacks. Com isso, entre uma ação e outra do tempo presente, compõe o caráter e também as dúvidas do personagem, bem como a influência de seu pai na Terra, Jonathan Kent (Kevin Costner) na formação de seus princípios.

As elipses funcionam bem e Cavill também é uma boa escolha de elenco. Seu jeito um tanto bobo casa com o típico escoteiro altruísta do personagem, mas não a ponto de torná-lo um completo ingênuo.

Mas é a partir disso que algo fica faltando. Há uma ótima elipse entre o momento em que a nave trazendo Kal-El bebê cai na Terra e o súbito surgimento na tela de um Clark adulto. Ali, parece que Clark está em uma andança pelo mundo, em busca daquelas respostas intangíveis que todos têm na juventude e que no caso dele são, naturalmente, muito maiores.

É nessa perspectiva de andança que estaria a oportunidade da construção de um personagem melhor dimensionado. Havia ali a possibilidade de atribuir a Kal-El uma dose de drama, de dar ao personagem alguma perspectiva em profundidade, fazendo dele algo melhor que um simples decalque unidimensional superpoderoso vagando na Terra. 

Mesmo a morte de seu pai adotivo, absolutamente impossível de engolir no modo como se deu, poderia ser o estopim para essa andança em busca de algo intangível. Não se trata aqui de transformar um super-herói de HQs num personagem de Ingmar Bergman, mas de avançar um ou dois passos em direção a algo menos superficial.

Mas o que poderia ser o complemento final na construção desse personagem logo passa para uma rápida descoberta de sua origem e natureza. Entre uma e outra não há tempo, nem esforço, para o delineamento de uma personalidade, de um Clark Kent mais palpável.

Assim, o que dali em diante vemos vestindo o uniforme azul e vermelho é um personagem cujo caráter conhecemos pela infância, mas fica um vácuo entre a criança e o adulto Kent, um vácuo de personalidade agravado pela urgência do surgimento do Superman diante da ameaça de Zod. É como se Clark nunca tivesse tido a oportunidade de terminar de ler o livro de Platão que tinha nas mãos em uma das cenas de sua adolescência.

Filme e personagem ressentem-se desse vácuo, pois a quebra de paradigma final que todo filme de origem, por excelência, deve trazer, aqui se perde por não ter construído com clareza qual paradigma se quebrou. O que era Clark e o que ele se tornou (ou poderá se tornar) após os eventos do filme não fica delineado e isso resulta numa figura oca. Nesse sentido, o propósito, a motivação e até a personalidade de Zod é melhor trabalhada (e com uma excelente concisão) do que a de Kal-El.

E daí vai-se para a grandiosidade das cenas de ação, que passam algumas vezes do ponto, se aproximando do vazio e inócuo efeito demolidor da péssima franquia Transformers, de Michael Bay. Esses exageros destrutivos não chegam a comprometer por completo o filme, e na maior parte do tempo asseguram o entretenimento barulhento e altamente destrutivo que agrada ao público em geral. São cenas bem realizadas, que até funcionam em boa parte de sua duração.

Mas é em meio a tudo isso que definha a figura de Clark Kent e ascende a figura de um “desconhecido” vestindo o uniforme, distribuindo socos, levando socos, demolindo prédios. Até mesmo a solução para parte da ameaça à Terra cai nas mãos de Louis Lane, interpretada de forma apenas satisfatória por Amy Adams, cabendo a ela descobrir o que pode deter o plano de Zod.

Neste ponto, o festival de inconsistências que ofendem a inteligência e denotam uma preguiça em polir o roteiro de forma um pouco mais bem acabada já se multiplicaram.


Da morte ridícula de Jonathan Kent, passando pelo modo como dentro da nave Louis Lane é aprisionada em um compartimento com acesso ao sistema, até em como seria fácil para o governo descobrir a identidade Kent do Superman, além de outros pontos frágeis, essa série de equívocos, de facilidades de roteiro, estragam boa parte da consistência do filme.

Sem essa consistência, ao final, o que resta é a possibilidade de um próximo filme melhor que este. O Home de Aço não chega a ser ruim, é apenas um filme de boa aparência, mas cujo conteúdo inconsistente fragiliza esse verniz. Passada a euforia da ação, o que fica é um Kal-El/Clark Kent/Superman vazio, sem grande personalidade.

Tem-se um filme rico em boas imagens e até boa ação, mas pobre em outros aspectos essenciais à construção de um personagem que dá início a uma nova franquia do ser mais poderoso da Terra.

Atende com boa mão uma parcela importante das demandas que o personagem teria de enfrentar nessa volta de sua origem. Mas deixa muito a desejar na elaboração desse personagem, fazendo dele um borrão impreciso sob o traje azul e vermelho da casa de El.
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Man of Steel
Zack Snyder
EUA/Canadá/Reino Unido, 2013
143 min.

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sexta-feira, julho 26, 2013

A Filha do Meu Melhor Amigo


Hugh Laurie, famoso por interpretar o Dr. House na bem sucedida série de TV House, faz a linha de frente do elenco desta comédia que também se pretende uma reflexão sobre casamento e felicidade.

Duas famílias vizinhas, que vivem na pequena cidade de West Orange, em Nova Jersey (daí o título original “The Oranges”), passam por uma crise que as empurra para fora de suas zonas de conforto. A consequência disso será o desmascaramento da apatia de seus casamentos.

David (Hugh Laurie) e Terry (Oliver Platt) são melhores amigos de muitos anos, assim como suas famílias, cujos filhos cresceram juntos. Uma amizade em que, entre outras coisas, os levam a estarem sempre reunidos.

David é casado com Paige (Catherine Keener). Eles têm dois filhos já adultos. Toby (Adam Brody) é bem sucedido na carreira e está sempre viajando. Já Vanessa (Alia Shawkat) pretende se mudar para Manhattan e trabalhar em uma grande empresa, mas, sem perceber, está sempre colocando obstáculos e adiando sua saída da casa dos pais.

Do outro lado da rua está a família de Terry e Cathy (Allison Janney). Sua única filha, Nina (Leighton Meester), volta para casa depois de cinco anos fora trabalhando como chef de cozinha. Ela acaba de sofrer uma decepção amorosa.

Como o título nacional e os cartazes promocionais revelam de imediato, David irá se envolver com a filha de seus vizinhos quando esta retorna para casa. A descoberta da relação entre os dois será o desencadeador de mudanças e traumas, além dos típicos sentimentos que passam pela raiva e pela vergonha ressentida.

A Filha do Meu Melhor Amigo surge assim como mais um filme sobre casais cujos casamentos se deterioraram sem que estes percebessem, e seus filhos, desajustados neste processo. Mas tenta, também, oferecer uma polêmica a respeito de preconceitos com relacionamentos entre pessoas de idades muito diferentes e ainda uma reflexão sobre relacionamentos, compromisso e felicidade.

Todo esse leque não é apenas mais do que o filme é capaz de desenvolver como também contribui para que o resultado seja superficial, contaminado pela artificialidade das situações e dos personagens. Já a comédia fica para segundo plano, diluída nas tentativas desastradas de fazer graça com o drama que se cria com toda a constrangedora situação.

Na narrativa, não há nada de inovador, exceto uma estranheza no giro rápido com que as coisas se dão. Há nisso uma aparente tentativa de impor agilidade ao filme, mas que serve apenas como contribuição à sua excessiva superficialidade.

Sua mensagem tampouco é nova. Fala de mudanças, da resistência a mudanças e de como muitas vezes essas mudanças, mesmo as que vêm como ruptura, podem ajudar as pessoas a avançarem em suas vidas. É, na verdade, um filme sobre mover-se, sobre seguir adiante.

Mas além dessa enfadonha obviedade, há no desenvolvimento da história uma total falta de aplicação do sentimento. Nem o já reconhecido talento de Hugh Laurie se faz presente em sua atuação, o mesmo podendo ser dito sobre o restante do elenco, apático e sem emoções convincentes.

Pela grande quantidade de temas que quer mencionar e pela grande superficialidade com que tudo é construído, A Filha do Meu Melhor Amigo não vai além de uma tentativa de comédia e reflexão sobre relações e sentimentos na busca da felicidade. Nesse apressado trajeto, o curioso é o quanto o filme se torna, sem perceber, vítima da mesma apatia que quer revelar e solucionar através de seus personagens e das situações em que se vêem englobados.
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The Oranges
Julian Farino
EUA, 2011
90 min.


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domingo, julho 14, 2013

Hannah Arendt

Hannah Arendt já era uma pensadora de prestígio em 1962 quando se ofereceu à revista The New Yorker para cobrir, em Jerusalém, o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann.

Foi a partir do julgamento de Eichmann, conhecido como o principal responsável por arquitetar a logística da chamada “solução final” – encarregada de exterminar judeus durante os anos de Hitler no poder –, que Arendt passou a formular seu pensamento para aquilo que ela viria a denominar de a “banalidade do mal”.

Hannah era uma judia que fugira para os EUA durante os anos de perseguição na Alemanha, chegando ser presa em um campo de prisioneiros na França ocupada. Na América, tornou-se uma respeitável pensadora e professora universitária, tendo publicado obras importantes como As origens do totalitarismo (1951), A condição humana (1958) e Sobre a Revolução (1963).

É a partir da decisão da pensadora, interpretada pela atriz Barbara Sukowa, em presenciar e relatar o julgamento do “monstro” Eichmann, que o filme Hannah Arendt inicia seu caminho em retratar a coragem da escritora e o inferno que se tornou sua vida ao levar essa coragem às últimas consequências: a publicação do artigo na revista e, depois, a publicação do livro intitulado Eichmann em Jerusalém.

Essa coragem está nas consequências que Hannah sofreu ao ter a ousadia de não demonizar Eichmann como o monstro que todos queriam ver descrito em suas palavras, especialmente a comunidade judaica. Para ela, o tal monstro não era mais que um burocrata medíocre que cumpria suas ordens sem refletir moralmente sobre suas consequências.

Para ainda maior descalabro da comunidade, Hannah não apenas afirmava que não via Eichmann como um antissemita, como teve ainda a ousadia de tocar em assuntos-tabus, como a colaboração de alguns judeus no extermínio de seu próprio povo.

Ainda que ver o filme e conhecer este aspecto da história do século 20 seja algo quase obrigatório, não se pode deixar de notar que, como narrativa de cinema, Hannah Arendt resulta numa obra burocrática, de amarração frágil e condução irregular.

Seus problemas como narrativa vão da obviedade exageradamente sublinhada à construção sem resultado de uma memória em flashback. Muitas vezes, a direção adota uma construção e encadeamento de quadros que lembram um telefilme – lembrando que a diretora, Margarethe von Trotta, tem boa parte de sua carreira na televisão. Nas vezes em que se busca um efeito cinematográfico o resultado é artificial; ora deslocado, ora dramaticamente ineficiente.

Logo na abertura do filme, pode-se perceber uma abordagem óbvia ao mostrar a protagonista, uma pensadora, pensando. Mesmo recurso televisivo que ao final fecha a narrativa, semelhante ao desfecho de qualquer episódio de telessérie. Além disso, dos enquadramentos à montagem, o filme muitas vezes insiste em sublinhar o que deveria ser sutil.

Exemplo disso é o momento em que Arendt, observando Eichmann durante o julgamento, tem o “click” para a compreensão daquilo que seria o pilar de seu artigo. O que poderia ser algo sutil torna-se um exagero de construção óbvia, com a câmera se aproximando da personagem, a música acentuando o momento e a atriz, aparentemente, sendo instruída a mudar sua expressão. Tudo isso para remeter o público a uma forçosa denotação de descoberta, de revelação.

Do artificial, fica o modo como se constrói em flashback a relação amorosa entre uma Hannah juvenil, ainda na Alemanha, e seu professor Martin Heidegger (Klaus Pohl), 17 anos mais velho. A seriedade do quão escandaloso seria para a época esta relação com um homem casado e professor universitário passa ao largo dessa lembrança, assim como não se preenche nesses flashbacks qualquer sentimento ou laço mais forte. Tudo fica no campo da burocrática amostragem a conta-gotas.

A presença dessa memória no filme pretende reforçar o efeito de uma cena perto do final, como se os flashbacks fossem a construção de um sustentáculo para amparar no fim todo um sentimento de perda emocional e sentimental a partir de um rompimento intelectual e político.

Contudo, apenas uma pequena parte desse sentimento é alcançado, muito mais pela atuação de Barbara Sukowa do que pela pretensa construção emocional da narrativa.

Ficam ainda arestas abandonadas sem maiores consequências, como é o caso da secretária de Hannah, Lotte Köhler (Julia Jentsch). O filme insiste em atribuir a ela uma devoção oblíqua, com momentos que vão da adoração à tensão homoerótica. Mas deixa pelo caminho qualquer desdobramento dessa personagem.

Enquanto filme, Hannah Arendt é uma experiência pobre, ainda que tenha o mérito de nunca descer ao ponto de se tornar cansativo. Mas esse mérito talvez esteja mais na história que o embasa do que nos seus atributos fílmicos. Mesmo assim, merece ser visto como registro de um pensamento, o pensamento de Hannah Arendt, que provoca o senso comum e instiga debates até os dias de hoje.
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Hannah Arendt
Margarethe von Trotta
Alemanha/Luxemburgo/França, 2012
113 min.


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quarta-feira, julho 10, 2013

A Separação


A Separação é um filme que pulveriza maniqueísmos. A forma como o filme desenvolve e problematiza dois lados de uma contenda nos coloca perplexos diante da impossibilidade de tomar partido. Seus personagens têm uma dimensão humana tão próxima da verdade que ao mesmo tempo que nos solidarizamos com todos sabemos também que todos estão errados.

Como em qualquer separação, há os dois lados. Mas nesta obra do diretor iraniano Asghar Farhadi, os lados vão além do casal cuja separação trata o título. Isso porque a tal separação é apenas estopim para uma série de equívocos e mal-entendidos a partir dos quais duas famílias se verão clamando por justiça.

Simin (Leila Hatami) e Nader (Peyman Moadi) querem o divórcio. Mas o juiz nega-lhes a separação. Argumenta que os motivos não são suficientes e que não há comum acordo entre eles para que se separem. Simin quer sair do país e quer que o marido e a filha a acompanhem. Nader se recusa a ir porque tem de cuidar do pai, que sofre de Alzheimer. Ela então deixa a casa em que vivem. Termeh (Sarina Farhadi), filha de 11 anos do casal, decide ficar com o pai, porque acredita que sua mãe vá regressar.

É quando Razieh (Sareh Bayat) e sua filha de seis anos entram na história. Ela é contratada por Nader para cuidar do pai enquanto ele trabalha. Mulher religiosa, seguidora das determinações do islamismo, Razieh está grávida de cinco meses e com o marido desempregado. Mas ela logo vê que cuidar de um idoso tão debilitado está além de suas forças, além de possíveis complicações com sua fé.

A dificuldade financeira de Razieh, sua gravidez, o marido endividado e outras questões urgentes a levam a cometer um erro. A separação da mulher, o pai doente, uma situação estressante levam Nader a cometer outro.

O resultado será julgamentos precipitados, atitudes impensadas e uma perda irreparável. Começa então um inferno em espiral na vida das duas famílias. Um inferno repleto de acusações, culpas negadas, medo, vergonha e desamparo.

Na intensificação desse inferno, o filme tem momentos de incessante aflição, quando seus personagens se veem em circunstâncias tão complicadas quanto constrangedoras. É onde o diretor trabalha a empatia do público, alternando-a entre os dois lados da contenda. Assim, o filme se lança nos limites de certo e errado, justiça ou injustiça, mas apagando o tempo todo esses limites, revelando o quanto podem ser frágeis. É cinema de vida real, intensificada na tela quase sem respiro, mostrando a natureza humana naquilo que é mais humana: o erro.

Em meio a isso fica o espectador, rendido não apenas pela riqueza de elementos indefinidores do certo e errado, mas também pela empatia com o drama de todos os envolvidos. Com isso, A Separação dissolve qualquer maniqueísmo e nos deixa prostrados diante de dramas entrelaçados pela mentira ou por verdades imperfeitas. 

Tudo isso faz de A Separação um filme sobre a condição humana em seu aspecto menos nobre, quando se quer a razão diante do erro. É um filme sobre culpa, arrependimento, mas também desamparo. Tudo trabalhado com uma justeza sem espaços para respiros, uma imersão quase claustrofóbica no agravamento gradual de uma crise cuja solução parece não existir.
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Jodaeiye Nader az Simin
Asghar Farhadi
Irã, 2011
123 min.

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quarta-feira, julho 03, 2013

A Bela que Dorme








Em fevereiro de 2009, na Itália, morreu Eluana Englaro. Antes, por 17 anos, ela permaneceu em estado vegetativo, consequência de um acidente de carro. Sua morte foi induzida após anos de batalhas judiciais, nas quais seu pai tentava obter na justiça o direito de deixar sua filha morrer.

O caso mobilizou todo o país, com protestos contra e a favor da eutanásia. Chegou a causar uma crise institucional no governo, polarizando o então premiê Sílvio Berlusconi (contrário à medida) e o então presidente Giorgio Napolitano (favorável). No parlamento, um projeto de lei foi colocado às pressas para ser votado na tentativa de barrar a decisão judicial que permitiu a Eluana morrer.

É em meio a toda atribulação política e dogmática dos dias que antecederam o fim do estado vegetativo da jovem que o diretor Marco Bellocchio trama uma série de histórias que envolvem o direito à vida e o direito à morte, com toda polêmica que o assunto levanta.

Como é comum em sua obra, o diretor de 73 anos “ficcionaliza” a partir da realidade para trazer à discussão temas ligados à política e à história da Itália. Foi assim em Bom Dia, Noite (2003), sobre o sequestro político de Aldo Moro pelo grupo de extrema esquerda “Brigada Vermelha” em 1978. Foi também assim em Vincere (2009), sobre a vida de Ida Dalser, amante de Mussolini na juventude e que teria dado à luz a um filho bastardo do Duce.

Em A Bela que Dorme, o fato real serve de eixo para histórias que orbitam o tema da morte como opção. Um senador instado a votar com o partido, mas em dúvida moral com seu voto. Sua filha, contrária à eutanásia, que se apaixona por um sujeito que está preso ao dever de cuidar do irmão problemático. Uma família cuja mãe católica abdica totalmente da brilhante carreira para cuidar da filha, que também vegeta presa a um respirador artificial. Um médico que se depara com uma usuária de drogas decidida a cometer suicídio.

Bellocchio apresenta todas essas histórias em um tiroteio de personagens que só aos poucos vão tomando forma. Sua construção fragmentária, confusa no início, serve como grifo à complexidade da questão. Mas também funciona para ampliar o drama que envolve cada personagem.

Á medida que cada drama ganha seu matiz único e ficam claros seus contornos, vai-se aos poucos ganhando uma dimensão do todo. Nesta construção inteligente, o diretor nos confronta com diversas vertentes de um problema sem que saibamos de antemão do que cada vertente trata. Assim, evita a instauração antecipada de nossos próprios preconceitos, nos levando a tomar contato com cada situação livres de nossas amarras dogmáticas.

A tensão dessa construção fica por conta de seu eixo, que é o caso Eluana, onipresente na trama pelos registros reais de rádio e TV da época. Tensão que cresce, operística de certa forma, pelo sentimento de tempo que se esgota. Este efeito, o diretor cria ao adotar uma contagem regressiva de dias para o desenrolar das histórias. Dias que faltam para Eluana morrer.

Nos desdobramentos, Bellocchio não esconde sua posição diante dos fatos, mas tampouco a impõe de forma manipuladora. Prefere retratar diversos aspectos da questão, assim como expor o radicalismo dogmático que divide opiniões em trincheiras agressivas. Mas para suplantar o discurso rasteiro das partes, apresenta desenlaces que vão além do óbvio. Revela os pequenos dramas por trás do grande drama; os debates privados, íntimos, diante do grande debate.

Essa aproximação, através de personagens que estão, de uma forma ou de outra, absorvidos pelo caso Eluana, permite um olhar menos dogmático para a questão, apresentando perspectivas bem menos maniqueístas. Amplia, por exemplo, os reflexos e as consequências na vida das pessoas próximas, muitas vezes sugadas completamente pela situação, e cujas vidas, em sua continuidade, também deve ser considerada.

De forma sutil, Bellocchio tangencia seu posicionamento sem articular manobras de persuasão. Como, por exemplo, no contraste que cria em frente à clínica onde estava internada Eluana, dos grupos de manifestantes contra e a favor numa batalha de ódio, e depois a oposto disso na paz posterior que o quadro revela.

Quase em paralelo, o filme toca no desespero pela morte de uma suicida determinada e na obstinada vontade de um médico em não deixá-la morrer. Nasce disso uma relação que mostra o médico, assim como a ciência, mais interessado em salvar quem pode ser salvo, e deixar que descanse em paz quem já não pode.
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Bella Addormentata
Marco Bellocchio
Itália/França, 2012
115 min.

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